Estratégias Neoadjuvantes e Reestadiamento no Adenocarcinoma de Pâncreas Borderline Ressecável: Uma Abordagem Multidisciplinar

O adenocarcinoma ductal pancreático (ADP) permanece como uma das neoplasias de maior letalidade, primariamente devido ao seu diagnóstico tardio e comportamento biológico agressivo. Dentro do espectro de doença localizada, a categoria borderline resectable pancreatic cancer (BRPC) representa um desafio clínico e cirúrgico único. Estes tumores, pela sua íntima relação com estruturas vasculares críticas, apresentam altas taxas de margens cirúrgicas comprometidas (R1) quando a ressecção cirúrgica é a abordagem primária.

Este post detalha a estratégia contemporânea de manejo, focada na terapia neoadjuvante e nos critérios de reestadiamento para otimizar os desfechos oncológicos.


1. Estratificação de Ressecabilidade: A Definição Atual de Borderline

Uma estratificação anatômica precisa, baseada em tomografia computadorizada com contraste em protocolo pancreático, é o pilar para o planejamento terapêutico. De acordo com as diretrizes mais atuais (como as do NCCN – National Comprehensive Cancer Network), a classificação de BRPC é definida por contatos vasculares específicos:

  • Envolvimento Venoso (Veia Mesentérica Superior/Veia Porta):

    • Contato do tumor sólido com a VMS ou VP >180°.
    • Contato ≤180° associado a irregularidade do contorno venoso ou trombose, desde que haja segmento vascular proximal e distal adequados que permitam uma ressecção segura e completa com reconstrução venosa.
    • Contato do tumor sólido com a veia cava inferior (VCI).

  • Envolvimento Arterial:

    • Contato com a artéria hepática comum sem extensão ao tronco celíaco ou à bifurcação da artéria hepática, permitindo ressecção e reconstrução.
    • Contato com a artéria mesentérica superior (AMS) ≤180°.

2. O Racional da Terapia Neoadjuvante Sistêmica

Para pacientes com BRPC, a terapia sistêmica em regime neoadjuvante (ou de indução) tornou-se o padrão-ouro.

Os objetivos são múltiplos:

  1. Tratamento de Micrometástases: Erradicar a doença subclínica sistêmica, a principal causa de recidiva precoce.
  2. Downstaging Tumoral: Reduzir o envolvimento tumoral nas interfaces vasculares, aumentando a probabilidade de uma ressecção R0.
  3. Seleção Biológica: Identificar pacientes com doença de progressão rápida durante a quimioterapia, que não se beneficiariam de uma cirurgia de grande porte.

Os regimes quimioterápicos mais utilizados são o FOLFIRINOX (ácido folínico, fluorouracil, irinotecano, oxaliplatina) e a combinação de Gemcitabina com nab-paclitaxel. A escolha é individualizada com base no performance status e comorbidades do paciente. A duração do tratamento é tipicamente de 4 a 6 meses, seguida por um reestadiamento criterioso.

Existe atualmente discussão na literatura sobre a possível indicação de terapia neoadjuvante mesmo para as lesões classificadas como ressecáveis, especialmente quando há marcadores de pior prognóstico / comportamento mais agressivo, tais como CA 19-9 elevado ou linfonodomegalias peripancreáticas.

3. Reestadiamento e Avaliação de Resposta Pós-Terapia Sistêmica

Após a conclusão da terapia de indução, a avaliação da resposta para determinar a elegibilidade para a cirurgia é um processo multimodal e complexo.

  • Avaliação Metabólica com PET/CT (¹⁸F-FDG): O PET/CT é fundamental para avaliar a resposta metabólica. Uma redução significativa ou a normalização do SUVmax (Standardized Uptake Value) no sítio primário e a ausência de novas lesões hipermetabólicas são fortes indicadores de resposta favorável e preditores de melhores desfechos.
  • Avaliação Bioquímica com CA 19-9: O antígeno carboidrato 19-9 é um marcador tumoral sérico essencial. Uma queda >50% em relação ao valor basal, ou a sua normalização, constitui uma resposta bioquímica positiva. A falha na redução ou o aumento do CA 19-9 durante a terapia neoadjuvante é um sinal de alerta para progressão de doença ou quimiorresistência.

4. A Decisão Cirúrgica: O Objetivo é a Ressecção R0

Pacientes que demonstram resposta radiológica, metabólica e bioquímica, sem evidência de doença metastática, são considerados candidatos à exploração cirúrgica. A pancreatectomia pós-terapia neoadjuvante é um procedimento tecnicamente exigente, frequentemente complicado por fibrose e desmoplasia.

A escolha da via de acesso — aberta, laparoscópica ou robótica — permanece um tópico de intenso debate na comunidade cirúrgica. Embora centros de alto volume demonstrem a viabilidade de abordagens robóticas para casos selecionados, não há consenso definitivo sobre a superioridade de uma via em detrimento da outra em termos de desfechos oncológicos a longo prazo para BRPC. O objetivo primordial e inegociável é a obtenção de uma ressecção R0 com linfadenectomia adequada, independentemente da plataforma cirúrgica utilizada. A decisão deve ser baseada na experiência do centro, na expertise da equipe cirúrgica e nas características individuais do paciente e do tumor.

Conclusão

O manejo do adenocarcinoma de pâncreas borderline ressecável evoluiu para um paradigma multidisciplinar complexo, onde a terapia neoadjuvante é central. A estratificação precisa, o uso de regimes quimioterápicos eficazes e uma avaliação de resposta multimodal são cruciais para selecionar os pacientes que mais se beneficiarão da ressecção cirúrgica. O sucesso cirúrgico, definido pela margem R0, continua sendo o fator prognóstico modificável mais importante, e sua busca deve guiar a estratégia técnica, reconhecendo o debate existente sobre as diferentes vias de acesso.

Referências

  1. Mokadem M, et al. Defining and Predicting Early Recurrence in 957 Patients With Resected Pancreatic Ductal Adenocarcinoma. Annals of Surgery. 2021;273(4):780-788.
  2. Versteijne E, et al; Dutch Pancreatic Cancer Group. Preoperative Chemoradiotherapy Versus Immediate Surgery for Resectable and Borderline Resectable Pancreatic Cancer (PREOPANC): A Randomized, Controlled, Multicenter Phase III Trial. The Lancet Oncology. 2020;21(9):1199-1210.
  3. Tsai S, et al. Neoadjuvant FOLFIRINOX in Patients With Borderline Resectable Pancreatic Cancer: A Systematic Review and Patient-Level Meta-Analysis. JAMA Surgery. 2020;155(5):422-431.

Como citar este artigo

de Meira Junior, JD. Estratégias Neoadjuvantes e Reestadiamento no Adenocarcinoma de Pâncreas Borderline Ressecável: Uma Abordagem Multidisciplinar Gastropedia; 2025 Vol 2.  Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/estrategias-neoadjuvantes-e-reestadiamento-no-adenocarcinoma-de-pancreas-borderline-ressecavel-uma-abordagem-multidisciplinar/




Pancreatite Aguda – Controvérsias parte III: Mas e o antibiótico?

Voltamos com mais uma controvérsia em pancreatite aguda (vocês podem ler sobre outras controvérsias em Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte I: Qual a melhor maneira de predizer a gravidade? e Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte II: Como realizar a hidratação), e essa talvez seja uma das mais discutidas.

Durante muitos anos, recomendou-se o uso profilático de antibióticos em casos de pancreatite aguda, especialmente nas formas graves, com o objetivo de prevenir a infecção do tecido necrótico. Essa prática foi inicialmente sustentada por estudos clínicos e metanálises que sugeriam redução na taxa de infecção e, em alguns casos, também na mortalidade. Entretanto novos estudos foram realizados, e essa determinação foi revista.

Para entender as recomendações, é necessário entender a fisiopatologia da pancreatite aguda. A doença tem duas fases distintas, que podem se sobrepor.

