Quando pensamos em Insuficiência Pancreática Exócrina – IEP (diminuição na atividade das enzimas pancreáticas na luz intestinal, abaixo dos valores para uma digestão normal) automaticamente relacionamos com problemas primários do pâncreas, como pancreatite crônica ou neoplasia pancreática. E isso é correto, essas patologias são sim causa de IEP. Entretanto temos diversas outras causas que devem ser lembradas pelo gastroenterologista.
Para entendermos corretamente, vamos recorrer a fisiologia pancreática. A produção de enzimas digestivas pelo pâncreas não é dependente apenas da morfologia da glândula. Inicialmente o pâncreas é estimulado por vias neurais derivadas do nervo vago, e posteriormente tem sua principal via de estimulação através da passagem do quimo pelo duodeno. Nesta fase, a liberação de secretina e colecistoquinina (CCK) é responsável por cerca de 70% de toda a produção de suco pancreático daquela refeição. Portanto, é correto afirmar que qualquer falha nesse circuito pode ser a causa de IEP.
Hoje classificamos as etiologias da IEP como de causas pancreáticas e extra-pancreáticas:
Dentre as causas pancreáticas, temos:
- Pancreatite crônica
- Neoplasias pancreáticas
- Fibrose Cística
- Ressecções Pancreáticas
- Hemocromatose
- Pancreatite aguda grave, cursando com necrose extensa do parênquima glandular
E dentre as causas extra-pancreáticas, podemos listar:
- Doença Celíaca
- Doença de Crohn de acometimento de intestino delgado alto
- Diabetes tipo I e II
- Envelhecimento pancreático
- Cirurgias gastroduodenais
As causas pancreáticas são mais conhecidas, e são causadas por doenças que levam a fibrose progressiva do pâncreas, como a pancreatite crônica; à atrofia pancreática somada a obstrução do ducto pancreático principal (como as neoplasias, especialmente da região cefálica) e a perda de parênquima pancreático, secundária a pancreatite aguda ou ressecções pancreáticas. Além delas, a fibrose cística é a principal doença de causa genética e causa a lipossubstituição do parênquima pancreático, além de alteração no transporte do suco pancreático através dos ductos.
As causas não pancreáticas mais bem estabelecidas são: a doença celíaca (devido a atrofia duodenal e a perda da estimulação pelos hormônios duodenais – secretina e CCK), o diabetes mellitus e as cirurgias derivativas.
Nos estudos mais recentes, o diabetes tem sido apontado como causa de IEP, tanto o DM-1 quanto o DM-2. As razões para isso são diversas e envolvem:
- Atrofia do parênquima exócrino devido a falta da insulina: o hormônio produzido pelas células endócrinas pancreáticas exerce uma ação trófica parácrina nas células acinares. A diminuição da insulina ocasiona diminuição no trofismo do parênquima exócrino.
- O diabetes pode levar a neuropatia autonômica, prejudicando as vias vagais e a estimulação da acetilcolina sobre as células pancreáticas.
- A microangiopatia que leva a um curso de isquemia crônica na glândula, diminuindo a produção enzimática.
- A infiltração de adipócitos no pâncreas, além de linfócitos, aumenta a ação de fibroblastos e ocasiona uma maior deposição de colágeno no órgão.
A frequência de IEP nos diabéticos ainda é incerta, e ao que parece é maior nos pacientes com DM-1 (30-56%) e menor nos pacientes com DM-2 (30-40%). Apesar da heterogeneidade dos estudos, a prevalência de IEP nos pacientes diabéticos não deve ser menosprezada.
Em relação aos procedimentos cirúrgicos de abdome superior, observamos uma frequência cada vez maior de IEP em gastrectomias, duodenopancreatectomias e cirurgias derivativas, como o bypass gastrojejunal.
- Nas gastrectomias parciais ou totais temos estudos mostrando 30-73% de IEP após 3 meses da cirurgia.
- Já após as duodenopancreatectomias esse percentual pode chegar a 100%, entretanto a média pós-procedimento indicado por neoplasia pancreática ou periampular foi de 74%.
- Esse percentual é maior do que o encontrado em duodenopancreatectomias por doenças benignas (53%).
- Há um trabalho que evidencia 16% de IEP pós esofagectomia, embora tenha um N pequeno.
Por fim, a frequência de IEP pós bypass gastrojejunal tem se mostrado uma preocupação no seguimento desses pacientes. Especialmente após alguns anos de cirurgia, uma porcentagem desses pacientes pode apresentar IEP. Em uma coorte retrospectiva, 20,6% dos pacientes tinham esteatorreia, mas apenas 10,3% deles foram diagnosticados com IEP pós bypass com reconstrução em Y-Roux. Entretanto, apesar da frequência não ser alta, o tratamento dos pacientes com IEP diagnosticada é crucial para uma evolução nutricional satisfatória.
Como pudemos observar, as causas de Insuficiência Exócrina Pancreática vão além de problemas estruturais na glândula. É imperativo que o gastroenterologista lembre da IEP nos contextos apresentados acima, e que não deixe passar a oportunidade do tratamento correto desses pacientes.
Referências
- Vikesh K Singh, Mark E Haupt, David E Geller, Jerry A Hall, Pedro M Quintana Diez. Less common etiologies of exocrine pancreatic insufficiency. World J Gastroenterol 2017 October 21; 23(39): 7059-7076
- Martha Campbell-Thompson, Teresa Rodriguez-Calvo, and Manuela Battaglia. Abnormalities of the Exocrine Pancreas in Type 1 Diabetes. Curr Diab Rep. 2015 October ; 15(10): 79.
- J. R. Huddy, F. M. S. Macharg, A. M. Lawn, S. R. Preston. Exocrine pancreatic insufficiency following esophagectomy. Diseases of the Esophagus (2013) 26, 594–597
- Miroslav Vujasinovic, Roberto Valente, Anders Thorell, Wiktor Rutkowski, Stephan L. Haas, Urban Arnelo, Lena Martin and J.-Matthias Löhr. Pancreatic Exocrine Insufficiency after Bariatric Surgery. Nutrients 2017, 9, 1241;
- Joshua Y Kwon , Alfred Nelson , Ahmed Salih , Jose Valery, Dana M Harris, Fernando Stancampiano , Yan Bi. Exocrine pancreatic insufficiency after bariatric surgery. Pancreatology, 2022 Nov;22(7):1041-1045.
Como citar este artigo
Marzinotto M. Insuficiência Pancreática Exócrina: um olhar além do óbvio. Gastropedia 2023, vol 1. Disponivel em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/insuficiencia-pancreatica-exocrina-um-olhar-alem-do-obvio
Medica responsável pelo Grupo de Pâncreas da Disciplina de Gastroenterologia Clínica do HCFMUSP