Para além da dieta sem glúten: como orientar seu paciente celíaco

Para os portadores da doença celíaca não há, por ora, alternativa: o tratamento é eliminar o glúten da dieta por toda vida. Mas será que somente essa orientação basta? Como o gastroenterologista pode acompanhar seu paciente com doença celíaca?

Existem seis elementos principais no cuidado com o nosso paciente celíaco que podem ser resumidos no acrônimo CELIAC:

  1. Consultar com um nutricionista qualificado;
  2. Educação sobre a doença;
  3. Adesão ao Longo da vida a uma dieta sem glúten;
  4. Identificação e tratamento de deficiências nutricionais;
  5. Acesso a um grupo de apoio;
  6. Acompanhamento Contínuo a longo prazo por uma equipe multidisciplinar.

(Adaptado de: National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement. Celiac Disease 2004)

Na primeira parte deste artigo vamos discorrer sobre como orientar a dieta do paciente com doença celíaca e na segunda vamos discorrer sobre como monitorar a resposta ao tratamento.

1. Tratamento do paciente com doença celíaca

Sobre a dieta sem glúten

Como sabemos, a base do tratamento do paciente com doença celíaca é a dieta sem glúten. Isso serve para todos os pacientes com doença celíaca: clássica, atípica e doença celíaca assintomática.

Pacientes com doença celíaca latente (anticorpo positivo, porém com histologia duodenal normal) não são aconselhados a seguir uma dieta sem glúten, mas devem seguir monitorados. Vale a pena perguntar: será que as biópsias duodenais foram feitas de forma correta?

Leia sobre o correto diagnóstico da doença celíaca aqui: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/como-diagnosticar-corretamente-a-doenca-celiaca/

Lembrar que pacientes com doença celíaca latente devem ser rebiopsiados caso apareçam quaisquer sintomas.

É muito importante orientar o paciente a ler os rótulos dos alimentos, com atenção especial aos aditivos, como estabilizantes ou emulsificantes que podem conter glúten.

Encaminhar o paciente para um acompanhamento com nutricionista com experiência em doença celíaca é essencial. Certamente é este profissional que mais ajudará nosso paciente nesta longa jornada desafiadora.

Sobre traços

Recomenda-se que não ultrapasse 10 a 50 partes por milhão (ppm).

Um estudo que avaliou a ingesta oculta de glúten entre 76 pacientes estimou que a contaminação por glúten de até 100 ppm não resultou em lesão histológica.

Porém sabe-se que a contaminação com traços pode ser fator de confundimento com a doença celíaca não-responsiva ou refratária.

Sobre leite e derivados

Alguns pacientes podem não tolerar leite e derivados do leite, uma vez que alguns deles podem ter intolerância a lactose secundária. Lembrar que, após a recuperação da mucosa, esse quadro pode se resolver.

Sobre a ingesta de álcool

Atenção para a ingesta de álcool: destilados e vinho são isentos de glúten. As cervejas contêm glúten, porém já existem cerveja sem glúten no mercado.

Sobre o imbróglio: ingerir ou não aveia?

O consumo de aveia parece ser seguro para a maioria dos pacientes, mas pode ser imunogênica em subgrupo deles (reação imune à proteína da aveia avenina).

A heterogeneidade da tolerância à aveia pode estar relacionada à contaminação (cultivo, colheita, transporte ou processamento). O paciente precisa ter certeza que a aveia é isenta de glúten antes de consumir. Alguns pesquisadores brasileiros defendem que, no Brasil, todos os celíacos devem evitar aveia.

Caso possível, por que manter a aveia? A adição da aveia não contaminada na dieta sem glúten deixa a dieta mais palatável, com mais nutrientes (fibra solúvel, gordura poliinsaturada, vitaminas do complexo B como a tiamina e ferro), além de mais laxativa.

Sobre medicamentos

Os comprimidos contêm uma quantidade mínima de glúten e não precisam ser evitados.

Sobre os sensores de glúten nos alimentos

Não há evidência que os sensores que detectam glúten nos alimentos melhoram a adesão à dieta ou a qualidade de vida.

Sobre probióticos

Não há evidência suficientes para falar a favor ou contra o uso de probióticos na doença celíaca.

2. Monitorização da resposta

Cerca de 70% dos pacientes terão melhora clínica em 2 semanas. Como regra geral, os sintomas melhoram mais rapidamente que a histologia.

Os pacientes devem ser avaliados também com hemograma, perfil do ferro, vitaminas (B12, A, D, K, E), folato, enzimas hepáticas, cobre e zinco.