  • A primeira fase é a chamada fase inflamatória, que leva de 7-10 dias, em que as alterações inflamatórias são decorrentes da cascata de citocinas. O quadro clínico é o da Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS), e na presença de SIRS é onde está o risco de disfunção orgânica. Nesta fase a formação de complicações locais (como necrose pancreática ou coleções fluidas) não é determinante para o prognóstico.
  • A segunda fase (ou fase tardia) ocorre após 10-14 dias, e é nesta fase que as complicações locais (como necrose ou coleções) evoluem e aumentam o risco de infecção. Além disso, devido a alteração de permeabilidade intestinal, aumenta também o risco de infecções extra-pancreáticas. A presença de sinais inflamatórios alterados ou SIRS nessa fase tardia sugerem possível foco infeccioso.
Figura 1. Mecanismos de Infecção na Pancreatite Aguda

Assim, é improvável que o paciente tenha infecção relacionada ao pâncreas na primeira fase, sendo contra-indicado o uso de antibióticos neste momento (se houver suspeita de infecção extra pancreática, essa condição deve ser pesquisada e tratada quando presente).

Após 10-14 dias, no caso das pancreatites moderadamente graves e graves, pode haver formação de tecido necrótico. Neste momento podem surgir sinais e sintomas que indiquem infecção desse tecido. O uso de terapia com antibióticos deve ser considerado na suspeita ou confirmação de infecção de tecido necrótico. A confirmação pode ser feita através de imagem (presença de gás em topografia da necrose é um sinal inequívoco de infecção) ou através de exames laboratoriais e piora clínica (febre, aumento de PCR, leucocitose, ou cultura de material com presença de microrganismos).

Não é necessária confirmação microbiológica (embora seja recomendável) para instituir antibioticoterapia, na suspeita de infecção de tecido necrótico.

Profilaxia antibiótica

As diretrizes e guidelines atuais não recomendam a administração de antibióticos para profilaxia de infecção de tecido necrótico. A recomendação foi estabelecida após a realização de estudos prospectivos, randomizados e placebo-controlados que não evidenciaram diferenças entre mortalidade, infecção de tecido necrótico, complicações sistêmicas ou necessidade de intervenção cirúrgica. Também é contraindicada a administração profilática de anti-fúngicos.

Recentemente, em um estudo observacional prospectivo indiano, os pacientes com suspeita de infecção de tecido necrótico que receberam antibióticos na primeira semana de doença, tiveram maiores taxas de infecções com microrganismos resistentes e infecções fúngicas.

A profilaxia antibiótica não é recomendada nos casos de pancreatite aguda moderadamente grave ou grave.

Tratamento antibiótico

Imagem de arquivo pessoal, autorizada pelo paciente

O tratamento com antibióticos de amplo espectro e com boa penetrância em loja pancreática deverá ser iniciado na suspeita ou confirmação de infecção de sítio necrótico. A escolha é por carbapenêmicos, quinolonas ou cefalosporinas de terceira geração (que têm cobertura para germes gram negativos), embora essa cobertura possa se estender para germes gram positivos e fungos, se não houver resposta clínica.

No caso da resposta clínica não ser adequada, se possível, a cultura do material necrótico pode auxiliar no diagnóstico, e guiar a cobertura antibiótica.

E, por fim, caso haja piora clínica, mesmo com a terapia antibiótica instituída, o paciente deverá ser considerado para tratamento intervencionista do tecido necrótico, mas este assunto será abordado em novo post.

Referências

  1. Ukai T, Shikata S, Inoue M, Noguchi Y, Igarashi H, Isaji S, Mayumi T, Yoshida M, Takemura YC. Early prophylactic antibiotics administration for acute necrotizing pancreatitis: a meta-analysis of randomized controlled trials. J Hepatobiliary Pancreat Sci. 2015 Apr;22(4):316-21. doi: 10.1002/jhbp.221. Epub 2015 Feb 9. PMID: 25678060.
  2. Yao L, Huang X, Li Y, et al. Prophylactic antibiotics reduce pancreatic necrosis in acute necrotizing pancreatitis: a meta-analysis of randomized trials. Dig Surg. 2010;27(6):442–449
  3. Banks PA, Bollen TL, Dervenis C, et al. Classification of acute pancreatitis-2012: revision of the Atlanta classification and definitions by international consensus. Gut. 2013;62(1):102–111
  4. Baron TH, DiMaio CJ, Wang AY, Morgan KA. American Gastroenterological Association Clinical Practice Update: Management of Pancreatic Necrosis. Gastroenterology 2020;158:67–75
  5. Loganathan P, Muktesh G, Kochhar R, et al. (October 19, 2024) Natural History and Microbiological Profiles of Patients With Acute Pancreatitis With Suspected Infected Pancreatic Necrosis. Cureus 16(10): e71853.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Aguda – Controvérsias parte III Mas e o antibiótico? Gastropedia 2025, Vol II. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-aguda-controversias-parte-iii-mas-e-o-antibiotico/




Disfunção do Esfíncter de Oddi

A disfunção do esfíncter de Oddi (DEO) é uma condição funcional ou estrutural rara que compromete o fluxo de bile e suco pancreático para o duodeno. É frequentemente subdiagnosticada, mas sua identificação e manejo adequados podem proporcionar melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes.

Anatomia e Fisiologia do Esfíncter de Oddi

O esfíncter de Oddi (EO) é um complexo muscular que envolve a porção terminal do ducto colédoco e ducto pancreático, regulando a liberação de bile e enzimas pancreáticas para o duodeno. Suas funções principais incluem:

  1. controle do fluxo biliar e pancreático,
  2. prevenção de refluxo para ducto pancreático e biliar
  3. promoção do enchimento da vesícula biliar durante o período entre as refeições

O funcionamento do EO é modulado por estímulos hormonais (como a colecistocinina – CCK) e neurais (via nervo vago).

  • A pressão basal normal do EO é de 10 mmHg, com aumentos de tônus intermitentes de 50 a 140 mmHg, ocorrendo de 2 a 6 vezes por minuto.
  • A colecistocinina (CCK), liberada em resposta a uma refeição, promove a contração da vesícula biliar e o relaxamento do esfíncter, facilitando a digestão.
  • Outras substâncias, como motilina, somatostatina e óxido nítrico, também influenciam sua motilidade.
  • A inervação parassimpática (vagal) é principalmente excitatória para o EO.
Figura 1: Anatomia do esfíncter de Oddi. Na maioria dos pacientes, as secreções biliares e pancreáticas entram no duodeno através do esfíncter de Oddi (EO), cuja estrutura recoberta por mucosa forma a papila de Vater. Além do EO, existem esfíncteres específicos para o ducto biliar comum e para o ducto pancreático, situados proximalmente. Todos esses esfíncteres são regulados por mecanismos neuro-hormonais. Modificado de Kim, J et al. ERCP Educational Guidelines for Fellows. Korean Journal of Pancreas and Biliary Tract. 2017.

Etiologia e Fatores de Risco

A DEO pode ser causada por estenose (causa mecânica) ou discinesia (motilidade alterada). Entre os fatores de risco mais reconhecidos estão: colecistectomia prévia, uso de opioides, alcoolismo, hipotireoidismo, síndrome do intestino irritável e antecedentes de pancreatite.

A retirada da vesícula biliar parece predispor à DEO ao eliminar o “reservatório” que modera aumentos de pressão no sistema biliar, o que pode levar a hipertonia do EO. Além disso, opioides como morfina e codeína podem induzir espasmos no esfíncter, exacerbando os sintomas.

Classificação Clínica

Os critérios diagnósticos específicos para DEO incluem:

  • Dor abdominal do tipo biliar (vide “Diagnóstico” abaixo)
  • Elevação de transaminases (>2x o limite superior da normalidade),
  • Dilatação do ducto biliar comum (>10 mm na US ou >12 mm na CPRE)

Obs: antigamente utilizava-se também o critério de esvaziamento tardio (>45 min) do contraste na CPRE, mas hoje possuímos exames não invasivos para corroborar esse achado.

Com base na presença desses critérios, a DEO é dividida em tipos, conforme a classificação de Milwaukee.

Tipo I: dor biliar associada a dois dos critérios acima.
Tipo II: dor biliar + um dos critérios acima.
Tipo III: apenas dor biliar, sem achados laboratoriais ou de imagem.

Essa classificação é fundamental para guiar a conduta diagnóstica e terapêutica.

