Para os portadores da doença celíaca não há, por ora, alternativa: o tratamento é eliminar o glúten da dieta por toda vida. Mas será que somente essa orientação basta? Como o gastroenterologista pode acompanhar seu paciente com doença celíaca?
Existem seis elementos principais no cuidado com o nosso paciente celíaco que podem ser resumidos no acrônimo CELIAC:
- Consultar com um nutricionista qualificado;
- Educação sobre a doença;
- Adesão ao Longo da vida a uma dieta sem glúten;
- Identificação e tratamento de deficiências nutricionais;
- Acesso a um grupo de apoio;
- Acompanhamento Contínuo a longo prazo por uma equipe multidisciplinar.
(Adaptado de: National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement. Celiac Disease 2004)
Na primeira parte deste artigo vamos discorrer sobre como orientar a dieta do paciente com doença celíaca e na segunda vamos discorrer sobre como monitorar a resposta ao tratamento.
1. Tratamento do paciente com doença celíaca
Sobre a dieta sem glúten
Como sabemos, a base do tratamento do paciente com doença celíaca é a dieta sem glúten. Isso serve para todos os pacientes com doença celíaca: clássica, atípica e doença celíaca assintomática.
Pacientes com doença celíaca latente (anticorpo positivo, porém com histologia duodenal normal) não são aconselhados a seguir uma dieta sem glúten, mas devem seguir monitorados. Vale a pena perguntar: será que as biópsias duodenais foram feitas de forma correta?
Leia sobre o correto diagnóstico da doença celíaca aqui: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/como-diagnosticar-corretamente-a-doenca-celiaca/
Lembrar que pacientes com doença celíaca latente devem ser rebiopsiados caso apareçam quaisquer sintomas.
É muito importante orientar o paciente a ler os rótulos dos alimentos, com atenção especial aos aditivos, como estabilizantes ou emulsificantes que podem conter glúten.
Encaminhar o paciente para um acompanhamento com nutricionista com experiência em doença celíaca é essencial. Certamente é este profissional que mais ajudará nosso paciente nesta longa jornada desafiadora.
Sobre traços
Recomenda-se que não ultrapasse 10 a 50 partes por milhão (ppm).
Um estudo que avaliou a ingesta oculta de glúten entre 76 pacientes estimou que a contaminação por glúten de até 100 ppm não resultou em lesão histológica.
Porém sabe-se que a contaminação com traços pode ser fator de confundimento com a doença celíaca não-responsiva ou refratária.
Sobre leite e derivados
Alguns pacientes podem não tolerar leite e derivados do leite, uma vez que alguns deles podem ter intolerância a lactose secundária. Lembrar que, após a recuperação da mucosa, esse quadro pode se resolver.
Sobre a ingesta de álcool
Atenção para a ingesta de álcool: destilados e vinho são isentos de glúten. As cervejas contêm glúten, porém já existem cerveja sem glúten no mercado.
Sobre o imbróglio: ingerir ou não aveia?
O consumo de aveia parece ser seguro para a maioria dos pacientes, mas pode ser imunogênica em subgrupo deles (reação imune à proteína da aveia avenina).
A heterogeneidade da tolerância à aveia pode estar relacionada à contaminação (cultivo, colheita, transporte ou processamento). O paciente precisa ter certeza que a aveia é isenta de glúten antes de consumir. Alguns pesquisadores brasileiros defendem que, no Brasil, todos os celíacos devem evitar aveia.
Caso possível, por que manter a aveia? A adição da aveia não contaminada na dieta sem glúten deixa a dieta mais palatável, com mais nutrientes (fibra solúvel, gordura poliinsaturada, vitaminas do complexo B como a tiamina e ferro), além de mais laxativa.
Sobre medicamentos
Os comprimidos contêm uma quantidade mínima de glúten e não precisam ser evitados.
Sobre os sensores de glúten nos alimentos
Não há evidência que os sensores que detectam glúten nos alimentos melhoram a adesão à dieta ou a qualidade de vida.
Sobre probióticos
Não há evidência suficientes para falar a favor ou contra o uso de probióticos na doença celíaca.
2. Monitorização da resposta
Cerca de 70% dos pacientes terão melhora clínica em 2 semanas. Como regra geral, os sintomas melhoram mais rapidamente que a histologia.
