A obesidade tem uma associação bem documentada com o desenvolvimento de vários tipos de câncer. Diversos mecanismos fisiopatológicos explicam essa relação.
Indivíduos obesos têm um aumento de produção nos adipócitos de algumas citocinas inflamatórias (TNF-α, IL-6 e PAI-1) que promovem a angiogênese, além de alguns hormônios que estimulam a reprodução celular, o que favorece um ambiente propício ao desenvolvimento e à progressão do câncer.
Além disso, a resistência à insulina, comum em pessoas com obesidade, aumenta os níveis de insulina e do fator de crescimento derivado da insulina, promovendo o crescimento celular e inibindo a apoptose, ambos elementos importantes para o surgimento do câncer.1
Câncer hormônio dependente
A cirurgia bariátrica consiste no tratamento mais eficaz e duradouro para o tratamento da obesidade. Entre todos os cânceres, os de mama, endométrio e ovário demonstraram ter as associações mais fortes ao avaliar o impacto da cirurgia bariátrica na diminuição de suas incidências, isto ocorre especialmente pois na fase pós menopausa ocorre uma persistente produção de estrogênio extragonadal no tecido adiposo.2,3,4
Neoplasia de esôfago
Há preocupações de que uma cirurgia bariátrica, especialmente uma gastrectomia vertical, possa aumentar o risco de câncer de esôfago e estômago devido ao refluxo gastroesofágico, que pode ser agravado pela alteração anatômica. Esse refluxo constante poderia levar à metaplasia (Barrett), condição que predispõe ao câncer de esôfago. Leia mais sobre DRGE e cirurgia bariátrica nesse post.
No entanto, estudos recentes mostram resultados variados: alguns indicam que, apesar do aumento dos sintomas de refluxo, a gastrectomia vertical não aumenta a esofagite de refluxo e inclusive diminui a taxa de esôfago de Barret comparado com o bypass.5 Lazzati et al analisou 1 140 347 pacientes com obesidade na França e reportou uma taxa mais baixa de neoplasia de esôfago naqueles submetidos a cirurgia bariátrica (0.5%) comparado com os não submetidos (1.0%, P < .001), inclusive com incidências similares entre os submetidos a bypass comparado com os submetidos a gastrectomia vertical.6
Neoplasia de pâncreas e fígado
O risco de câncer de pâncreas está fortemente associado à obesidade, devido ao estado de resistência à insulina ocorre um aumento de sua produção. Esse estímulo pancreático em excesso, leva a ativação de células estreladas pancreáticas causando fibrose e formação de tecido conjuntivo, condições propícias para formação de neoplasia. Apesar dos resultados limitados tendo em vista a incidência mais taxa dessa neoplasia, uma metanálise recente demonstrou diminuição significante desse risco após a cirurgia bariátrica comparado com pacientes obesos não operados (OR= 0.76, IC 95% 0.64-0.90).7
Já é bem estabelecido que a obesidade leva a esteatose hepática e esteato-hepatite não alcoólica (NASH), condição para cirrose e potencialmente neoplasia hepática. A cirurgia bariátrica junto com a perda de peso já demonstrou ter melhorado, e em alguns casos completamente revertido essa condição predisponente.8
Neoplasia de cólon
A relação entre a cirurgia bariátrica e o câncer de cólon é complexa e, diferentemente de outros tipos de câncer que apresentam redução de risco com a cirurgia, o câncer colorretal pode, em alguns casos, ter sua incidência aumentada após o procedimento. Esse efeito contraditório sugere que, embora a redução de peso e a melhoria do perfil metabólico trazidas pela cirurgia bariátrica sejam vantajosas para a maioria das condições de saúde, o impacto específico no cólon deve ser avaliado com cuidado.
