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Pancreatite induzida por análogos de GLP-1: mito ou preocupação?

por Maira Marzinotto
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Introdução

Nos últimos anos, observamos um aumento expressivo no uso de medicamentos análogos de GLP-1 (liraglutida, semaglutida e dulaglutida) para o tratamento do diabetes tipo 2 e da obesidade. Sem dúvidas, essas medicações revolucionaram o tratamento da síndrome metabólica, demonstrando uma ótima performance em controle glicêmico, perda de peso e redução de riscos cardiovasculares nesta população. Entretanto, muitas dúvidas surgem em relação a essas medicações e eventuais efeitos adversos pancreáticos. Entre elas, a mais frequente é: os análogos de GLP-1 causam pancreatite?

Essa preocupação teve origem nos primeiros estudos observacionais, que levantaram a hipótese de que a pancreatite aguda (PA) poderia ser um efeito adverso associado ao uso desses medicamentos. Diante dessa possibilidade, tanto o FDA (Food and Drug Administration) quanto a EMA (European Medicines Agency) incluíram em bula um alerta sobre esse potencial risco.

Desde então há um receio quanto à introdução da medicação, especialmente em pacientes com história prévia de PA. Aqui vamos tentar esclarecer o que há de evidência até este momento.

Evidência científica

Com base em estudos experimentais realizados em animais na década de 2010, especulou-se que a estimulação frequente das células exócrinas do pâncreas dos análogos de GLP-1 pudesse induzir pancreatite. Isso foi reforçado por alguns estudos observacionais, especialmente em pacientes com diabetes tipo II. Entretanto, não foi possível estabelecer relação causal direta, já que pacientes diabéticos já têm maior risco de PA e maior incidência de colelitíase. Além disso, não foram considerados fatores ambientais, como abuso de álcool e tabagismo.

Por este motivo, foram necessários estudos mais robustos e com melhor controle de vieses, para determinar esse risco.

Em 2014 uma revisão sistemática não encontrou evidências suficientes para estabelecer um maior risco de PA nos pacientes diabéticos que usaram análogos de GLP-1 ou inibidores de DPP-4.

Com necessidade de trabalhos de maior impacto, foi feita uma revisão sistemática e metanálise em 2017 de 3 grandes ensaios clínicos, placebo-controlados (LEADER, SUSTAIN-6 e ELIXA), que não encontrou evidência de que os análogos de GLP-1 aumentariam o risco de pancreatite aguda em pacientes diabéticos tipo 2.

Em publicação recente no Pancreatology (2025), uma análise caso-controle retrospectiva em pacientes com sobrepeso e obesidade, observou que apenas 2,2% dos pacientes tiveram PA. Entretanto, a maior parte deles possuía outros fatores de risco como: colelitíase, tabagismo e diabetes tipo 2. Neste estudo, foi possível identificar possíveis preditores de pancreatite aguda nos pacientes que usam análogos de GLP-1:

  • História prévia de pancreatite (OR 4,8)
  • Presença de litíase biliar (OR 2,9)
  • Tabagismo (OR 2,4)

Da mesma forma, essa análise concluiu que em pacientes com IMC > 35 ou IMC > 40, o uso de análogos de GLP-1 foi fator de proteção para o desenvolvimento de pancreatite aguda. E, curiosamente, o consumo de álcool não se mostrou como preditor da doença.

Uma análise observacional retrospectiva de 2024 mostrou que 9,9% dos adultos com DM2 desenvolveram pancreatite aguda de repetição (PAR) após introdução do análogo de GLP-1; no entanto, apenas 4% deles tiveram a droga como a provável causa do evento. Essa porcentagem (9,9%) é semelhante à frequência de PAR observada na literatura (12,7%) independente da etiologia. Esse estudo conclui que esses medicamentos não são causa definitiva de PA de repetição.

É importante lembrar que os análogos de GLP-1 causam hiperplasia das células acinares pancreáticas, podendo levar a aumento sérico de enzimas pancreáticas (amilase e lipase) em até 44% dos pacientes. Por este motivo, não é recomendada a dosagem de enzimas pancreáticas de rotina nestes pacientes, excetuando-se em casos de quadro clínico sugestivo de pancreatite (presença de dor abdominal associada a náuseas e vômitos).

Em resumo:

Com as evidências atuais, não é possível concluir que os pacientes que utilizam os análogos de GLP-1 têm maior risco de pancreatite aguda ou de pancreatite aguda de repetição. Os medicamentos devem ser usados com maior cautela em pacientes com história prévia de pancreatite, diabéticos e tabagistas.

O aumento de enzimas pancreáticas sem outros critérios para pancreatite aguda é frequente com os análogos de GLP-1 e nesse contexto não é necessária a suspensão da medicação.

Referências:

  1. Parks M, Rosebraugh C. Weighing risks and benefits of liraglutide–the FDA’s review of a new antidiabetic therapy. N Engl J Med 2010;362(9):774–7. PMID: 20164475.
  2. R. Postlethwaite, A.M. Amin, R. Alsawas et al., Predictors of acute pancreatitis in patients treated with GLP-1 receptor agonists for weight management. Pancreatology, https://doi.org/10.1016/j.pan.2025.06.018
  3. Li, L.; Shen, J.; Bala, M.M.; Busse, J.W.; Ebrahim, S.; Vandvik, P.O.; Rios, L.P.; Malaga, G.; Wong, E.; Sohani, Z.; et al. Incretin treatment and risk of pancreatitis in patients with type 2 diabetes mellitus: Systematic review and meta-analysis of randomised and non-randomised studies. BMJ 2014, 348, g2366. Ayoub, M.; Chela, H. et al Pancreatitis Risk Associated with GLP-1 Receptor Agonists, Considered as a Single Class, in a Comorbidity-Free Subgroup of Type 2 Diabetes Patients in the United States: A Propensity Score-Matched Analysis. J. Clin. Med. 2025, 14, 944. https://doi.org/10.3390/jcm14030944
  4. Storgaard H, Cold F, Gluud LL, Vilsbøll T, Knop FK. Glucagon-like peptide-1 receptor agonists and risk of acute pancreatitis in patients with type 2 diabetes. Diabetes Obes Metab 2017;19(6):906–8. https://doi.org/10.1111/dom.12885.
  5. David C. Whitcomb, Glucagon-like peptide-1 receptor agonists (GLP-1RA) and acute pancreatitis, Pancreatology, 2025. https://doi.org/10.1016/j.pan.2025.07.005.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite induzida por análogos de GLP-1: mito ou preocupação? Gastropedia 2025, Vol II. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/polemicas-em-pancreatite-aguda/

Medica responsável pelo Grupo de Pâncreas da Disciplina de Gastroenterologia Clínica do HCFMUSP


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