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Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder?

por Rafael Bandeira Lages
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A infecção pelo H. pylori e o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) são amplamente aceitos como as principais causas de úlcera péptica. Contudo, com a erradicação mais efetiva, as melhores condições sanitárias e o uso generalizado de antibióticos, a prevalência do H. pylori está caindo e, consequentemente, há um aumento no diagnóstico de úlceras não-H. pylori.

A proporção de úlceras não-H. pylori e não-AINEs/aspirina varia bastante (de 2 a 35%) de acordo a época, o país e a metodologia dos diferentes estudos:

  • Um estudo prospectivo multicêntrico francês publicado há 1 década incluiu 713 pacientes e concluiu que 1 em 5 úlceras não era relacionada nem ao H. pylori nem ao uso de AINEs/aspirina.
  • Um estudo brasileiro retrospectivo publicado em 2015 (De Carli, DM et al), por sua vez, identificou que, de 1997 a 2000, 73,3% das úlceras pépticas eram por H. pylori positivo, 3,5% por AINEs, 12,8% por H. pylori + AINEs e 10,4% idiopáticas, ao passo que, de 2007 a 2010, essa proporção passou, respectivamente, a ser de 46,4%, 13,3%, 19,9% e 20,5%.

Mas quais seriam as outras possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais?

Tabela 1: Possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais não associadas ao Helicobacter pylori e ao uso de AINE

EtiologiaComentário
Neoplasia (Adenocarcinoma, Linfoma, GIST, Leiomiossarcoma)Deve-se sempre considerar a possibilidade de malignidade no caso de úlceras gástricas (inclusive por este motivo devemos sempre biopsiar úlceras gástricas e sempre realizar exame para confirmar a sua cicatrização). O adenocarcinoma é o mais prevalente (95% dos casos). Características mais suspeitas são: fundo necrótico e bordas elevadas e irregulares.
Síndrome de Zollinger-EllisonSecundária a gastrinoma (único ou multifocal, localizado em pâncreas ou delgado). Paciente cursa com dor abdominal + diarreia, com múltiplas úlceras geralmente refratárias ou recorrentes. 25 a 30% dos pacientes que desenvolvem gastrinoma apresentam neoplasia endócrina múltipla tipo 1 (NEM1 – hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise).
Medicações não AINEs (Bifosfonatos, Corticoides, Clopidogrel, inibidores seletivos das recaptação de serotonina, cloreto de potássio)A associação isolada destas medicações com doença ulcerosa é controversa, mas certamente apresentam ação sinérgica com o uso de AINEs
Infecções– Colonização duodenal pelo H. pylori- Helicobacter não-pylori: o mais frequente é o Helicobacter heilmannii- Vírus (herpes simples tipo I, Citomegalovírus, EBV): a biópsia será definidora para o diagnóstico. – Sífilis- Tuberculose

Mastocitose sistêmicaCaracterizada por infiltração de mastócitos em muitos tecidos e sintomas de rubor, prurido, taquicardia, dor abdominal e diarreia. Dispepsia, úlceras e duodenite ocorrem em 30 a 50% dos casos. Considera-se que a produção de histamina pelos mastócitos resulte em estimulação excessiva da produção de ácido. A triptase sérica pode estar aumentada. Na biópsia da úlcera, pode-se identificar infiltração da mucosa por mastócitos.
Isquêmicas (Doença arterial ou venosa / Vasculites)As úlceras isquêmicas podem resultar de insuficiência vascular secundária a hipotensão, vasculite ou tromboembolismo. No entanto, elas são raras, pois há uma rica circulação colateral na região. As biópsias podem sugerir isquemia e, em caso de suspeita, uma angiotomografia abdominal pode auxiliar.
Uso de drogasCocaína, crack e anfetaminas provocam isquemia tecidual por vasoconstricção
Pós-cirúrgicoApós gastrectomia subtotal (úlcera de borda anastomótica). A etiologia pode ser multifatorial:- Isquemia local- Tensão anastomótica- Síndrome do antro gástrico retido: quando uma pequena porção da mucosa antral contendo células G permanece na porção proximal do duodeno. Essa mucosa do antro gástrico no final da alça duodenal é estimulada, então, pelo ambiente duodenal alcalino a secretar continuamente gastrina.
Doenças granulomatosas (Crohn, Sarcoidose)– Apenas de 0,3% a 5% dos casos de doença de Crohn envolvem o trato gastrointestinal superior.
– O envolvimento gastrointestinal é muito raro na sarcoidose, mas quando ocorre acomete principalmente o estômago. A sarcoidose gástrica pode se apresentar como úlcera ou como envolvimento difuso (semelhante à linite plástica).
HiperparatireoidismoO cálcio estimula a liberação da gastrina, mas não se tem certeza sobre a relevância clínica deste efeito.
Gastroenterite eosinofílicaÉ uma condição clínica rara e heterogênea, que pode envolver qualquer segmento do trato gastrointestinal. A patogênese ainda não é bem estabelecida, mas há associação com quadros atópicos, como asma, rinite e eczema. Os exames laboratoriais apresentam eosinofilia no sangue periférico em 70 a 80% dos casos e aumento de IgE sérico em até dois terços dos pacientes. A identificação de densa infiltração de eosinófilos na biópsia é grande marcador diagnóstico.
Úlcera de estresseÚlcera que ocorre devido à hospitalização, principalmente em pacientes na unidade de terapia intensiva.
Doenças crônicas (Cirrose, doença renal crônica, diabetes)Esses pacientes geralmente têm taxas de sucesso de erradicação de H. pylori mais baixas e menor eficácia de IBP do que aqueles sem doenças crônicas
RadioterapiaO estômago e o duodeno às vezes estão envolvidos no campo de radiação durante o tratamento de alguns tumores. As úlceras induzidas por radiação são difíceis de tratar e geralmente não cicatrizam com agentes secretores antiácidos convencionais, podendo ser necessários procedimento cirúrgicos.
Idiopática