Sobre a sorologia

Dependendo das concentrações pré-tratamento, os valores dos anticorpos tendem a se normalizar dentro de 3 a 12 meses.

A sorologia deve ser realizada de 6 a 12 meses após o início da dieta sem glúten. Embora a normalização dos títulos dos anticorpos não indique necessariamente a recuperação da mucosa, se eles se mantiverem alto, significa que o paciente continua a ingerir glúten (de forma intencional ou não).

Após a normalização dos anticorpos, estes devem ser dosados anualmente.

Sobre as biópsias duodenais

Nosso objetivo é a cicatrização da mucosa.

Embora a normalização dos anticorpos aumente a probabilidade de cicatrização da mucosa, essa correlação não é suficiente, devendo-se realizar as biópsias duodenais para checarmos a cicatrização da mucosa.

O American College of Gastroenterology recomenda em seu guideline que as biópsias devem ser realizadas após 2 anos de início da dieta sem glúten. No Brasil, é comum lermos nos livros-texto o controle endoscópico com 12 meses.

Em uma parte dos pacientes, a mucosa não cicatrizará, apesar da sorologia negativa e da ausência de sintomas. A ausência de cicatrização da mucosa está associada a aumento do risco de linfoma e de doença óssea.

Atentar para doença celíaca refratária em pacientes com boa adesão à dieta e que se mantém sintomáticos.

Como os estudos que mostram os supostos benefícios de acompanhar o paciente com biópsias endoscópicas são observacionais e não há estudos randomizados prospectivos avaliando o seguimento com e sem biópsias, a sugestão é que essa decisão (seguir com biópsias) deve ser compartilhada entre o médico e o paciente.

No Brasil, como temos fácil acesso aos exames endoscópicos, é nossa rotina o acompanhamento com biópsias.

Sobre a vacinação

Adultos com doença celíaca tem risco significativamente maior de infecção pneumocócica (pneumonia e sepse). Acredita-se que esse aumento seja devido ao hipoesplenismo, frequentemente subclínico, encontrado aproximadamente em um terço dos pacientes com doença celíaca.

A vacinação contra pneumococo é segura e eficaz e deve ser considerada em pacientes com doença celíaca, em especial em pacientes de 15- 64 anos que não receberam essa vacinação na infância.

Referências

  1. Rubio-Tapia, Alberto MD1; Hill, Ivor D. MD2; Semrad, Carol MD3; Kelly, Ciarán P. MD4; Greer, Katarina B. MD, MS5; Limketkai, Berkeley N. MD, PhD, FACG6; Lebwohl, Benjamin MD, MS7. American College of Gastroenterology Guidelines Update: Diagnosis and Management of Celiac Disease. The American Journal of Gastroenterology 118(1):p 59-76, January 2023. | DOI: 10.14309/ajg.0000000000002075
  2. Ciarán P. Kelly. Diagnosis of Celiac disease in adults. In: J Thomas Lamont (Ed). Up to date. 2024
  3. National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement. Celiac Disease 2004. Gastroenterology 2005;128:S1–S9 | DOI: https://doi.org/10.1053/j.gastro.2005.02.007
  4. Collin P, Thorell L, Kaukinen K, Mäki M SO. The safe threshold for gluten contamination in gluten-free products. Can trace amounts be accepted in the treatment of coeliac disease? Aliment Pharmacol Ther. 2004;19(12):1277 -83. DOI: 10.1111/j.1365-2036.2004.01961.x.
  5. Zaterka, S , Passos MCF, Chinzon D. Tratado de gastroenterologia: da graduação à pós-graduação – 3a edição. Rio de Janeiro: Atheneu, 2023.

Como citar este artigo

Arraes L. Para além da dieta sem glúten: como acompanhar seu paciente celíaco Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/para-alem-da-dieta-sem-gluten-como-acompanhar-seu-paciente-celiaco




Impedâncio-pHmetria esofágica: Princípios técnicos

Em 1991, Silny descreveu técnica para medida da impedância intraluminal esofágica, que permitiu posteriormente o desenvolvimento do cateter de impedâncio-pHmetria.1 Para a compreensão deste exame, é necessário relembrar que impedância é a medida de resistência ao fluxo de uma corrente entre dois eletrodos. Logo, quanto maior é a condutividade do material pelo qual a corrente passa, menor será a resistência e, consequentemente, menor será a impedância.2

O cateter de impedâncio-pHmetria (ZpH) tem o mesmo diâmetro que o cateter convencional de pHmetria (2 mm) e apresenta, além do sensor de pH, anéis metálicos (eletrodos) que são capazes de registrar a resistência ao fluxo (impedância) à corrente entre eles. Desta forma, em cateter padrão, observam-se 6 canais (Z1 a Z6, de proximal a distal), sendo que cada um representa um segmento de impedância elétrica ao redor do cateter no trecho compreendido entre um par de eletrodos, conforme representado na Figura 1.2,3