Estudos indicam que alterações na microbiota intestinal e alterações no ambiente do trato gastrointestinal após uma cirurgia bariátrica podem influenciar o risco de câncer de cólon. Esses procedimentos, especialmente o bypass gástrico, causam alterações significativas no trânsito intestinal e na absorção de nutrientes, o que pode afetar a composição microbiana do intestino.9
Outro fator a se considerar é que, após o bypass gástrico, ocorrem mudanças nos níveis de ácidos biliares no intestino, o que pode alterar a sinalização celular no cólon.9 Um estudo demonstrou que pacientes submetidos ao bypass gástrico exibiram hiperproliferação da mucosa retal.10
Estudos populacionais mostram resultados heterogêneos para o risco de câncer de cólon após cirurgia bariátrica. Um estudo realizado na Inglaterra com mais de 8.000 pacientes indicou que indivíduos que realizaram bypass gástrico apresentaram o dobro do risco de desenvolver câncer colorretal em comparação com pacientes obesos que não foram submetidos ao procedimento (0.4% vs 0.2%; odds ratio [OR], 2.43; 95%CI, 1.31-4.55).11 Na mesma linha, uma coorte sueca com seguimento de mais de 10 anos, mostrou uma taxa de incidência maior de câncer de cólon em pacientes submetidos ao bypass.12
Uma subanálise revelou que o aumento do risco de câncer colorretal após uma cirurgia bariátrica pode variar de acordo com o tipo de procedimento. Numa subanálise desse mesmo estudo britânico demonstrou que apenas o bypass gástrico estava associado ao aumento do risco (OR, 2.63;95%CI, 1.17-5.96), em comparação com a gastrectomia vertical ou a banda gástrica ajustável.11 Esse dado sugere que o mecanismo específico de alteração do trânsito intestinal e absorção de nutrientes do bypass gástrico possa ser um fator importante na fisiopatologia.
Um viés nesse tipo de estudo consiste em que os pacientes que se submetem à cirurgia bariátrica têm melhor acesso a cuidados médicos, incluindo o rastreio oncológico com colonoscopia por exemplo, possibilitando um maior número de diagnósticos desse tipo. Outro viés decorre de pacientes podem ser diagnosticados com câncer no pré-operatório da cirrurgia bariátrica. Tal paciente seria desqualificado de receber cirurgia, mas progrediria para o diagnóstico dentro do grupo não cirúrgico comparativo.
Embora as evidências apontem para um possível aumento do risco de câncer de cólon após a cirurgia bariátrica, especialmente o bypass gástrico, ainda são necessárias pesquisas dedicadas para entender completamente essa relação e determinar os fatores de risco específicos. Alguns especialistas recomendam que pacientes bariátricos, especialmente aqueles que realizaram o bypass, sejam submetidos a monitoramento mais intensivo, com exames de colonoscopia mais frequentes do que a população em geral.
Por outro lado, os benefícios da cirurgia bariátrica para a saúde geral ainda superam os riscos potenciais de câncer colorretal, especialmente considerando as melhorias nos índices de diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares que esses pacientes obtêm com uma perda de peso sustentada. Portanto, o monitoramento adicional de câncer colorretal pode ser uma estratégia de mitigação de riscos, sem comprometer a escolha do tipo de cirurgia bariátrica.
Referências
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- Lazzati A, Epaud S, Ortala M, Katsahian S, Lanoy E. Effect of bariatric surgery on cancer risk: results from an emulated target trial using population-based data. Br J Surg. 2022;109(5): 433-438. doi:10.1093/bjs/znac003
- Fan H, Mao Q, ZhangW, et al. The impact of bariatric surgery on pancreatic câncer risk: a systematic review and meta-analysis. Obes Surg. 2023;33(6):1889-1899; Epub ahead of print. doi:10.1007/s11695-023-06570-x
- Lee Y, Doumouras AG, Yu J, et al. Complete resolution of nonalcoholic fatty liver disease after bariatric surgery: a systematic review and meta-analysis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2019;17 (6):1040-1060.e11. doi:10.1016/j.cgh.2018.10.017
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Como citar este artigo
Oliveira JF. A cirurgia bariátrica pode aumentar o risco de câncer? Gastropedia 2024 Vol. II. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/a-cirurgia-bariatrica-pode-aumentar-o-risco-de-cancer/
Endoscopista no Hospital Vila Nova Star, Hospital Nipo-Brasileiro, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Alta Excelência Diagnóstica e Clínica do Aparelho Digestivo.
Mestre em Gastroenterologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Especialização em Endoscopia Oncológica no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – ICESP.
Residência médica em Endoscopia Gastrointestinal no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.