(Nota: Existe também uma classificação de Milwaukee para DEO pancreática, com critérios semelhantes baseados em dor pancreática, enzimas pancreáticas elevadas, dilatação do ducto pancreático e drenagem retardada do contraste na CPRE.)

Diagnóstico

O diagnóstico é desafiador e frequentemente de exclusão.

A dor abdominal relacionada à disfunção do esfíncter de Oddi (DEO) é geralmente intermitente, localizada no hipocôndrio direito e pode ser acompanhada de náuseas e vômitos. Pode se manifestar como dor súbita e intensa com irradiação para região dorsal ou ombro e pode durar de 30 minutos a várias horas. A dor na DOE nem sempre está relacionada às refeições e tende a ocorrer de forma episódica.

Exames laboratoriais (aminotransferases, bilirrubinas, amilase e lipase) e de imagem (ultrassonografia, tomografia, CPRM) ajudam a excluir outras causas. A manometria endoscópica do EO, realizada durante a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), é o padrão-ouro, com valores pressóricos >40 mmHg indicando disfunção. No entanto, esse exame é invasivo, tecnicamente exigente e tem risco elevado de pancreatite.

Figura 2: manometria do esfincter de Oddi. Modificado de: Buscaglia JM, Kalloo AN. Pancreatic sphincterotomy. In: Baron TH, Kozarek RA, Carr-Locke DL, editors. ERCP. 3rd ed. Philadelphia: Elsevier; 2019. p. 171–80.

Outros testes, como cintilografia hepatobiliar e CPRM com secretina, podem ser úteis, especialmente quando se deseja evitar métodos invasivos. A cintilografia hepatobiliar quantitativa avalia a drenagem biliar e pode detectar retardo no esvaziamento, útil principalmente em pacientes com dor pós-colecistectomia. Já a CPRM com secretina permite visualizar ductos biliares e pancreáticos com maior sensibilidade e avaliar a resposta à estimulação, sendo alternativa nos casos de disfunção pancreática.

O teste de Nardi, que associa morfina e neostigmina para provocar sintomas, também pode auxiliar, embora seja pouco utilizado na prática.


Tratamento

O tratamento depende do tipo de DEO:

  • Tipo I: tratamento invasivo é geralmente indicado, com bons resultados após esfincterotomia endoscópica. O alívio da dor ocorre em aproximadamente 90% dos casos com DEO biliar tipo I.
  • Tipo II: a esfincterotomia pode ser considerada, especialmente se a manometria estiver alterada. Aproximadamente 70% dos pacientes com DEO tipo II apresentam melhora significativa da dor após o procedimento.
  • Tipo III: estudos como o EPISOD trial mostraram que pacientes com DEO tipo III não se beneficiam da esfincterotomia, sendo preferível o tratamento clínico.

A terapêutica medicamentosa inclui bloqueadores dos canais de cálcio (como nifedipina), antidepressivos tricíclicos, nitratos e somatostatina, com eficácia variável. Toxina botulínica e stents temporários têm sido usados como testes terapêuticos antes da decisão por intervenção definitiva.

Estudo EPISOD

O estudo multicêntrico EPISOD randomizou 214 pacientes com dor pós-colecistectomia e DEO tipo III para esfincterotomia ou procedimento placebo. Surpreendentemente, a taxa de sucesso foi maior no grupo placebo (37%) do que no grupo tratado (23%), sem associação entre a manometria e o desfecho clínico. O estudo concluiu que a esfincterotomia não deve ser indicada para pacientes com DEO tipo III.

Considerações Finais

A disfunção do esfíncter de Oddi é uma entidade complexa e heterogênea. Seu reconhecimento exige exclusão cuidadosa de outras causas e, quando confirmada, o tratamento deve ser personalizado conforme o tipo clínico. O manejo inadequado pode expor pacientes a procedimentos de alto risco, sem benefícios comprovados. A DEO tipo III, em especial, deve ser tratada de forma conservadora, evitando intervenções invasivas desnecessárias.

Referências

  1. Crittenden JP, Dattilo JB. Sphincter of Oddi Dysfunction. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2023 [cited 2025 May 7]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK557871/
  2. Afghani E, Lo SK, Covington PS, Pandol SJ. Sphincter of Oddi dysfunction. Front Nutr. 2017;4:1. doi:10.3389/fnut.2017.00001
  3. Cotton PB, Durkalski V, Romagnuolo J, Pauls Q, Payne KM, Mauldin P, et al. Effect of endoscopic sphincterotomy for suspected sphincter of Oddi dysfunction. JAMA. 2014;311(20):2101–9.

Como citar este artigo

Martins BC. Disfunção do Esfíncter de Oddi Gastropedia 2025; Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/disfuncao-do-esfincter-de-oddi/




Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte II: Como realizar a hidratação

Como já vimos no post anterior (clique aqui para conferir o artigo: Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte I), o manejo da pancreatite aguda é envolvido em controvérsias, especialmente em relação a condutas que se modificaram ao longo do tempo.

Uma dessas mudanças marcantes é em relação a hidratação: como fazer? Com que fluido? Por quanto tempo? Vamos atualizar aqui as últimas evidências em relação a esse tema.

O manejo da pancreatite aguda nas suas fases iniciais (48-72 horas) é essencial para a melhora dos desfechos da doença. Tradicionalmente a ressuscitação volêmica é um dos pilares do tratamento, já que durante a fase inflamatória o paciente tem aumento de sua permeabilidade vascular e extravasamento de líquido do intravascular para outros espaços. É, portanto, um evento que cursa com hipovolemia e hipoperfusão tecidual, ocasionando danos a outros órgãos e também ao próprio pâncreas.

A administração de volume ao paciente nas primeiras horas da doença é fundamental para diminuir as complicações da hipovolemia e reduzir a mortalidade. Como realizar essa etapa ainda é tema de debates entre experts e aqui vamos analisar os prós e contras de cada regime de hidratação.

Hidratação agressiva x Hidratação moderada

Embora muitos estudos sugiram que hidratação agressiva aumentaria a sobrevida ao diminuir a formação de tecido necrótico nas pancreatites agudas graves, essa mesma conduta também gera desfechos negativos, como:

  • Complicações respiratórias
  • Sepse
  • Síndrome compartimental abdominal.

Dessa forma, a maior parte dos guidelines (IAP – APA 2013 / AGA 2018) recomendam a hidratação guiada por metas, principalmente em pacientes com pancreatite aguda moderada ou grave. As metas bem estabelecidas são:

Parâmetro Meta
Frequência cardíaca < 120 bpm
Pressão arterial média 65-90 mmHg
Diurese 0,5 ml/kg/h
Pressão venosa central 8-12 mmHg
Saturação venosa central ≥ 70%
Níveis de ureia nitrogenada (BUN = ureia / 2,14) < 25 mg/dL
Hematócrito < 44%
Lactato Lactato normal

Após o estudo WATERFALL publicado no New England Journal of Medicine (2022), mais evidências corroboraram com a utilização de hidratação moderada, visto que o grupo da hidratação agressiva teve número significantemente maior de sobrecarga hídrica (evidenciada principalmente por estertores pulmonares). Embora não tenham sido atingida significância estatística nos desfechos primários, o trial foi encerrado por segurança.

Assim, podemos dizer que hoje as evidências apontam para uma hidratação moderada, guiada por metas, principalmente em pacientes graves.

Qual fluido utilizar?

A solução ideal para a hidratação inicial é uma solução cristalóide (não há benefício em uso de nenhuma solução colóide). Dentre as disponíveis, embora o grau de recomendação seja baixo, o Ringer Lactato (RL) parece ter preferência sobre o soro fisiológico a 0,9%. As vantagens do RL são:

  • menor risco de causar acidose hiperclorêmica
  • redução de injúria renal
  • efeito anti-inflamatório, evidenciado pela redução do PCR e menor incidência de SIRS.

Alguns guidelines, como da ACG de 2024, já recomendam essa solução para hidratação inicial.

Embora ainda não haja uma robusta evidência, a preferência é a hidratação com solução de Ringer Lactato.