Figura 1: Representação da estrutura do cateter de impedâncio-pHmetria composto por 8 eletrodos que determinam 6 canais de impedância

A impedância intraluminal esofágica é baseada na medida das variações de resistência elétrica (em Ohms) nestes canais durante a passagem do bolo alimentar. Os líquidos apresentam alta condutividade e, portanto, baixa resistência, sendo detectados pelo decréscimo de 50% da impedância basal. O oposto ocorre com conteúdos gasosos, que são identificados pela elevação da impedância basal em 50% 4,5

A monitorização dessa impedância intraluminal esofágica possibilita a avaliação do transporte do bolo alimentar e de todos os tipos de refluxo, seja ácido ou não.4,6 Na deglutição, observa-se a variação de impedância primeiro em sensores proximais e posteriormente nos distais, ao passo que no caso do refluxo é verificado o oposto devido ao movimento retrógrado do bolo alimentar. Quando a impedância é associada à pHmetria, é possível avaliar se o material refluído é ácido (pH < 4), fracamente ácido (pH entre 4 e 7) ou não-ácido (pH > 7), conforme está representado nas Figuras 2 e 3.3-5

Figura 2: Identificação de refluxo ácido em exame de impedâncio-pHmetria
Figura 3: Identificação de refluxo não-ácido em exame de impedâncio-pHmetria

A avaliação da correlação de sintomas com refluxo é semelhante à utilizada na pHmetria convencional. Um sintoma está associado ao refluxo quando for descrito até 2 minutos após este refluxo.7 Os principais índices utilizados são:

  • Índice de sintomas (IS): calcula o percentual de episódios de sintomas relacionados a refluxos durante o estudo (= [Número de sintomas relacionados ao refluxo x 100] / Número total de sintomas). Um IS acima de 50% é considerado uma associação positiva entre sintomas e refluxo;3
  • Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS): É calculado dividindo os dados da monitorização de pH de 24 horas em segmentos consecutivos de 2 minutos. Para cada um desses 2 minutos, é determinado se ocorreu refluxo, fornecendo o número total de segmentos de 2 minutos com (R+) ou sem (R-) refluxo. Então, para cada episódio de sintoma, é determinado se ocorreu (S+R+) ou não (S+R-) refluxo no período de dois minutos precedente (Figura 4). A subtração de S+R+ do total R+ resulta em S-R+ e a subtração de S+R- do total de R- resulta em S-R-. Uma tabela 2×2 é então montada, tabulando-se nas colunas o número de segmentos com e sem sintomas e nas linhas o número de segmentos com e sem refluxo (Tabela 1). O teste exato de Fisher é usado para calcular a probabilidade (p) da distribuição ser ao acaso. A PAS é calculada por (1 – p) x 100%. Por convenção estatística, PAS maior ou igual a 95% significa que há uma associação positiva entre sintomas e refluxo. 7,8

Segundo o Roma IV, estes índices têm utilidade na determinação de pacientes com hipersensibilidade esofágica, que seriam aqueles com exposição ácida normal mas associação de sintomas positiva.9 O uso destes escores é, contudo, limitado, pela baixa quantidade de sintomas reportados durante a monitorização ambulatorial e pela variação diária.10

Fonte: Adaptado de Bredenoord et al., 2005.7
Figura 4: Representação esquemática de traçado de pHmetria para cálculo de Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS).

Neste exemplo (Figura 4), existem dois momentos em que o paciente pressionou o botão de sintomas. O primeiro deles é precedido de refluxo ácido (S+R+), ao passo que o segundo não tem associação com refluxo (S+R-).

Sintomas (S)
+
Refluxo (R) + S+R+ S-R+
S+R- S-R-
Fonte: Adaptado de Bredenoord et al, 2005 7
Legenda: S+R+: Sintoma precedido por refluxo; S+R-: Sintoma não precedido por refluxo; S-R+: Refluxo sem presença de sintomas; S-R-: Ausência de refluxo ou de sintoma.
Tabela 1 – Tabela 2×2 para cálculo da Probabilidade de Associação de Sintomas

Outras duas métricas que vem ganhando relevância na impedâncio-phmetria são a média noturna basal da impedância (MNBI) e o índice de onda peristáltica induzida por deglutição pós-refluxo (índice PSPW, sigla já consagrada de post-reflux swallow-induced peristaltic wave). Contudo, iremos discutir estes tópicos em outra postagem futura do Gastropedia!

