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Doenças Hepáticas Específicas da Gestação

por Karla Sawada Toda Oti
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As doenças hepáticas na gestação compreendem tanto doenças hepáticas específicas gestacionais e desordens hepáticas agudas ou crônicas que ocorrem de forma coincidente com a gestação.

As doenças hepáticas específicas gestacionais afetam 3% das gestantes e incluem:

  • Pré-eclâmpsia e síndrome HELLP (hemólise, elevação de enzimas hepáticas e plaquetopenia);
  • Hiperêmese gravídica (HG);
  • Colestase intra-hepática da gravidez (CIHG);
  • Esteatose hepática aguda da gravidez (EHAG).

Estas desordens requerem imediata investigação e manejo com o objetivo de reduzir morbimortalidade materna e fetal, de forma que a identificação do tempo gestacional (semanas/trimestre) é fundamental para guiar o raciocínio clínico.


Figura 1. Doenças hepáticas gestacionais de acordo com o período gestacional (trimestre).

Na história clínica, sempre questionar sobre gestações prévias, comportamentos de alto risco, medicações, suplementos e ervas/chás.


Na avaliação das doenças hepáticas na gestação, é necessário estar atento às mudanças fisiológicas e hormonais da gravidez:

  • Circulação hiperdinâmica, com aumento do débito cardíaco e do volume plasmático circulante;
  • Redução da resistência vascular periférica;
  • Hiperestrogenismo, podendo manifestar eritema palmar e nevos/aranhas vasculares;
  • Laboratorialmente:
    • AST, ALT, GGT, Bilirrubinas, Protrombina/INR ⮕inalterados
    • Hemoglobina, Albumina ⮕reduzidas
    • Fosfatase alcalina, Alfafetoproteína ⮕aumentadas

*Testes incluem hepatites virais (anti-VHA IgM, anti-HCV, HbsAg, anti-HBc, anti-HEV IgM, Epstein-Barr vírus, citomegalovírus e herpes vírus), FAN, anti-músculo liso, IgG, ceruloplasmina; screening de álcool e drogas, incluindo paracetamol; anticorpos para doença celíaca; ultrassonografia de abdome com doppler colorido hepático

Figura 2. Fluxograma de investigação inicial de alteração de exames hepáticos na gestação.


Hiperêmese gravídica

  • Incomum (0,3-2% das gestações)
  • Náuseas e vômitos com perda de 5% ou mais do peso pré-gestacional, desidratação e cetose
  • 1º trimestre e tipicamente resolve até a 20ª semana
  • Fatores de risco: gestação molar, múltiplas gestações, doença trofoblástica, HG prévia e anormalidades fetais (trissomia 21, triploidia e hidropsia fetal)
  • Laboratorialmente:
    • Elevação discreta de AST e ALT, porém raramente até 20x limite superior da normalidade (LSN) – 50 a 60% das gestantes hospitalizadas
  • Riscos ao feto (baixo peso ao nascer, pequeno para a idade gestacional, pré-termo, menor Apgar), porem, prognóstico favorável
  • Prognóstico materno:
  • Manejo
    • Suporte ambulatorial ou sob regime de internação para sintomáticos (antieméticos), reidratação e correção de distúrbios hidroeletrolíticos
    • Raramente pode-se necessitar de terapia nutricional enteral ou parenteral


Colestase intra-hepática gestacional

  • 0,3-5,6% das gestações ⮕doença hepática gestacional mais frequente
  • Prurido com predomínio na região palmar/plantar, elevação de transaminases e ácidos biliares; icterícia (25%).
  • Fatores de risco: idade materna avançada, história de colestase 2ª à anticoncepcionais orais, e história pessoa ou familiar de CIHG
  • Laboratorialmente:
    • Elevação de AST e ALT
    • Diagnóstico de CIHG ⮕ nível de ácidos biliares ≥10µmol/L (valor de referência, normal <10 em jejum)
  • Ácido biliares maternos podem atravessar a placenta ⮕ acúmulo no feto e líquido amniótico ⮕ maior risco de morte intrauterina, parto prematuro, mecônio e síndrome do desconforto respiratório neonatal
  • Prognóstico materno: excelente
  • Manejo:
    • Terapia de 1ª linha: ácido ursodesoxicólico 10-15mg/kg do peso materno, visando melhora dos sintomas maternos e laboratoriais
    • Parto até 37 semana é recomendado