Referências

  1. Working Group IAP/APA Acute Pancreatitis Guidelines. IAP/APA evidence-based guidelines for the management of acute pancreatitis. Pancreatology. 2013;13(4 Suppl 2):e1–e15.
  2. Crockett SD, Wani S, Gardner TB, FalckYtter Y, Barkun AN. American Gastroenterological Association Institute guideline on initial management of acute pancreatitis. Gastroenterology. 2018;154(4):1096–1101.
  3. de-Madaria E, Buxbaum JL, Maisonneuve P, Luo H, Jin K, Hines OJ, et al. Aggressive or moderate fluid resuscitation in acute pancreatitis. N Engl J Med. 2022;387(11):989–1000.
  4. Mederos MA, Reber HA, Girgis MD. Acute pancreatitis: a review. JAMA. 2021;325(4):382–390.
  5. Li XW, Huang W, Yang J, Zhang L, Zhang C. Comparison of clinical outcomes between aggressive and non-aggressive intravenous hydration for acute pancreatitis: a systematic review and meta analysis. Crit Care. 2023;27(1):122.
  6. Tenner S, Baillie J, Banks PA, DiMagno MJ, Buxbaum JL, Greenberg A, et al. American College of Gastroenterology guidelines: management of acute pancreatitis. Am J Gastroenterol. 2024;119(3):419–437.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte II: Como realizar a hidratação Gastropedia 2025, Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-aguda-controversias-parte-ii-como-realizar-a-hidratacao/




Abordagem atual dos Cistos Pancreáticos

A avaliação de um paciente com cisto pancreático deve responder a duas questões principais: Qual é o tipo de cisto e, no caso de IPMNs (neoplasias mucinosas papilares intraductais) ou MCNs (neoplasias mucinosas císticas), há displasia de alto grau ou câncer presente? Estas perguntas são cruciais para determinar o risco de transformação maligna e orientar o manejo do cisto.

Classificação e Risco

Os cistos pancreáticos são classificados como benignos, pré-malignos ou malignos, sendo que o risco de malignidade varia conforme o tipo. Os cistos mucinosos, como IPMNs e MCNs, apresentam potencial para progressão maligna e requerem atenção clínica cuidadosa. IPMNs são subdivididos em ducto principal, secundário e misto, com risco crescente de malignidade nessa ordem.

Leia mais sobre IPMN nesse post

Fatores de Risco para Transformação Maligna

Estigmas de alto risco incluem icterícia obstrutiva, nódulos murais maiores que 5 mm, dilatação do ducto principal acima de 10 mm e citologia positiva.

Características preocupantes, como nódulos murais menores de 5 mm, crescimento maior do que 2,5 mm no último ano, dilatação do ducto até 9 mm, pancreatite aguda, aumento do CA 19.9 sérico, diabetes de início recente, cisto maior do que 3 cm, linfadenopatia e mudança abruta do calibre do ducto pancreático principal também são relevantes.

Figura 1. Adaptado de Elham Afghani et al. Gastroenterology Clinics of North America, 2024.

  • Uma revisão sistemática recente demonstrou que a razão de chances para diagnóstico de displasia de alto grau ou câncer utilizando os critérios atuais variou de 1,98 a 3,62 (IC 95%: 1,3–4,6), com sensibilidade inferior a 70% o que pode ser considerado baixo para se indicar uma cirurgia de grande porte.
  • Porém, um estudo de coorte com 810 pacientes submetidos à ressecção de IPMNs identificou que três ou mais estigmas de alto risco estavam associados a 100% de risco de displasia de alto grau ou câncer, comparado a 63% e 82% para um e dois estigmas, respectivamente.
  • Pacientes com mais de três características preocupantes também apresentaram 100% de risco de malignidade, em contraste com 22%, 34% e 59% para um, dois e três fatores, respectivamente. Essa progressão escalonada de risco auxilia no processo de tomada de decisão clínica.

O Que Há de Novo em Cistos Pancreáticos?

Diagnóstico: Avanços em Modalidades e Biomarcadores

O diagnóstico de cistos pancreáticos tem se beneficiado de avanços significativos nos últimos anos. Apesar do uso tradicional do antígeno carcinoembrionário (CEA) para diferenciar cistos mucinosos, sua sensibilidade de apenas 58% e especificidade de 87% limitam sua aplicação prática. A citologia também enfrenta desafios relacionados à obtenção de amostras adequadas, com sensibilidade de 63% e especificidade de 88%.

Entre as novas abordagens, o ultrassom endoscópico com contraste (EUS-CE) tem se mostrado promissor. Ele é eficaz na diferenciação de nódulos murais, que são indicativos de necessidade cirúrgica, de mucina ou debris que não apresentam relevância clínica. O uso do modo harmônico neste contexto apresenta uma sensibilidade de 97% e especificidade de 90%, superando técnicas convencionais como o Doppler.

A biópsia com pinça através da agulha é outra inovação importante, permitindo a coleta de amostras maiores de tecido para análise histológica. Embora esta técnica tenha uma sensibilidade de 80% e especificidade equivalente, a alta taxa de sucesso técnico (94%) é acompanhada por um risco significativo de eventos adversos, incluindo complicações graves.

A endomicroscopia confocal com agulha (nCLE) tem se destacado ao oferecer imagens em tempo real do epitélio cístico, permitindo a identificação de padrões específicos associados a diferentes tipos de cistos. Com sensibilidade de 98% e especificidade de 94%, a nCLE supera métodos diagnósticos tradicionais, embora sua disponibilidade seja limitada a centros especializados.

Os biomarcadores moleculares em fluido cístico também representam um avanço crucial. A glicose, por exemplo, demonstrou alta sensibilidade (93%) e especificidade moderada (76%), com baixo custo e fácil aplicabilidade. No entanto, as mutações genéticas têm ganhado destaque, oferecendo um nível mais profundo de análise diagnóstica.

As mutações em genes como KRAS e GNAS são altamente específicas para cistos mucinosos, como as neoplasias mucinosas intraductais (IPMNs). Por outro lado, alterações no gene VHL estão associadas a cistos serosos. Já mutações em TP53 e SMAD4 estão ligadas a displasia de alto grau ou progressão para adenocarcinoma invasivo, sendo importantes para identificar cistos com maior risco de malignização. Além disso, mutações no RNF43 têm sido associadas ao aumento do risco de malignidade em IPMNs.

Adaptado de Elham Afghani et al. Gastroenterology Clinics of North America, 2024. Abreviações: SCA Cistoadenoma Seroso, IPMN Neoplasia mucinosa papilar intraductal, MCN Neoplasia mucinosa cística, cPanNets Degeneração cística de tumor neuroendócrino pancreático, DPP Ducto pancreático principal.

Tratamento: Inovações no manejo dos Cistos Pancreáticos

No manejo terapêutico, a ablação de cistos tem evoluído consideravelmente. Inicialmente realizada com injeção de álcool, essa técnica agora utiliza agentes quimioterápicos como paclitaxel e gemcitabina, que apresentam maior eficácia e menor toxicidade. Estudos demonstram taxas de remissão completa em até 98% dos casos após 6 anos de acompanhamento, destacando o potencial dessa abordagem para evitar cirurgias invasivas.

Outra técnica promissora é a ablação por radiofrequência (RFA), que se mostra eficaz e minimamente invasiva, embora ainda careça de validação em estudos de maior escala.

Além disso, o uso rotineiro de antibióticos após a punção aspirativa de cistos tem sido questionado. Estudos recentes indicam que a taxa de infecção é semelhante entre pacientes que receberam ou não profilaxia antibiótica, sugerindo que esta prática pode ser restrita a casos específicos.

Mudanças nas Diretrizes de Vigilância

O seguimento a longo prazo de cistos pancreáticos também passou por mudanças importantes. Em pacientes com expectativa de vida inferior a 10 anos ou comorbidades significativas, a vigilância pode ser descontinuada, considerando que os riscos do acompanhamento superam os benefícios.

De forma semelhante, cistos que permanecem estáveis por 5 a 10 anos sem sinais de progressão podem justificar a interrupção do acompanhamento. Para cistos menores de 1,5 cm em pacientes com mais de 65 anos ou menores de 3 cm em indivíduos com mais de 75 anos, o risco de progressão para malignidade é comparável ao da população geral, reforçando a necessidade de individualizar as decisões clínicas.