Por fornecer mais informações sobre o refluxo, a impedâncio-pHmetria é considerada o método mais eficiente de monitorização prolongada em DRGE.13,14 No entanto, assim como na pHmetria tradicional, a necessidade de cateter nasal por 24 horas é desagradável para o paciente, acarretando por vezes mudanças nos seus hábitos diários. Existe ainda a possibilidade de variação diária de refluxos e sintomas, reduzindo a sensibilidade do método.2,3

Saiba mais:

Referências

  1. Silny J. Intraluminal Multiple Electric Impedance Procedure for Measurement of Gastrointestinal Motility. J Gastrointest Motil. 1991;3(3):151–62.
  2. Patel DA, Vaezi MF. Utility of esophageal mucosal impedance as a diagnostic test for esophageal disease. Curr Opin Gastroenterol. 2017;33(4):277–84.
  3. Fontes LHS, Navarro-Rodriguez T, Lages RB, Freitas DGV de, Assiratti FS, Teixeira AC de S. Manual prático de impedâncio-pHmetria esofágica. 1st ed. São Paulo: Editora dos Editores; 2020. 88 p.
  4. Herbella FAM, Del Grande JC. Novas técnicas ambulatoriais para avaliação da motilidade esofágica e sua aplicação no estudo do megaesôfago. Rev Col Bras Cir. 2008;35(3):199–202.
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  6. Sifrim D, Castell D, Dent J, Kahrilas PJ. Gastro-oesophageal reflux monitoring: review and consensus report on detection and definitions of acid, non-acid, and gas reflux. Gut. 2004;53(7):1024–31.
  7. Bredenoord AJ, Weusten BLAM, Smout AJPM. Symptom association analysis in ambulatory gastro-oesophageal reflux monitoring. Gut. 2005;54(12):1810–7.
  8. Weusten BL, Roelofs JM, Akkermans LM, Van Berge-Henegouwen GP, Smout AJ. The symptom-association probability: an improved method for symptom analysis of 24-hour esophageal pH data. Gastroenterology. 1994;107(6):1741–5.
  9. Aziz Q, Fass R, Gyawali CP, Miwa H, Pandolfino JE, Zerbib F. Esophageal Disorders. Gastroenterology. 2016;150(6):1368–79.
  10. Vaezi MF, Sifrim D. Assessing Old and New Diagnostic Tests for Gastroesophageal Reflux Disease. Gastroenterology. 2018;154(2):289–301.
  11. Frazzoni M, Savarino E, de Bortoli N, Martinucci I, Furnari M, Frazzoni L, et al. Analyses of the Post-reflux Swallow-induced Peristaltic Wave Index and Nocturnal Baseline Impedance Parameters Increase the Diagnostic Yield of Impedance-pH Monitoring of Patients With Reflux Disease. Clin Gastroenterol Hepatol. 2016;14(1):40–6.
  12. Frazzoni L, Frazzoni M, de Bortoli N, Tolone S, Furnari M, Martinucci I, et al. Postreflux swallow-induced peristaltic wave index and nocturnal baseline impedance can link PPI-responsive heartburn to reflux better than acid exposure time. Neurogastroenterol Motil. 2017;29(11):e13116.
  13. Nasi A, Queiroz NSF, Michelsohn NH. Prolonged gastroesophageal reflux monitoring by impedance-pHmetry: a review of the subject pondered with our experience with 1,200 cases. Arq Gastroenterol. 2018;55(Suppl 1):76–84.
  14. Marabotto E, Savarino V, Ghisa M, Frazzoni M, Ribolsi M, Barberio B, et al. Advancements in the use of 24-hour impedance-pH monitoring for GERD diagnosis. Curr Opin Pharmacol. 2022 Aug;65:102264.

Como citar este artigo

Lages RB. Impedâncio-pHmetria esofágica: Princípios técnicos Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/impedancio-phmetria-esofagica-principios-tecnicos




Deficiência de lipase ácida lisossomal (LAL-D)

A deficiência de lipase ácida lisossomal (LAL-D) é uma desordem crônica e progressiva do metabolismo dos lipídeos, agrupada em um grupo com cerca de 70 doenças de depósito lisossômico.

Apresenta um padrão de herança autossômica recessiva, causada por uma mutação no gene da lipase ácida lisossomal – LIPA, que resulta em ausência total ou deficiência significativa na atividade da enzima lipase ácida lisossomal (LAL). Mais de 120 mutações levando à perda de função da proteína já foram descritas no gene LIPA associadas à LAL-D, sendo a mais comum uma mutação em sítio de processamento de RNA mensageiro (splice junction mutation), E8SJM (c.894G>A).