Como investigar, então, a etiologia da úlcera?

1. Confirmar que realmente não há H. pylori:

é preciso se certificar de que o H. pylori foi pesquisado de forma adequada. Considera-se que a principal causa de úlcera H. pylori negativa é na verdade o erro na detecção do microrganismo. Devemos checar:

  • O exame foi realizado em contexto de sangramento? Se sim, o ideal é repetir. A úlcera péptica hemorrágica pode produzir até 25% de resultados falso negativos no teste da urease;
  • O paciente suspendeu IBP e antibióticos antes da endoscopia? Para fins práticos, deve-se retardar os testes diagnósticos de H. pylori por 4 semanas após o uso de antibióticos, preparações com bismuto, IBP e bloqueadores H2.
  • Qual método utilizado para pesquisa? Se possível, é interessante realizar pelo menos dois testes simultâneos para aumentar a sensibilidade. A pesquisa histológica deve incluir pelo menos duas biópsias de antro e corpo.

2. Confirmar que o paciente realmente não utilizou AINEs:

Muitas vezes, o paciente esquece que pode ter feito uso ou não associa a classe ao medicamento. É importante perguntar ativamente pelos remédios (citar nominalmente) e se não utilizou tratamentos, por exemplo, para cefaleia, artralgia, tratamento dentário ou cólica menstrual. Ervas medicinais chinesas, medicamentos manipulados e produtos de terapias alternativas podem conter compostos anti-inflamatórios, que não são reconhecidos pelos pacientes. Deve-se checar também o uso de AAS, mesmo que em baixas doses.

Se realmente não confirmarmos que o H. pylori foi negativo e que não há relato de AINEs, devemos reforçar alguns pontos importantes na história clínica:

  • Uso de outras medicações;
  • Uso de drogas;
  • Histórico de imunossupressão;
  • Histórico de cirurgias gástricas ou radiação;
  • Histórico de comorbidades, tais como Doença de Crohn, sarcoidose, mastocitose sistêmica, NEM 1 (hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise)
  • Sintomas associados, principalmente diarreia (que pode ser associada a Doença de Crohn, Síndrome de Zollinger-Ellison ou mastocitose sistêmica);
  • Histórico familiar de úlcera ou de NEM 1.

3. Biópsia da úlcera

Apesar de muitas vezes inespecífica, a biópsia da úlcera (principalmente gástrica) é fundamental para a investigação de etiologias menos usuais. A análise imuno-histoquímica pode trazer informações adicionais importantes.

Exames complementares adicionais devem ser realizados conforme suspeita clínica, como por exemplo:
– Gastrina sérica: Se suspeita de Zollinger-Ellison;
– PTH e cálcio: Investigação de hiperparatireoidismo;
– VDRL: Se suspeita de úlcera infecciosa;
– Triptase sérica: Pode auxiliar na suspeita de mastocitose sistêmica.