Esses avanços refletem um movimento em direção a uma abordagem mais personalizada e precisa no diagnóstico e manejo dos cistos pancreáticos, equilibrando o risco de progressão para câncer com a redução de intervenções desnecessárias.

Adaptado de Takao Ohtsuka, et al. Pancreatology, 2024. Algoritmo de manejo do IPMN. Os métodos de imagem iniciais para avaliação dos cistos pancreáticos são a ressonância magnética e a tomografia. Ecoendoscopia pode ser usada para investigação adicional.

Saiba mais:

Guidelines de Kyoto pate I

Guideline de Kyoto parte II

Conclusão

A abordagem aos cistos pancreáticos exige avaliação sistemática e individualizada. Os avanços nos métodos diagnósticos e nos critérios de estratificação de risco têm permitido uma melhor identificação de pacientes com maior probabilidade de malignidade, proporcionando bases mais sólidas para o manejo clínico.

Referências

  1. Takao Ohtsuka, Carlos Fernandez-del Castillo, Toru Furukawa, Susumu Hijioka, Jin-Young Jang, Anne Marie Lennon, Yoshihiro Miyasaka, Eizaburo Ohno, Roberto Salvia, Christopher L. Wolfgang, Laura D. Wood. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pâncreas. Pancreatology,Volume 24, Issue 2,2024.
  2. Elham Afghani, Anne Marie Lennon, What Is the Latest in Pancreatic Cysts? Gastroenterology Clinics of North America, 2024.

Como citar este artigo

Orso, IRB. Abordagem atual dos Cistos Pancreáticos Gastropedia; 2025 Vol 1.  Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/abordagem-atual-dos-cistos-pancreaticos/




Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte I: Qual a melhor maneira de predizer a gravidade?

A pancreatite aguda (PA) continua sendo uma relevante questão de saúde pública no mundo. Permanece como a principal causa gastrointestinal de internação hospitalar (nos EUA os dados são de 300.000 admissões por ano, a um custo de 2.5 bilhões de dólares), com considerável ônus sócio-econômico. A incidência está em ascensão em cerca de 3% nas principais casuísticas mundiais. A mortalidade permanece pouco alterada, e é consideravelmente maior no grupo que desenvolve necrose pancreática.

O diagnóstico é dado conforme os critérios de Atlanta, definidos em 2012. Estando presentes 2 de 3 critérios, o diagnóstico é estabelecido. Os critérios são:

  1. dor em abdome superior
  2. elevação de enzimas pancreáticas séricas, > 3 vezes o limite superior do método,
  3. exame de imagem evidenciando sinais de inflamação pancreática.

Com o diagnóstico dado, é necessário estabelecer a gravidade. Também de acordo com o consenso de Atlanta, as PAs são classificadas conforme a gravidade em: leve, moderadamente grave e grave. A PA leve tem curso benigno, e não cursa com complicações locais (necrose pancreática) ou com disfunções orgânicas. Já a PA grave exige a presença de disfunções orgânicas persistentes e pode ter a presença de complicações locais. A moderadamente grave se assemelha à grave, entretanto tem as disfunções orgânicas revertidas em até 48 horas.

Ao longo dos anos múltiplos scores clínicos foram desenvolvidos na tentativa de estimar a evolução de cada caso. Para o médico assistente (seja emergencista, intensivista ou gastroenterologista), entretanto, surgem dúvidas sobre quais critérios utilizar. Existe algum score que seja melhor? Nesse texto tentaremos esclarecer essas questões com base nas mais recentes evidências.

Presença de SIRS

A presença de SIRS (Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica) na admissão do paciente parece ser um bom preditor de mau prognóstico, e a persistência desta síndrome após 48 horas está associada a disfunção de múltiplos órgãos e mortalidade. A mortalidade nos casos de SIRS transitória é de 8% enquanto pode chegar a 25% nos casos de SIRS persistente. São necessários 2 dos seguintes 4 critérios para diagnóstico de SIRS:

Temperatura < 36oC ou > 38o.C
Frequência cardíaca > 90 bpm
Frequência respiratória > 20 ipm ou PaCO2 < 32 mmHg
Leucócitos < 4.000/mL ou > 12.000/mL ou > 10% de formas imaturas

Além da presença de SIRS, alguns achados clínicos podem auxiliar a identificar pacientes potencialmente graves:

  • Características do paciente:

    • Idade > 55 anos
    • Obesidade (IMC > 30 kg/m2)
    • Alteração mental na admissão
    • Presença de comorbidades.

  • Achados laboratoriais:

    • Concentração de uréia nitrogenada (BUN) > 20
    • Ascensão dos níveis de BUN
    • Elevação de creatinina (> 2mg/mL)
    • Hemoconcentração (hematócrito > 44)
    • Hematócrito em ascensão
    • Proteína C reativa > 150 mg/dL

  • Achados radiológicos:

    • Derrame pleural
    • Infiltrado pulmonar
    • Extensas ou múltiplas coleções extra pancreáticas

Neste cenário, a utilização de critérios clínicos ou de imagem se torna trabalhosa e com baixa acurácia para predizer gravidade. Os scores parecem ser mais úteis e confiáveis para as PAs leves.

Dentre os scores conhecidos, podemos citar:

  • Scores de Ranson e Glasgow – muitas variáveis para somar pontos e necessárias 48 horas para conclusão, ambos com sensibilidade de 80% para diagnóstico de PA grave.
  • Score APACHE-II: também apresenta muitas variáveis e foi criado para pacientes críticos, e posteriormente validado para PA com sensibilidade de 71% e especificidade de 90% para PA grave. Não é específico para pancreatite aguda.
  • Score BISAP: feito à beira leito com poucas variáveis, consegue detectar disfunção orgânica; porém, como é realizado apenas na admissão, não detecta disfunção orgânica persistente (característica da PA grave).
  • Outros critérios como Panc3, HAPS, JSS estão sendo validados, e ainda carecem de mais estudos.

Mais recentemente, a tecnologia da Inteligência Artificial (IA), utilizando machine learning, está sendo utilizada para predizer a gravidade na PA. Embora faltem estudos que comparem as ferramentas de IA com os scores tradicionais, algoritmos estão sendo criados e aplicativos sendo criados (como o EASY-APP – validado em uma coorte com > 3000 pacientes) que permitem identificar na admissão o paciente que está em risco de PA grave.

Assim sendo, ainda hoje o melhor preditor de gravidade da PA é o quadro clínico, especialmente a presença de SIRS na admissão. Outros scores podem ser utilizados (com acurácia menor) e futuramente ferramentas de inteligência artificial serão aprimoradas e incorporadas à prática clínica.

Veja também: aumento de enzimas pancreáticas: como investigar e conduzir?

Referências

  1. Tenner, S et al. American College of Gastroenterology Guidelines: Management of Acute Pancreatitis. Am J Gastroenterol 2024;119:419–437.
  2. Goodchild G, Chouhan M, Johnson GJ. Practical guide to the management of acute pancreatitis. Frontline Gastroenterology 2019;10:292–299.
  3. Banks, PA et al. Classification of acute pancreatitis—2012: revision of the Atlanta classification and definitions by international consensus. Gut 2013;62:102–111.
  4. Working Group IAP/APA Acute Pancreatitis Guidelines. IAP/APA evidence-based guidelines for the management of acute pancreatitis. Pancreatology 2013;13:e1–15.
  5. Kuo, DC et al. Acute Pancreatitis – What´s the Score? The Journal of Emergency Medicine, Vol. 48, No. 6, pp. 762–770, 2015
  6. Hu, JX et al. Acute pancreatitis: A review of diagnosis, severity prediction and prognosis assessment from imaging technology, scoring system and artificial intelligence. World J Gastroenterol 2023 October 7; 29(37): 5268-5291
  7. Kui, B et al. EASY-APP: An artificial intelligence model and application for early and easy prediction of severity in acute pancreatitis. Clin. Transl. Med. 2022;12:e842.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Aguda – Controvérsias Parte I Qual a melhor maneira de predizer a gravidade? Gastropedia 2025, Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-aguda-controversias-parte-i-qual-a-melhor-maneira-de-predizer-a-gravidade/




Pancreatite Crônica – Como tratar?