Essa perda de função da proteína leva ao acúmulo de ésteres de colesterol (EC) e triglicérides (TG) dentro dos lisossomos, o que acarreta um desbalanço do metabolismo do colesterol, causando dislipidemia, aterosclerose precoce e disfunção orgânica.

A doença acomete uma ampla faixa etária, de recém-nascidos a adultos, com a maior parte dos casos diagnosticada antes dos 20 anos de idade. Homens e mulheres parecem ser igualmente afetados.

A prevalência exata da LAL-D permanece desconhecida, inicialmente, reportaram como sendo em 1 para cada 40.000 a 300.000 pessoas, dependendo da etnia e localização geográfica.

A suposição de que LAL-D é extremamente rara é baseada nos poucos casos publicados na literatura médica. Entretanto, a frequência de LAL-D nas diferentes populações não é conhecida e a doença, provavelmente, é subdiagnosticada.

Fisiopatologia

A LAL é responsável pela hidrólise de EC e TG, resultando em colesterol livre, ácido graxo livre e glicerol, que são liberados no citoplasma. A homeostase do colesterol é controlada, principalmente, pela concentração plasmática de colesterol livre, que influencia a atividade dos fatores de transcrição nuclear que regulam a síntese do colesterol e TG, expressão de receptores de LDL-c e efluxo do colesterol.

A diminuição ou ausência da atividade da LAL faz com que essa hidrólise de EC e TG fique reduzida, acarretando no acúmulo de colesterol livre e ácido graxo livre no interior dos lisossomos e redução dos seus níveis no citoplasma.

Apresentação Clínico-Laboratorial

LAL-D é uma doença heterogênea e se apresenta com sintomas, características e taxas de progressão que variam entre os indivíduos afetados. Essas diferenças se devem ao tipo de mutação no gene LIPA, o que leva à disparidade de níveis na atividade residual enzimática. O espectro da doença varia entre a forma grave e precoce, com alta mortalidade, que acomete crianças menores que um ano, conhecida por Doença de Wolman (DW), até a forma tardia, menos grave e de apresentação variável, que acomete crianças mais velhas e adultos, conhecida por Doença de Depósito de Éster de Colesterol (DDEC).

Na DDEC, a idade de apresentação varia desde crianças mais jovens até adultos, com a maior parte dos afetados entre 3 e 12 anos. A investigação diagnóstica, muitas vezes, é iniciada devido a quadro de dislipidemia em jovens, a aumento do volume abdominal causado pela hepatomegalia e à detecção ocasional de elevação de transaminases.

As manifestações clínicas mais comuns nesses pacientes são doença hepática e dislipidemia. Hepatomegalia foi descrita em 88-99% dos casos e esplenomegalia em 74-79% dos casos.

Esteatose hepática é comum e indivíduos afetados apresentam risco significativo de desenvolver fibrose e cirrose, com suas complicações, como hipertensão portal, ascite, encefalopatia hepática, varizes de esôfago e CHC. A partir do desenvolvimento dessas complicações, deve-se atentar para a necessidade de transplante hepático.

As manifestações extra-hepáticas mais comuns incluem: diarreia/esteatorreia, epigastralgia, náusea, anemia, colestase, atraso do crescimento e doenças cardiovasculares. Acúmulo de lípides no trato gastrointestinal é um achado frequente, relacionado, muitas vezes, com síndrome de má absorção.

Diagnóstico

O diagnóstico de LAL-D pode ser realizado por meio da redução da atividade da enzima lipase ácida lisossomal, mutação do gene LIPA e/ou biópsia hepática.

  • Atividade da LAL

Atualmente, o exame mais utilizado para essa avaliação é o método de dried blood spot (DBS).

A atividade é medida utilizando-se um inibidor específico, chamado lalistat 2. Esse método resulta em uma boa separação na atividade da LAL em indivíduos controle normais, homozigotos e heterozigotos.

Mutação do gene LIPA

O sequenciamento completo das regiões de codificação do gene LIPA auxilia no diagnóstico e na caracterização de pacientes em investigação de LAL-D. Embora a maioria dos pacientes com LAL-D seja homozigota ou heterozigota composta para as mutações do gene LIPA, alguns pacientes possuem mutações intrônicas (sequência de nucleotídeos na qual um gene que é removido pelo RNA splicing durante a transcrição do produto final), que passam despercebidas pelo sequenciamento genético.

Biópsia hepática

O procedimento geralmente é realizado durante a suspeita diagnóstica de pacientes com LAL-D.