Doenças hipertensivas da gestação: pré-eclâmpsia, eclampsia, HELLP

  • Pré-eclâmpsia/eclampsia (8%) ⮕ até 20% desenvolvem síndrome HELLP
    • Dor de cabeça, visão embaçada, dor abdominal, náuseas/vômitos e/ou edema
    • Critérios de Pré-eclâmpsia: hipertensão de início recente (≥140x90mmHg) e proteinúria (≥300mg/24h ou ≥1+ proteína) após 20 semanas de gestação
    • Pode cursar com envolvimento de múltiplos órgãos maternos:
      • Circulação: hipertensão, remodelamento cardíaco
      • Renal: proteinúria e injúria renal aguda
      • Sistema Nervoso central: dor de cabeça, hiperreflexia, distúrbios visuais, eclampsia
      • Fígado: dor no quadro superior direito, HELLP, hematoma subcapsular, infarto hepático ou ruptura
      • Hematológico: HELLP
  • Eclâmpsia: envolvimento neurológico com convulsões ⮕ sulfato de magnésio (prevenção)
  • HELLP: anemia hemolítica, aumento de enzimas hepáticas e plaquetopenia
    • Hipoperfusão placentária ⮕ liberação de citocinas, ativação da cascata de coagulação ⮕ microangiopatia, disfunção e dano endotelial
    • Microangiopatia hemolítica ⮕ anemia normocítica, elevação de LDH e bilirrubina, redução de haptoglobina
    • Agregação e aglutinação plaquetária ⮕ redução de plaquetas
    • Microtrombos na circulação hepática ⮕ dano hepatocitário ⮕ elevação de enzimas hepáticas
    • Prognóstico materno: mortalidade 1-3%; insuficiência hepática 4,5%
  • Manejo:
    • Corticoide ⮕ gestação <34 semanas (maturação pulmonar)
    • Sulfato de magnésio
    • Controle pressórico
    • Parto = tratamento curativo ⮕ antecipar para 36-37 semanas, individualizar


Esteatose hepática aguda da gravidez

  • Raro ⮕ 25% podem ocorrer no pós-parto
  • Desde sintomas inespecíficos (náuseas, vômitos e dor abdominal) até insuficiência hepática aguda (coagulopatia, encefalopatia, ascite)
    • Quadro pode se sobrepor em variáveis clínicas e bioquímicos com pré-eclâmpsia e HELLP
  • Fatores de risco: gravidez múltipla e baixo índice de massa corporal
  • Etiologia não é clara, porém, há influência de anormalidades na oxidação de ácidos graxos, em especial, da deficiência de ácidos graxos de cadeia longa (long-chain fatty acid deficiency – LCHAD)
    • Feto homozigoto e mãe heterozigota para LCHAD ⮕ redução materna da capacidade de oxidar ácidos graxos
      ⮕ aumento da lipólise, em especial, no 3º trimestre, além de redução da beta-oxidação de ácidos graxos de cadeia longa ⮕ acúmulo dos metabólitos hepatotóxicos 3-hidroxiacil-coenzima A de cadeia longa desidrogenase produzidos pelo feto ou placenta na circulação materna e fígado (esteatose microvesicular)
  • Laboratorialmente:
    • Elevação de AST e ALT
    • Aumento de bilirrubinas
    • Injúria renal
  • Diagnóstico ⮕ Critérios de Swansea (Tabela 1)
  • Manejo:
    • Parto imediato
    • Correspondência de risco de mortalidade fetal com MELD-score ⮕ MELD >30 = maior taxa de complicações
    • Avaliar necessidade de transplante hepático (raro)
    • Aconselhamento genético para recém-nascido (RN) – screening LCHAD

Critérios de Swansea para esteatose hepática aguda gestacional

Diagnóstico: presença de 6 ou mais critérios na ausência de outros causas
Vômitos
Dor abdominal
Polidipsia/poliúria
Encefalopatia
Aumento de bilirrubinas >0,8mg/dL
Hipoglicemia <72mg/dL
Aumento de ácido úrico >5,7mg/dL
Leucocitose >11.000 células/uL
Aumento de transaminases (AST ou ALT) >42UI/L
Aumento da amônia >47µmol/L
Injúria renal; creatinina >1,7mg/dL
Coagulopatia; tempo de protrombina >14 segundos
Ascite ou fígado ecogênico na ultrassonografia
Esteatose microvesicular na biópsia hepática
Tabela 1. Critérios de Swansea para esteatose hepática aguda gestacional


Informações-chave sobre as Doenças hepáticas gestacionais

DoençaTrimestre (semanas)Quadro clínico possívelAvaliação InicialManejo
HG

(0-12)
– Náuseas e vômitos persistentes
– Perda de peso >5% do peso pré-gestacional
– Elevação ALT 2-5xLSN
– Avaliação de elevação de ALT (Figura 2)
– Afastar risco de obstrução intestinal
– EDA em casos selecionados
– Hidratação
– Correção DHE
– Antieméticos
– Dieta enteral/parenteral em casos selecionados
CIHG2º ou 3º
(13-28/29-40)
– Prurido generalizado (pode predominar em região palmar e plantar)
– Icterícia (raro)
– Elevação de ALT 1,5-8xLSN
– GGT normal
– Elevação de ácidos biliares
– Avaliação de elevação de ALT (Figura 2)
– Excluir doenças biliares
– Monitorar ácidos biliares
° ≥ 10µmol/L = CIHG
° ≥ 40µmol/L = maior risco fetal
– Considerar AUDC 10-15mg/kg
– Manejo do prurido
– Considerar antecipação do parto (até 37 semanas)