Fechando a trilogia da Pancreatite Crônica (leiam os posts anteriores sobre etiologia e diagnóstico), vamos falar de tratamento.

Os pilares para tratamento da pancreatite crônica são:

1) Analgesia

A dor abdominal (em abdome superior) é o sintoma proeminente da patologia, acomete cerca de 80% dos pacientes, e pode ser debilitante e contribuir para uma qualidade de vida ruim. O padrão de dor pode ser intermitente ou contínua, e não tem correlação clínico-radiológica (isto é, muitas vezes o paciente não têm a glândula muito comprometida na imagem, entretanto pode ter uma clínica de dor exuberante).

A fisiopatologia da dor na pancreatite crônica é complexa, e envolve a obstrução ductal por calcificações (com hipertensão ductal) e a presença de estímulos nociceptivos em nervos peri-pancreáticos, originados de insultos inflamatórios e isquêmicos. Esses estímulos (sendo contínuos ou intermitentes, porém constantes) levam à modificação permanente na medula espinhal e córtex cerebral, promovendo a sensibilização central. Essa sensibilização pode perpetuar o sintoma de dor, mesmo em pacientes que já tenham removido o mecanismo causal (pancreatectomizados totais, por exemplo).

Ao questionar o paciente sobre a dor, é interessante ter disponível a Escala Visual Analógica (EVA), para corretamente graduar a dor (sintoma subjetivo).

O tratamento da dor deve ser multifatorial, visto a diversa fisiopatologia do sintoma. A primeira medida é orientar o paciente a cessar o uso do álcool e tabaco. Ambos são agressores diretos das células pancreáticas, e frequentemente as crises de dor podem ser precipitadas pelo abuso de álcool, nas etiologias alcoólicas.

Não há um tratamento dietético específico para melhorar a dor, embora evitar dietas hipergordurosas parece ter benefício no controle da dor, em estudos observacionais.

Em relação a medicamentos, os guidelines recentes sugerem seguir a escada analgésica proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), iniciando-se com analgésicos simples e anti-inflamatórios, posteriormente partindo para opioides fracos (como tramadol e codeína), deixando para um terceiro momento a introdução de opioides fortes e de maior duração, sempre com muita cautela (temos que lembrar que muitos desses pacientes têm problemas de dependências de substâncias, aumentando o risco de adição com opioides fortes).

Dada a fisiopatologia, a administração de moduladores de dor (antidepressivos tricíclicos, pregabalina e outros) pode ser feita já no início do tratamento. O agente mais estudado nesse contexto é a pregabalina, que demonstrou ser um potente adjuvante em ensaios clínicos placebo-controlados.

A associação de antioxidantes (metionina, vitamina A, Vitamina E, Vitamina C e Selênio) parece ter benefício para pacientes com pancreatite crônica não alcoólica, embora não seja uma recomendação formal, e mais estudos são necessários.

Para alguns pacientes parece haver benefício de intervenções endoscópicas ou cirúrgicas. Os procedimentos são diversos, como CPREs com colocação de próteses pancreáticas, com ou sem litotripsia extra-corpórea; procedimentos cirúrgicos que pode envolver a derivação do ducto pancreático dilatado (Cirurgia de Puestow), ou a combinação da derivação com a ressecção (Cirurgia de Frey, Beger ou Berne).

(Escada Analgésica da OMS – adaptada de Yang, J. et al. Journal of Pain Research, 2020)

2) Manejo da Insuficiência Exócrina (IEP)

Não é infrequente que o paciente restrinja a sua alimentação, devido à dor ou a sintomas de insuficiência exócrina (como esteatorreia ou bloating). O tratamento da IEP deve ser iniciado quando paciente apresentar sintomas (como esteatorreia) ou sinais de má-nutrição, que por vezes são subclínicos, como carências de nutrientes e vitaminas lipossolúveis, além do marcador elastase fecal abaixo do valor de referência (< 200 mcg/g fezes)

Nos pacientes com evidência de IEP, a terapia de reposição enzimática está recomendada, na dose inicial de 40.000-50.000 UI de lipase por grande refeição, e a metade da dose nos lanches e refeições menores. A adequação da dieta para uma dieta normolipídica e normo ou hiperproteica, além da redução da quantidade de fibras (que pode diminuir a eficácia das enzimas pancreáticas) é necessária. O auxílio de uma nutricionista capacitada é de suma importância na condução desses pacientes.

Além da dieta e da reposição enzimática, muitos desses pacientes necessitam reposição de oligoelementos, como vitaminas e minerais. Essa reposição deve ser sempre baseada em dosagens séricas, e não há benefício em manter níveis acima dos recomendados usualmente.

3) Manejo da Insuficiência Endócrina

Os pacientes com diabetes pancreatogênico (Diabetes tipo III-c) tem um manejo difícil, visto que a fibrose das ilhotas endócrinas cursam com diminuição na produção de insulina e também do contra-regulador (glucagon). Portanto, são pacientes que tendem a fazer picos altos de glicemia e também tendem a hipoglicemia após início do tratamento.

Os pacientes devem ser avaliados para insuficiência endócrina anualmente, e o manejo preferencialmente deverá ser feito com o auxílio de um endocrinologista.

4) Vigilância para neoplasias

Já falamos anteriormente sobre risco de neoplasia de pâncreas em pacientes com pancreatite crônica neste artigo
https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-cronica-principais-etiologias-e-risco-associado-de-neoplasia-pancreatica/, portanto é necessária uma vigilância com exames de imagem, embora não haja recomendação específica da periodicidade. As pancreatites hereditárias e genéticas necessitam de avaliação anual com exames de imagem.

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Referências

  1. Gardner, TB et al. ACG Clinical Guideline: Chronic Pancreatitis. Am J Gastroenterol 2020;115:322–339.
  2. Singh, VK et al. Diagnosis and Management of Chronic Pancreatitis – A Review. JAMA. 2019;322(24):2422-2434
  3. Olesen, SS et al. Pregabalin Reduces Pain in Patients With Chronic Pancreatitis in a Randomized, Controlled Trial. Gastroenterology 2011;141:536–543
  4. Singh, VK & Drewes, AM. Medical Management of Pain in Chronic Pancreatitis. Dig Dis Sci (2017) 62:1721–1728
  5. Yang, J et al. The Modified WHO Analgesic Ladder: Is It Appropriate for Chronic Non-Cancer Pain? Journal of Pain Research 2020:13 411–417
  6. Cañamares-Orbís, P et al. Nutritional Support in Pancreatic Diseases. Nutrients 2022, 14, 4570.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Crônica – Como tratar? Gastropedia 2024, Vol 2. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-cronica-como-tratar/




Pancreatite Crônica: Como fazer o diagnóstico

Já falamos aqui sobre os fatores de risco para pancreatite crônica e de seu risco associado de neoplasia pancreática (pancreatite-cronica-principais-etiologias-e-risco-de-neoplasia). Agora vamos conversar sobre como realizar o diagnóstico.

Diagnóstico

Estabelecer o diagnóstico de pancreatite crônica (PC) nem sempre é simples. A história clínica e anamnese é muito importante, na tentativa de verificar a presença de fatores de risco (álcool, tabagismo) e dos principais sintomas. Os principais sintomas são:

  • Dor abdominal (presente em 80% dos casos). Até 70% dos pacientes contam terem uma história de pancreatite aguda prévia, e até 50% podem ter pancreatite aguda de repetição. 
  • Além da dor, sintomas de má-digestão, diarreia crônica, esteatorreia e déficits nutricionais (carência de vitaminas lipossolúveis e alterações ósseas como osteopenia e osteoporose) também podem estar presentes ao diagnóstico, configurando a insuficiência exócrina do pâncreas, assim como sinais de insuficiência endócrina (diabetes mellitus). 

A presença dos sintomas e de fatores de risco não confirma o diagnóstico. A certeza diagnóstica é somente com a histologia pancreática, que frequentemente está indisponível. Dessa forma, o diagnóstico definitivo se baseia em alterações de exames de imagem e em possíveis alterações na função exócrina e endócrina.