Macroscopicamente, o fígado de pacientes com LAL-D apresenta-se de coloração alaranjada ou amarelada.

Fonte: Dincsoy et al., Am J Clin Pathol;
1984.

Na histologia, esteatose microvesicular ou mista geralmente está presente, porém esse achado, muitas vezes, não pode ser distinguido de outras causas de doença hepática gordurosa nem de uso de substâncias que podem levar a esse padrão histológico quando as lâminas são coradas com hematoxilina-eosina. Além disso, a luz polarizada pode ser utilizada para identificar cristais de colesterol em hepatócitos e células de Kupfer. Esses cristais birrefringentes podem ser examinados pela microscopia eletrônica e podem ser lisossomais ou citosólicos. A presença deles acredita-se ser patognomônica de LAL-D.

*Paciente do sexo masculino, 16 anos, com diagnóstico de CESD

Fonte: Laboratório de Patologia Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Alterações no trato gastrointestinal são observadas na mucosa e, menos frequentemente, na submucosa do intestino delgado. Macrófagos espumosos infiltrando a lâmina própria podem estar presentes, com distorção arquitetural e alteração na absorção e atividade enzimática dos enterócitos.

*Paciente do sexo feminino, 45 anos, com diagnóstico de DDEC

Fonte: Equipe de Endoscopia do Centro de Diagnóstico em Gastroenterologia (CDG) e Laboratório de Patologia Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Diagnóstico diferencial

Devido à semelhança com outras doenças cardiovasculares, hepáticas e metabólicas, o diagnóstico de LAL-D é desafiador. Sem a investigação apropriada, essas semelhanças podem levar ao diagnóstico errado e ao atraso do manejo apropriado.

Doenças que cursam com dislipidemia, Hiperlipidemia Combinada Familiar (FCH), Hipercolesterolemia Familiar Heterozigota (HeFH) e Hipercolesterolemia Poligênica estão entre os diagnósticos diferenciais.

Alterações hepáticas que se assemelham ao quadro de LAL-D podem incluir DHGNA, EHNA, doença hepática criptogênica e doenças de depósito lisossômico.

Tratamento

Antes da aprovação da terapia de reposição enzimática, com a sebelipase alfa (Kanuma®, Alexion Pharmaceuticals, Inc.), as opções terapêuticas para tratamento da LAL-D eram de suporte, incluindo agentes redutores da lipemia, dieta à base de baixa ingestão de gorduras, transplante de medula óssea e transplante hepático. Nenhum desses tratamentos, exceto a terapia de reposição enzimática (TRE), com a sebelipase alfa, que se demonstrou seguro e efetivo no tratamento da LAL-D.

Redução de fibrose hepática foi observada em 8 de 12 pacientes tratados com sebelipase alfa na semana 52 de tratamento (amostras obtidas pré-tratamento, nas semanas 20 e 52). Essa melhora histológica acompanhou a redução da gordura hepática, dos níveis de ALT e de LDL-c. Em três pacientes, não foi observada alteração do grau de fibrose e, em um paciente, mesmo com uso da TRE, houve progressão da fibrose hepática. A maior duração do tratamento tende a evidenciar melhor redução dos graus de fibrose.

Referências

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  2. Aslanidis C, Ries S, Fehringer P, Büchler C, Klima H, Schmitz G. Genetic and biochemical evidence that CESD and Wolman disease are distinguished by residual lysosomal acid lipase activity. Genomics. 1996;33(1):85-93.
  3. Scott SA, Liu B, Nazarenko I, Martis S, Kozlitina J, Yang Y, et al. Frequency of the cholesteryl ester storage disease common LIPA E8SJM mutation (c.894G>A) in various racial and ethnic groups. Hepatology. 2013;58(3):958-65.
  4. Carter A, Brackley SM, Gao J, Mann JP. The global prevalence and genetic spectrum of lysosomal acid lipase deficiency: a rare condition that mimics NAFLD. J Hepatol. 2019 Jan;70(1):142-50.
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  7. Grabowski GA, Charnas L, Du H. Lysosomal acid lipase deficiencies : the wolman disease / cholesteryl ester storage disease spectrum. Lancet Gastroenterol Hepatol. 2017 Sep;2(9):670-9.
  8. Reiner Ž, Guardamagna O, Nair D, Soran H, Hovingh K, Bertolini S, et al. Lysosomal acid lipase deficiency – an under-recognized cause of dyslipidaemia and liver dysfunction. Atherosclerosis. 2014;235(1):21-30.
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  11. Drebber U, Andersen M, Kasper HU, Lohse P, Stolte M, Dienes HP. Severe chronic diarrhea and weight loss in cholesteryl ester storage disease: a case report. World J Gastroenterol. 2005;11(15):2364-6.
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Como citar este artigo