risco de óbito fetal (1-2%)
EHAG3º ou pós-parto (dias)– Sintomas inespecíficos (náuseas, vômitos, anorexia)
– Podem ocorrer sinais e sintomas de IAH (ascite, encefalopatia, coagulopatia)
– Elevação de ALT 3-15xLSN
– Elevação de bilirrubinas 4-15xLSN
– Podem ocorrer:
° Injúria renal
° Hipoglicemia
° Hiperuricemia
– Avaliação de elevação de ALT (Figura 2)
– Se sinais de insuficiência hepática aguda, considerar:
° Hepatites virais, incluindo herpes
° Drug-induced liver injury
° Hepatite autoimune
° Doença de Wilson
° Vascular/isquemia
– Critérios de Swansea (Tabela 1)
– Parto imediato
Materno:
– Monitorar e tratar complicações hepáticas: encefalopatia, ascite, injúria renal
– Considerar transferência para serviço/transplante de fígado
– Vigiar quadro clínico/piora no pós-parto
RN:
– Monitorização para manifestações de deficiência de 3-hidroxiacil-coenzima A de cadeia longa desidrogenase
(hipoglicemia e esteatose hepática)

Pré-eclâmpsia/
HELLP

>20 semanas/ >22 semanas
– Dor de cabeça, alteração visual
– Dor abdominal
– Hipertensão
– Elevação de ALT 2-30xLSN
– Elevação de bilirrubinas 1,5-10xLSN
– Podem ocorrer:
° Proteinúria
° Plaquetopenia
° Injúria renal
° Aumento LDH
– Avaliação de elevação de ALT (Figura 2), plaquetas baixas
– Exclusão de doenças hepáticas crônicas e outras causas de insuficiência hepática
– Imagem abdominal para avaliar a vascularização e sinais de hipertensão portal
– Monitorar complicações (infarto ou hematoma hepático)
– Após 36 semanas, considerar antecipação do parto
– HELLP:
° Considerar parto após 34 semanas
° Transfusão de plaquetas para 40-50.000 células antes do parto
° Considerar transplante hepático em casos graves

AUDC, ácido ursodesoxicólico; DHE, distúrbio hidroeletrolítico; EDA, endoscopia digestiva alta; HG, hiperêmese gravídica; CIHG, colestase intra-hepática gestacional; EHAG, esteatose hepática aguda gestacional; HELLP,
Hemolysis Elevated Liver enzymes and Low platelet count syndrome; IAH, insuficiência hepática aguda; LSN, limite superior da normalidade
Tabela 2. Informações-chave sobre as Doenças hepáticas gestacionais


Referências

  1. European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines on the management of liver diseases in pregnancy. J Hepatol. 2023 Sep;79(3):768-828. doi: 10.1016/j.jhep.2023.03.006. Epub 2023 Jun 30. PMID: 37394016
  2. Sarkar M, Brady CW, Fleckenstein J, Forde KA, Khungar V, Molleston JP, Afshar Y, Terrault NA. Reproductive Health and Liver Disease: Practice Guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology. 2021 Jan;73(1):318-365. doi: 10.1002/hep.31559. Epub 2021 Jan 3. PMID: 32946672
  3. Terrault NA, Williamson C. Pregnancy-Associated Liver Diseases. Gastroenterology. 2022 Jul;163(1):97-117.e1. doi: 10.1053/j.gastro.2022.01.060. Epub 2022 Mar 8. PMID: 35276220
  4. Tran, Tram T MD, FACG, FAASLD1; Ahn, Joseph MD, MS, FACG2; Reau, Nancy S MD, FAASLD, FAGA3. ACG Clinical Guideline: Liver Disease and Pregnancy. American Journal of Gastroenterology 111(2):p 176-194, February 2016.| DOI: 10.1038/ajg.2015.430
  5. https://www.aasld.org/liver-fellow-network/core-series/clinical-pearls/pregnancy-pruritus-and-pain-oh-my-case-based
  6. https://www.aasld.org/liver-fellow-network/core-series/clinical-pearls/it-takes-two-liver-diseases-pregnancy

Como citar este artigo

Oti KST, Doenças Hepáticas Específicas da Gestação Gastropedia 2025, Vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/doencas-hepaticas-especificas-da-gestacao/

Karla Sawada Toda Oti

Gastroenterologia Clínica pelo Hospital das Clínicas da FMRP-USP. Hepatologia pelo Hospital das Clínicas da USP HCFMUSP. Doutorado em Ciências em Gastroenterologia HCFMUSP. Aperfeiçoamento de Elastografia Hepática Transitória HCFMUSP. Médica colaboradora do Ambulatório de NASH HCFMUSP. Membro FBG e SBH


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