Exames de Imagem

Dentre os exames de imagem que podem auxiliar o diagnóstico de PC, destaco 3 modalidades:

  • Tomografia de abdome (TC): pode evidenciar alterações mais grosseiras na glândula, como presença de calcificações, dilatação ductal e atrofia do parênquima pancreático. Esse exame pode ser suficiente em pacientes com alta probabilidade de PC. É o melhor exame para visualizar calcificações.
(Imagem de arquivo próprio – reprodução autorizada)

  • Ressonância Magnética com Colangio-Pancreatorressonância (CPRM): em pacientes com baixa probabilidade de PC a ressonância pode avaliar alterações menores em parênquima, que aparecem como alteração na intensidade do sinal, além de alterações em ductos, inclusive ductos secundários.
  • Ecoendoscopia (EcoEDA): o ultrassom endoscópico avalia 4 critérios parenquimatosos e 5 critérios ductais para o diagnóstico de PC. É o exame com a maior acurácia para o diagnóstico de PC (especialmente nas pancreatites crônicas precoces), entretanto apresenta uma alta discordância inter-observador, além de ser mais invasivo do que os exames axiais.

Em uma revisão sistemática e metanálise de 2017, foram comparadas as acurácias dos exames disponíveis. Os resultados não tiveram diferenças estatisticamente significantes: Sensibilidade da EcoEDA foi 81%, da CPRM 78% e TC 71%. Já as especificidades foram: EcoEDA 90%, CPRM 96% e TC 91%. Aparentemente a vantagem da EcoEDA seria para avaliação de pancreatite crônica precoce, onde as alterações morfológicas da glândula ainda são iniciais, e melhores vistas pelo Ultrassom endoscópico. 

A escolha do exame de imagem deve ser baseada na probabilidade pré teste do diagnóstico (por exemplo, um paciente etilista e tabagista, com dor epigástrica e diabetes mellitus tem uma alta probabilidade pré teste de pancreatite crônica), além de custo e disponibilidade do exame em questão.

Testes funcionais

Os testes funcionais servem para avaliar a função exócrina da glândula, que somados a alterações de imagem compatíveis, podem contribuir para o diagnóstico de PC. 

Os testes diretos são realizados com aspirados duodenais, para análise do suco pancreático, e não são solicitados de rotina pois são invasivos e demorados. 

Dentre os testes indiretos o padrão-ouro é a quantificação de gordura fecal – teste que exige do paciente um alto consumo de gordura durante 5 dias e análise das fezes dos últimos 3 dias. Caso haja uma quantidade de gordura > 7g em 24h está diagnosticada a esteatorreia (manifestação da insuficiência pancreática exócrina). Esse teste é muito oneroso ao paciente, portanto pouco utilizado. 

O esteatócrito (teste semi-quantitativo) ou teste qualitativo de gordura nas fezes com amostra única (SUDAM III) têm baixa sensibilidade para o diagnóstico de esteatorreia, portanto não ajudam se vierem negativos.

A elastase fecal é uma enzima produzida pelo pâncreas que é pouco degradada no trânsito intestinal, e recuperada de forma quase intacta nas fezes. A pesquisa é feita com amostra única de fezes e é somente importante que as fezes não estejam líquidas (pois isso diminuiria a especificidade do exame, podendo levar a um falso-positivo). Os níveis de elastase são considerados normais se estiverem acima de 200 mcg/g fezes. Abaixo desse valor, é sugerida uma insuficiência pancreática leve, e níveis abaixo de 100 mcg/g fezes sugerem insuficiência pancreática grave. O exame tem sensibilidade em torno de 77% (maior para insuficiências moderadas e graves) e especificidade de 88% (diminuída em fezes líquidas ou presença de algumas condições associadas, como supercrescimento bacteriano – SIBO)

Além dos testes funcionais para avaliação exócrina, é sempre prudente a pesquisa de insuficiência endócrina, com dosagem de glicose e hemoglobina glicada.

Em resumo, o diagnóstico de pancreatite crônica envolve suspeição por parte do gastroenterologista (especialmente nos casos em que há fatores de risco presentes e quadro clínico compatível), mas também exige alteração em exame de imagem. A escolha do exame de imagem deve ser baseada na experiência de cada profissional, assim como custos dos exames e disponibilidade em cada local. É imprescindível também a pesquisa de insuficiência pancreática exócrina (que pode estar presente nas PC) e pesquisa e monitorização da função endócrina.

Leia também: insuficiência exócrina do pâncreas: um olhar além do óbvio

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Referências

  1. Vege, SS, Chari, ST. Chronic Pancreatitis. N Engl J Med 2022;386:869-78.
  2. Issa Y, Kempeneers MA, van Santvoort HC, et al. Diagnostic performance of imaging modalities in chronic pancreatitis: a systematic review and meta-analysis. Eur Radiol 2017;27:3820–44.
  3. Beyer, G et al. Chronic Pancreatitis. Lancet 2020; 396: 499–512
  4. Singh, VK et al. Diagnosis and Management of Chronic Pancreatitis – A Review. JAMA. 2019;322(24):2422-2434.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Crônica: Como fazer o diagnóstico Gastropedia 2024, vol 2. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreatite-cronica-como-fazer-o-diagnostico/




Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte II

No artigo anterior discorremos sobre as mudanças na classificação histopatológica, definição dos estigmas de alto risco e dos marcadores para diagnóstico dos IPMNs.

Vamos continuar a análise do Guideline de Kyoto, em relação às lesões císticas pancreáticas.

6) Indicação cirúrgica: Neste aspecto, o guideline não difere muito da atualização do consenso de Fukuoka em 2017. A cirurgia proposta é a pancreatectomia parcial com realização de linfadenectomia radical se houver suspeita de carcinoma invasivo, e a cirurgia com preservação de baço ou piloro se não houver suspeita de carcinoma invasivo. É sempre interessante realizar a congelação intra-operatória, especialmente para avaliar comprometimento de ducto principal. Ainda há dúvidas quanto a ressecção ampliada caso haja displasia de alto grau na margem cirúrgica, mas há consenso que displasia de baixo grau na margem cirúrgica não deve indicar ampliação da ressecção.

A pancreatectomia total profilática não é indicada, e o pâncreas residual deverá permanecer em vigilância.

7) Vigilância de IPMNs não operados: no Guideline de Kyoto, houve uma mudança no seguimento dos IPMNs não operados, de acordo com o risco de malignização. (Se quiser conferir as recomendações dos critérios de Fukuoka clique nesse link: IPMN.)

Tamanho do IPMN Vigilância
< 20mm Primeiro exame em 6 meses, após a cada 18 meses, se estável
20 mm < IPMN < 30 mm 6/6meses por 1 ano, e após 1 exame a cada 12 meses, se estável
> 30mm A cada 6 meses

8) Quando suspender a vigilância: esse tópico é, talvez, a maior fonte de debates entre pancreatologistas. Há muita dúvida quanto à segurança de se parar a vigilâncias dos IPMNs de ductos secundários. Desde 2015, no Guideline da American Gastroenterological Association (AGA), quando foi proposto que lesões estáveis em tamanho e mantendo-se sem estigmas de alto risco por mais de 5 anos, poderiam não ser mais vigiadas. Esta recomendação foi alvo de críticas de muitos autores, pois não havia discriminação quanto ao tamanho ou características da lesão.

Em 2023, houve um estudo retrospectivo italiano (publicado na Gastroenterology), que concluiu que cistos < 30mm em pacientes com mais de 75 anos que permanecessem estáveis, e cistos < 15 mm (estáveis) em pacientes com 65 anos ou mais poderiam não ser vigiados com segurança.

No nosso Guideline de Kyoto a recomendação de parar a vigilância é um pouco genérica, colocada como cistos < 20 mm, sem nenhum sinal de alto risco ou nenhum sinal preocupante, que permaneceu em vigilância por pelo menos 5 anos. Também é recomendado que a vigilância cesse se o paciente não for elegível para um procedimento cirúrgico ou se tiver expectativa de vida < 10 anos.