FDA aprova a 1ª medicação para NASH (MASH): Resmetirom (Rezdiffra)

Sobre Nash/Mash

A esteatohepatite não-alcoólica (NASH), renomeada como esteatose hepática metabólica (MASH) – (ver nota), caracteriza-se pela presença de 5% ou mais de esteatose hepática com dano hepatocelular e inflamação. Geralmente, está associada às doenças metabólicas como obesidade, diabetes, hipertensão arterial ou dislipidemia. Cerca de 6-8 milhões de pessoas nos EUA possuem NASH/MASH com fibrose moderada à avançada, com uma expectativa de aumento dos casos ao longo dos anos.

NOTA: A esteatoepatite não-alcoólica (NASH) foi renomeada em 2023 como esteatohepatite metabólica (MASH), entretanto, estudos que vinham em andamento com as definições e critérios histológicos de NASH, seguirão sendo publicados com tais terminologias, de forma que a mudança na literatura para a nova terminologia/critérios para MASH será gradativa.

À medida que NASH/MASH progride para fibrose clinicamente significativa, os riscos de desfechos clínicos adversos aumentam consideravelmente.

No início de fevereiro deste ano, foi publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM) o trial MAESTRO-NASH Fase 3 com Resmetirom na esteatohepatite não alcoólica com fibrose hepática com dados promissores.

Sobre Maestro-NASH fase 3

O trial MAESTRO-NASH Fase 3, randomizado, duplo cego, controlado por placebo, avaliou 1.759 pacientes adultos (>18 anos) com biópsia confirmando NASH/MASH e estágios de fibrose F1B, F2 ou F3.

Os pacientes foram randomizados na proporção 1:1:1 para receber Resmetirom uma vez ao dia na dose de 80mg ou 100mg ou placebo. Todos os grupos receberam, de forma conjunta, aconselhamento sobre dieta saudável e exercícios.

Os dois endpoints primários na semana 52 foram:

  1. Resolução do NASH/MASH (incluindo a redução do NAFLD activity score em >2 pontos) com não piora da fibrose;
  2. Melhora na fibrose em pelo menos 1 estágio, sem piora do NAFLD activity score.

O endpoint secundário foi a mudança percentual do LDL colesterol, em relação ao basal, na semana 24.

Um total de 26-27% dos pacientes que receberam 80mg de Resmetirom (n=322) e 24-36% dos que receberam 100mg (n=323) evidenciaram resolução do NASH, sem piora da fibrose, comparado a 9-13% do grupo placebo (n=321). Em adição, um total de 25% (grupo 80mg) e 24-28% (grupo 100mg) apresentaram melhora na fibrose hepática, sem piora do NASH, comparado a 13-15% do grupo placebo.

A melhora da fibrose e resolução do NASH/MASH foram consistentes, independente da idade, gênero, status do diabetes mellitus tipo 2 ou estágio da fibrose.

A mudança nos níveis de LDL colesterol do basal até a semana 24 foi de -13,6% no grupo 80mg, -16,3% no grupo 10mg e 0,1% no grupo placebo.

Diarreia e náuseas foram os efeitos colaterais mais frequentes relacionados à medicação.

Assista o vídeo publicado pelo NEJM sobre o trial MAESTRO-NASH e ação do Resmetirom: https://youtu.be/wwKhWt0pFh8?si=lakDxP8X38uaPFNm

Aprovação pelo FDA

O FDA (Food and Drug Administration) delineou uma abordagem visando aprovação condicional de um tratamento para NASH/MASH, através da obtenção de qualquer um dos dois desfechos histológicos (melhora no estágio de fibrose hepática ou resolução de NASH), com provável benefício clínico e, para aprovação total, baseado na redução de desfechos clínicos (morte por qualquer causa, transplante de fígado ou eventos de descompensação hepática).

Em 14 de março de 2024, o FDA aprovou o Resmetirom (Rezdiffra; Madrigal Pharmaceuticals) como primeiro tratamento para NASH/MASH com fibrose hepática moderada a avançada, não-cirróticos, a ser usado em combinação com dieta e atividade física.

Sobre Resmetirom (Rezdiffra)

Resmetirom é uma medicação oral, agonista seletivo do receptor do hormônio tireoidiano do tipo (THR-β).

O receptor THR-β é responsável pela regulação de vias metabólicas no fígado e seu funcionamento está frequentemente prejudicado no NASH/MASH, reduzindo a função mitocondrial e β-oxidação de ácidos graxos em associação com o aumento da fibrose.