Em pacientes com úlcera sem etiologia bem estabelecida, recomenda-se repetir a endoscopia em 8 a 12 semanas após tratamento, com novas biópsias se a úlcera ainda estiver presente. Pode ser interessante também biopsiar o duodeno para detectar colonização duodenal isolada de HP.

Conclusão

Teste falso negativo para H. pylori e falha em detectar o uso de AINEs são provavelmente as causas mais comuns de úlceras que aparentemente não apresentam etiologia definida. Uma vez que se excluam essas possibilidades, devemos focar em uma anamnese detalhada e em uma avaliação cuidadosa do anatomopatológico.

Referências

  1. Chung CS, Chiang TH, Lee YC. A systematic approach for the diagnosis and treatment of idiopathic peptic ulcers. Korean J Intern Med 2015;30:559–70. doi:10.3904/kjim.2015.30.5.559.
  2. Kim HU. Diagnostic and treatment approaches for refractory peptic ulcers. Clin Endosc 2015;48:285–90. doi:10.5946/ce.2015.48.4.285.
  3. Charpignon C, Lesgourgues B, Pariente A, Nahon S, Pelaquier A, Gatineau-Sailliant G, et al. Peptic ulcer disease: One in five is related to neither Helicobacter pylori nor aspirin/NSAID intake. Aliment Pharmacol Ther 2013;38:946–54. doi:10.1111/apt.12465.
  4. de Carli DM, Pires RC, Rohde SL, Kavalco CM, Fagundes RB. Diferentes frequências da úlcera péptica relacionadas com H. pylori ou AINES. Arq Gastroenterol 2015;52:46–9. doi:10.1590/S0004-28032015000100010.
  5. Lanas A, Chan FKL. Peptic ulcer disease. Lancet 2017;390:613–24. doi:10.1016/S0140-6736(16)32404-7.

Como citar este artigo

Lages RB. Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder? Gastropedia 2023, Vol 1. Disponivel em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/ulceras-nao-relacionadas-a-helicobacter-pylori-e-anti-inflamatorios-aines-como-proceder/

Rafael Bandeira Lages

Médico do Departamento de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas de São Paulo

Residência de Gastroenterologia e Endoscopia Digestiva pelo Hospital das Clínicas-FMUSP


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2 comments

Felipe Paludo Salles
Felipe Paludo Salles 5 de julho de 2023 - 15:53

Excelente artigo! Situação cada vez mais comum nos atendimentos no consultório. Duas perguntas:
1- Na suspeita de Zollinger-Ellison, como fazer a investigação inicial?
2- Quando biopsiar úlcera duodenal?

Rafael Bandeira Lages
Rafael Bandeira Lages 9 de julho de 2023 - 22:22

Oi, Felipe, obrigado pelo comentário.

Excelentes questionamentos!

1.A investigação inicial de Zollinger-Ellison (SZE) é feita com a dosagem da gastrina sérica (obviamente em casos de suspeita clínica, como presença de múltiplas úlceras pépticas, úlceras distais ao duodeno, diarreia associada, aumento de pregas gástricas, presença de NEM1). Os valores de gastrina nesses casos costuma mser bem altos (> 10x valor de referência, usualmente > 1000). Contudo, temos que ficar atentos que existem outras etiologias que podem aumentar a gastrina sérica, tais como gastrite atrófica (devido à hipocloridria, então é interessante realizar biópsias gástricas, dosa anticélula parietal e pesquisar H. pylori), síndrome do antro retido (pós Billroth II) e uso de IBP (então é interessante dosar a gastrina após suspensão da medicação). Posteriormente, caso persista a suspeita, será necessário localizar o gastrinoma. O principal exame de imagem nesse contexto é o PET-CT com análogos da somatostatina (68Ga-DOTATATE PET/CT). A ecoendoscopia alta também pode colaborar.

2.Raramente é necessário biopsiar a úlcera duodenal, visto que raramente ela é maligna. Reservamos a biópsia apenas se ausência de cicatrização (lembrando que não é necessária endoscopia de controle de rotina para avaliar cicatrização de úlcera duodenal; devemos realizá-la apenas se refratariedade dos sintomas ou ausência de disponibilidade de métodos não-invasivos para controle de cura de H. pylori). Além disso, se o endoscopista julgar que a úlcera tem “características suspeitas”, tais como sinais infiltrativos, a realização de biópsia também é aconselhável.

Espero ter ajudado nas dúvidas. Abraço

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