Início » ECCO 2023 – Algumas reflexões sobre o tratamento cirúrgico da Doença de Crohn

ECCO 2023 – Algumas reflexões sobre o tratamento cirúrgico da Doença de Crohn

por Mariane Gouvea Monteiro de Camargo
Compartilhe:

Na primeira semana de março, aconteceu o congresso da European Crohn’s and Colitis Organization, em Copenhague, na Dinamarca. 

A maior parte da programação aborda os aspectos clínicos, pesquisas de base e tratamento clínico da retocolite ulcerativa e doença de Crohn. Mas algumas sessões tiveram foco nos aspectos cirúrgicos do tratamento dessas doenças.

Nesse post, vou falar um pouco sobre a questão da ressecção do mesentério e mesorreto e a anastomose ileocólica na doença de Crohn conforme abordado no congresso. 

Ressecar o mesentério ou não?

Nos últimos 50 anos, o tratamento cirúrgico da doença de Crohn se baseava na premissa de que não era necessário fazer a ressecção do mesentério, como no câncer. Até porque o mesentério, nos pacientes com Crohn, é extremamente espesso e vascularizado, de forma que sua secção aumenta consideravelmente o sangramento intraoperatorio.

Porém, essa conduta passou a ser questionada após uma publicação de Coffey et al. em 2018. Nesse estudo retrospectivo, concluiu-se que a inclusão do mesentério na ressecção ileocólica na doença de Crohn foi associada a redução da recorrência com necessidade de reoperação (p=0,003). Esse estudo também mostrou, nas peças ressecadas, a correlação das áreas de espessamento mesenterial com fat wrapping à doença luminal (p=0,001) e de que o fat wrapping foi fator de risco independente para recorrência com necessidade cirúrgica (p=0,003). 

Mas será que essas conclusões são definitivas? Agora devemos mudar a forma de operar Crohn e não precisamos mais discutir sobre esse assunto?

Olhando mais a fundo no estudo, além da limitação de ser retrospectivo, há duas populações bem diferentes entre si. A primeira, operada de 2004 a 2010, da forma convencional, com a maior parte dos pacientes com doença não fistulizante e não estenosante. A segunda, grupo operado com ressecção do mesentério a partir de 2010, com a maior parte dos pacientes com doença fistulizante ou estenosante. Outro problema do estudo é que não foram apresentados os critérios para indicação de cirurgia para as recidivas. Além disso, na população da cirurgia conservadora, houve uma predominância de margens comprometidas microscopicamente (79% x 16%). Hoje já temos diversos estudos demonstrando que isso aumenta o risco de recorrência cirúrgica na doença de Crohn. 

Os autores atentam para a necessidade de estudos prospectivos randomizados para a confirmação dos resultados e mudança de conduta. Há, no momento, sete estudos randomizados em andamento pelo mundo, sendo dois deles já finalizados, porém ainda sem os resultados.

Há alguns outros aspectos na cirurgia de Crohn que vão contra os achados sobre a ressecção do mesentério, como, por exemplo, as estenoplastias. Nessas técnicas, não há nenhum tipo de ressecção mesenterial e os resultados nas séries publicadas não são ruins.

Outra técnica, bastante comentada recentemente, é a anastomose Kono-S, uma nova forma de fazer anastomose ileocólica que também demonstrou-se reduzir a recorrência pós-operatória. Na descrição da técnica, destaca-se a preservação do meso da área ressecada como uma forma de melhorar a vascularização local e evitar ressecções extensas. 

Mas, então, qual técnica devemos escolher fazer na hora de fazer uma ressecção ileocecal na doença de Crohn?

Numa aula brilhante do francês Prof. Yves Panis, ele conclui que o “cirurgião moderno” pode associar as duas técnicas, como descrito em uma  publicação de 2022 da Cleveland Clinic. Por ora, ainda não temos evidências que suportam a mudança de conduta para assumir alguma das técnicas, mas ambas são seguras reprodutíveis.

Quando mudamos o foco para o reto, por muitos anos se evitou fazer a excisão total do mesorreto (ETM) nos pacientes com Crohn pelo risco de deixar um oco pélvico que pudesse ser fonte de sangramento com formação de hematomas e abscessos. Mas, em 2019, um estudo de Amsterdã comparando pacientes que foram submetidos a proctectomia por Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa com ou sem ETM, mostrou que pacientes com Crohn, e não com retocolite, que tiveram o mesorreto ressecado tiveram menos complicações perineais precoces e tardias e menor tempo para cicatrização do períneo. O estudo mostrou que, apenas nos pacientes com Crohn, o tecido mesorretal, mas não o omental, continha um número aumentado de macrófagos CD14+ produtores de fator de necrose tumoral α, com menos expressão do marcador de cicatrização de feridas CD206. 