Os pacientes devem ser avaliados também com hemograma, perfil do ferro, vitaminas (B12, A, D, K, E), folato, enzimas hepáticas, cobre e zinco.
Sobre a sorologia
Dependendo das concentrações pré-tratamento, os valores dos anticorpos tendem a se normalizar dentro de 3 a 12 meses.
A sorologia deve ser realizada de 6 a 12 meses após o início da dieta sem glúten. Embora a normalização dos títulos dos anticorpos não indique necessariamente a recuperação da mucosa, se eles se mantiverem alto, significa que o paciente continua a ingerir glúten (de forma intencional ou não).
Após a normalização dos anticorpos, estes devem ser dosados anualmente.
Sobre as biópsias duodenais
Nosso objetivo é a cicatrização da mucosa.
Embora a normalização dos anticorpos aumente a probabilidade de cicatrização da mucosa, essa correlação não é suficiente, devendo-se realizar as biópsias duodenais para checarmos a cicatrização da mucosa.
O American College of Gastroenterology recomenda em seu guideline que as biópsias devem ser realizadas após 2 anos de início da dieta sem glúten. No Brasil, é comum lermos nos livros-texto o controle endoscópico com 12 meses.
Em uma parte dos pacientes, a mucosa não cicatrizará, apesar da sorologia negativa e da ausência de sintomas. A ausência de cicatrização da mucosa está associada a aumento do risco de linfoma e de doença óssea.
Atentar para doença celíaca refratária em pacientes com boa adesão à dieta e que se mantém sintomáticos.
Como os estudos que mostram os supostos benefícios de acompanhar o paciente com biópsias endoscópicas são observacionais e não há estudos randomizados prospectivos avaliando o seguimento com e sem biópsias, a sugestão é que essa decisão (seguir com biópsias) deve ser compartilhada entre o médico e o paciente.
No Brasil, como temos fácil acesso aos exames endoscópicos, é nossa rotina o acompanhamento com biópsias.
Sobre a vacinação
Adultos com doença celíaca tem risco significativamente maior de infecção pneumocócica (pneumonia e sepse). Acredita-se que esse aumento seja devido ao hipoesplenismo, frequentemente subclínico, encontrado aproximadamente em um terço dos pacientes com doença celíaca.
A vacinação contra pneumococo é segura e eficaz e deve ser considerada em pacientes com doença celíaca, em especial em pacientes de 15- 64 anos que não receberam essa vacinação na infância.
Referências
- Rubio-Tapia, Alberto MD1; Hill, Ivor D. MD2; Semrad, Carol MD3; Kelly, Ciarán P. MD4; Greer, Katarina B. MD, MS5; Limketkai, Berkeley N. MD, PhD, FACG6; Lebwohl, Benjamin MD, MS7. American College of Gastroenterology Guidelines Update: Diagnosis and Management of Celiac Disease. The American Journal of Gastroenterology 118(1):p 59-76, January 2023. | DOI: 10.14309/ajg.0000000000002075
- Ciarán P. Kelly. Diagnosis of Celiac disease in adults. In: J Thomas Lamont (Ed). Up to date. 2024
- National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement. Celiac Disease 2004. Gastroenterology 2005;128:S1–S9 | DOI: https://doi.org/10.1053/j.gastro.2005.02.007
- Collin P, Thorell L, Kaukinen K, Mäki M SO. The safe threshold for gluten contamination in gluten-free products. Can trace amounts be accepted in the treatment of coeliac disease? Aliment Pharmacol Ther. 2004;19(12):1277 -83. DOI: 10.1111/j.1365-2036.2004.01961.x.
- Zaterka, S , Passos MCF, Chinzon D. Tratado de gastroenterologia: da graduação à pós-graduação – 3a edição. Rio de Janeiro: Atheneu, 2023.
Como citar este artigo
Arraes L. Para além da dieta sem glúten: como acompanhar seu paciente celíaco Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/para-alem-da-dieta-sem-gluten-como-acompanhar-seu-paciente-celiaco
Especialista em Gastroenterologia HC-FMRP-USP e em Endoscopia Gastrointestinal HC-FM-USP
Membro titular da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG) e da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED)
Doutorado em andamento-USP