9) PDAC (adenocarcinoma ductal pancreático) concomitante: além da própria progressão do IPMN para displasias de alto grau e carcinoma invasivo, há o risco de adenocarcinoma ductal concomitante em pacientes com IPMN. O risco de PDAC parece ser 3-5x maior em pacientes com IPMN do que em pacientes controle (estudos em pacientes japoneses, não ainda replicados em países ocidentais). Curiosamente, o risco parece ser maior em pacientes com IPMNs pequenos, e esse risco permanece mesmo após os 5 anos de vigilância. Esse pode ser um dos argumentos para que não se suspenda a vigilância nos IPMNs.

10) Vigilância de IPMNs não ressecados: a prevalência de IPMNs multifocais giram em torno de 20-40% dos casos. A presença de múltiplos IPMNs não aumenta o risco de displasia de alto grau ou carcinoma in situ. A vigilância se baseia no IPMN de maior risco, e a ressecção (se indicada) deve ser apenas da lesão considerada de alto risco.

11) Vigilância do pâncreas remanescente após ressecção por IPMN: o pâncreas remanescente deverá permanecer em vigilância após a pancreatectomia parcial por IPMN. O risco cumulativo de novas lesões significativas em 5 anos é de 10%. O risco de lesões invasivas é de 4%, e os fatores de risco para tais lesões são displasia de alto grau na peça ressecada e histórico familiar de PDAC. Mesmo os IPMNs de baixo grau devem ser vigiados pelo risco de progressão das lesões císticas.

Com isso encerramos os principais tópicos do Guideline de Kyoto, que em alguns aspectos difere dos guidelines anteriores. A verdade é que quando o assunto é IPMN (principalmente dos de ducto secundário) ainda há muita dúvida no entendimento e condução dos casos. Seguimos estudando.

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Referências

  1. Ohtsuka, T et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology, 2023. https://doi.org/10.1016/j.pan.2023.12.009
  2. Tanaka, M et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pâncreas. Pancreatology, 2017. http://dx.doi.org/10.1016/j.pan.2017.07.007
  3. Vege, SS et al. American Gastroenterological Association Institute Guideline on the Diagnosis and Management of Asymptomatic Neoplastic Pancreatic Cysts. Gastroenterology 2015;148:819–822.
  4. Marchegiani, G et al. Surveillance for Presumed BD-IPMN of the Pancreas: Stability, Size, and Age Identify Targets for Discontinuation. Gastroenterology 2023;165:1016–1024

Como citar este artigo

Marzinotto M. Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte II Gastropedia 2024, vol 2. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/guideline-de-kyoto-atualizacoes-na-abordagem-dos-ipmns-parte-ii




Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I

Os cistos pancreáticos são frequentemente achados de imagem em pacientes assintomáticos ou com sintomas inespecíficos. Está cada dia maior a procura aos consultórios de cirurgiões e gastroenterologistas para definir conduta.

Para nos guiar nesse assunto recorremos aos guidelines de grupos internacionais, que auxiliam no manejo dos cistos pancreáticos. O primeiro guideline de 2006 (estabelecido pelo grupo internacional em Sendai, no Japão) direcionava as atenções aos cistos mucinosos – cistoadenoma mucinoso e IPMNs – que classicamente exibem algum risco de malignização.

Da mesma forma, em 2012, na cidade de Fukuoka no Japão, estabeleceram-se novas atualizações para seguimento e abordagem dos cistos mucinosos. Os critérios de Fukuoka, que foram atualizados em 2017, são até hoje considerados como tendo um alto valor preditivo negativo (ou seja, os cistos que não preenchem os critérios de Fukuoka de estigmas de alto risco ou ¨sinais preocupantes¨ têm praticamente 100% de chance de não serem malignos).

Existem ainda os guidelines europeu e da ACG (publicados em 2018) que também se referem a outros tipos de cistos (como os cistoadenomas serosos), que exibem pequenas diferenças no seguimento em relação ao consenso de Fukuoka.

Em dezembro de 2023 foi publicado na Pancreatology um novo guideline sobre o manejo dos IPMNs, realizado em Kyoto. Algumas mudanças em relação a guidelines anteriores foram bem evidentes. Vamos aqui ressaltar os principais pontos desse novo consenso:

  1. Aspectos patológicos: em relação aos graus de displasia, as lesões podem ser classificadas como displasia de baixo grau, displasia de alto grau (carcinoma in situ) e carcinoma invasivo (as duas últimas se apresentam com indicação cirúrgica). Os subtipos morfológicos atualmente são apenas 3: gástrico, intestinal e pancreatobiliar (o subtipo oncocítico previamente descrito foi separado dos IPMNs, e atualmente é descrito como neoplasia papilar intraductal oncocítica).

  1. Aspectos moleculares: os marcadores moleculares conhecidos ainda não tem impacto prognóstico nos IPMNs, apenas para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas. Os IPMNs tem mutações no KRAS (60-70%) e mutações no GNAS (50-70%). As mutações no GNAS não são encontradas nos cistoadenomas mucinosos.

  1. Avaliação de riscos: os termos Estigmas de Alto Risco (High Risk Stigmata) e Sinais Preocupantes (Worrisome features) continuam a ser utilizados. O primeiro termo se refere a sinais preditores de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. São considerados:

    1. High Risk Stigmata: (i) icterícia obstrutiva em pacientes com lesão na porção cefálica do pâncreas; (ii) nódulo mural com realce > 5 mm ou componente sólido; (iii) ducto pancreático principal > 10 mm; (iv) citologia + ou suspeita para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo.
    2. Worrisome features: (i) pancreatite aguda; (ii) elevação do marcador ca19/9; (iii) diabetes de início recente ou piora abrupta de DM anterior; (iv) nódulo mural com realce < 5 mm; (v) cisto > 30 mm; (vi) parede do cisto espessada ou realçada; (vii) ducto pancreático principal entre 5-9 mm; (viii) mudança abrupta no calibre do ducto principal e atrofia do parênquima à montante; (ix) linfoadenopatia; (x) crescimento do cisto pancreático ≥ 2,5 mm/ano.

  1. Marcadores séricos: o Ca 19-9 (leia mais nesse artigo) ainda foi considerado como o único marcador sérico que pode ter relação com o aparecimento de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. Os marcadores moleculares (como KRAS e GNAS) em biópsia líquida ainda estão sendo estudados, sem orientação para serem utilizados de rotina, por enquanto.

  1. Marcadores intra-císticos: a análise bioquímica do fluido do cisto ainda é interessante na diferenciação de cistos mucinosos de não mucinosos. Os valores de CEA (>192 ng/ml) e de glicose (<50 ng/dL) tem alta especificidade para diagnóstico de cisto mucinoso. A dosagem da glicose foi incorporada somente nesse guideline como sendo marcador de alta acurácia para lesões mucinosas. Na análise molecular, a presença de mutações no KRAS e GNAS também têm alta especificidade para diagnóstico de IPMNs. Para avaliar lesões com displasia de alto grau ou já com carcinoma os marcadores genéticos ainda possuem baixa sensibilidade (mutações no SMAD4, TP53, CDKN2A e PIK3CA possuem sensibilidade de 9-39% apenas), embora tenham alta especificidade.

Nessa primeira parte do guideline de Kyoto, analisamos as mudanças na classificação histopatológica, uma definição mais clara dos estigmas de alto risco e dos sinais preocupantes, além de marcadores para diagnóstico dos IPMNs. Marcadores séricos e intracísticos que avaliam degeneração dos IPMNs ainda têm baixa sensibilidade, com pouca recomendação de uso.

Na segunda parte vamos comentar sobre conduta e vigilância dessas lesões: Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte II

Referências:

  1. Ohtsuka, T et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology, 2023. https://doi.org/10.1016/j.pan.2023.12.009
  2. Tanaka, M et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pâncreas. Pancreatology, 2017. http://dx.doi.org/10.1016/j.pan.2017.07.007
  3. Elta, GH et al. ACG Clinical Guideline: Diagnosis and Management of Pancreatic Cysts. Am J Gastroenterol 2018. doi: 10.1038/ajg.2018.14

Como citar este artigo

Marzinotto M. Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreas/guideline-de-kyoto-atualizacoes-na-abordagem-dos-ipmns-parte-i/