Em conclusão:

  • Mesentério e anastomose Kono-S: são necessários mais estudos randomizados para concluirmos se essas técnicas trazem menores índices de recorrência e devem se tornar padrão na cirurgia para a doença de Crohn ileocecal.
  • Mesorreto: a ETM deve ser proposta durante a ressecção abdominoperineal para Doença de Crohn, talvez com exceção de pacientes jovens do sexo feminino com desejo reprodutivo para diminuir aderências pélvicas. Os resultados do estudo de Amsterdã foram convincentes e a técnica não aumenta a morbidade pós-operatória, além de melhorar cicatrização perineal. 

Referências

  1. Coffey CJ, Kiernan MG, Sahebally SM, Jarrar A, Burke JP, Kiely PA, Shen B, Waldron D, Peirce C, Moloney M, Skelly M, Tibbitts P, Hidayat H, Faul PN, Healy V, O’Leary PD, Walsh LG, Dockery P, O’Connell RP, Martin ST, Shanahan F, Fiocchi C, Dunne CP. Inclusion of the Mesentery in Ileocolic Resection for Crohn’s Disease is Associated With Reduced Surgical Recurrence. J Crohns Colitis. 2018 Nov 9;12(10):1139-1150. doi: 10.1093/ecco-jcc/jjx187. PMID: 29309546; PMCID: PMC6225977.
  2. Zhu Y, Qian W, Huang L, Xu Y, Guo Z, Cao L, Gong J, Coffey JC, Shen B, Li Y, Zhu W. Role of Extended Mesenteric Excision in Postoperative Recurrence of Crohn’s Colitis: A Single-Center Study. Clin Transl Gastroenterol. 2021 Oct 1;12(10):e00407. doi: 10.14309/ctg.0000000000000407. PMID: 34597277; PMCID: PMC8483874.
  3. de Buck van Overstraeten A, Vermeire S, Vanbeckevoort D, Rimola J, Ferrante M, Van Assche G, Wolthuis A, D’Hoore A. Modified Side-To-Side Isoperistaltic Strictureplasty over the Ileocaecal Valve: An Alternative to Ileocaecal Resection in Extensive Terminal Ileal Crohn’s Disease. J Crohns Colitis. 2016 Apr;10(4):437-42. doi: 10.1093/ecco-jcc/jjv230. Epub 2015 Dec 16. PMID: 26674959; PMCID: PMC4946765.
  4. Luglio G, Rispo A, Imperatore N, Giglio MC, Amendola A, Tropeano FP, Peltrini R, Castiglione F, De Palma GD, Bucci L. Surgical Prevention of Anastomotic Recurrence by Excluding Mesentery in Crohn’s Disease: The SuPREMe-CD Study – A Randomized Clinical Trial. Ann Surg. 2020 Aug;272(2):210-217. doi: 10.1097/SLA.0000000000003821. PMID: 32675483.
  5. Holubar SD, Gunter RL, Click BH, Achkar JP, Lightner AL, Lipman JM, Hull TL, Regueiro M, Rieder F, Steele SR. Mesenteric Excision and Exclusion for Ileocolic Crohn’s Disease: Feasibility and Safety of an Innovative, Combined Surgical Approach With Extended Mesenteric Excision and Kono-S Anastomosis. Dis Colon Rectum. 2022 Jan 1;65(1):e5-e13. doi: 10.1097/DCR.0000000000002287. PMID: 34882636; PMCID: PMC9148419.
  6. de Groof EJ, van der Meer JHM, Tanis PJ, de Bruyn JR, van Ruler O, D’Haens GRAM, van den Brink GR, Bemelman WA, Wildenberg ME, Buskens CJ. Persistent Mesorectal Inflammatory Activity is Associated With Complications After Proctectomy in Crohn’s Disease. J Crohns Colitis. 2019 Mar 26;13(3):285-293. doi: 10.1093/ecco-jcc/jjy131. PMID: 30203027.

Como citar este artigo

Camargo MGM. ECCO 2023 – Algumas reflexões sobre o tratamento cirúrgico da Doença de Crohn. Gastropedia 2023, Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/colorretal/ecco-2023-algumas-reflexoes-sobre-o-tratamento-cirurgico-da-doenca-de-crohn/

Mariane Gouvea Monteiro de Camargo

Cirurgiã Colorretal pela Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo e Coloproctologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Médica do Departamento de Coloproctologia – Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Research Fellow (2017 – 2019) do Departamento de Cirurgia Colorretal da Cleveland Clinic, Cleveland – OH


Compartilhe:

Artigos relacionados

Deixe seu comentário

AVISO

Site exclusivo para profissionais da área médica e da saúde.

 

As informações aqui fornecidas são opiniões dos autores e não devem ser utilizadas como única fonte de referência.

 

Os editores deste site não se responsabilizam pelo eventual uso inadequado do conhecimento por pessoas inabilitadas. 

RECEBA NOSSA NEWSLETTER

Cadastre-se e receba regularmente nossas novidades!

PARA PACIENTES

Gastropedia © 2022 – Todos os direitos reservados. – Desenvolvido por MINDAGE