O uso do Rezdiffra deve ser acompanhado do tratamento padrão comportamental para NASH/MASH, ou seja, em conjunto com o ajuste do padrão alimentar e atividade física regular.

A dosagem recomendada do Rezdiffra é baseada no peso corporal:

  • Peso <100kg, a dose preconizada é de 80mg oral, 1 vez ao dia;
  • Peso ≥100kg, a dose recomendada é 100mg oral 1 vez ao dia.

Os efeitos colaterais mais comuns incluem: diarreia, náusea, prurido, dor abdominal, vômitos, tontura e constipação.

Ainda será lançado comercialmente nos EUA, ainda sem previsão no Brasil, porém, a comunidade científica, incluindo a Associação Europeia para o Estudo do Fígado (EASL), vibra com a primeira aprovação de um medicamento para o NASH/MASH e reforça as esperanças de um melhor tratamento para os pacientes portadores da doença.

Para ler mais sobre a mudança de nomenclatura de esteatohepatite de NASH para MASH, acesse: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/masld-2023-descomplicando-as-novas-nomenclaturas-para-esteatose-hepatica/

Referências

  1. Harrison SA, Bedossa P, Guy CD, Schattenberg JM, Loomba R, Taub R, Labriola D, Moussa SE, Neff GW, Rinella ME, Anstee QM, Abdelmalek MF, Younossi Z, Baum SJ, Francque S, Charlton MR, Newsome PN, Lanthier N, Schiefke I, Mangia A, Pericàs JM, Patil R, Sanyal AJ, Noureddin M, Bansal MB, Alkhouri N, Castera L, Rudraraju M, Ratziu V; MAESTRO-NASH Investigators. A Phase 3, Randomized, Controlled Trial of Resmetirom in NASH with Liver Fibrosis. N Engl J Med. 2024 Feb 8;390(6):497-509. doi: 10.1056/NEJMoa2309000. PMID: 38324483.
  2. https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/fda-approves-first-treatment-patients-liver-scarring-due-fatty-liver-disease
  3. https://easl.eu/news/resmetirom_fda_approval/

Como citar este artigo

Oti KST, FDA aprova a 1ª medicação para Nash/Mash: Resmetirom (Rezdiffra) Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/fda-aprova-a-1a-medicacao-para-nash-mash-resmetirom-rezdiffra/




Como Diagnosticar Corretamente a Doença Celíaca?

A doença celíaca (DC) é definida como uma resposta imunomediada e permanente ao glúten, proteína presente no trigo, na cevada e no centeio. Trata-se de uma doença caracterizada por inflamação na mucosa do intestino delgado, com atrofia vilositária e hiperplasia de criptas, que ocorre pela exposição da mucosa ao glúten e melhora após a retirada desta proteína da dieta (saiba mais sobre a patogênese da doença celíaca nesse post: patogenese da doenca celiaca). Apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas e o diagnóstico é feito através de testes sorológicos e biópsias duodenais por endoscopia digestiva alta (EDA).

Quem deve ser testado?

  • O rastreamento populacional para indivíduos assintomáticos não é recomendado;
  • O rastreamento em indivíduos assintomáticos que tenham parente de primeiro grau confirmado deve ser considerado;
  • Pacientes com sintomas gastrointestinais sugestivos, quais sejam:

    • Alteração do hábito intestinal como diarreia crônica ou constipação;
    • Síndrome de má-absorção;
    • Perda de peso inexplicável;
    • Dor abdominal;
    • Distensão ou bloating;
    • Dispepsia refratária;
    • Síndrome do intestino irritável;
    • Intolerância a lactose refratária.

  • Pacientes com sintomas extra-intestinais sugestivos, quais sejam:

    • Anemia por deficiência de ferro, folato ou vitamina B12;
    • Alteração de enzimas hepáticas;
    • Dermatite herpetiforme;
    • Fadiga;
    • Cefaleia recorrente;
    • Perda fetal recorrente;
    • Filhos com baixo peso ao nascer;
    • Infertilidade;
    • Estomatite aftosa persistente;
    • Hipoplasia do esmalte dentário;
    • Doenças ósseas metabólicas e osteoporose precoce;
    • Neuropatia periférica idiopática;
    • Ataxia cerebelar não-hereditária.

Testes diagnósticos

Os testes diagnósticos devem ser realizados enquanto o paciente estiver ingerindo normalmente o glúten na dieta.

A abordagem diagnóstica é baseada no risco do paciente para doença celíaca:

  • Baixa probabilidade

    • Ausência de sinais e sintomas sugestivos de má-absorção, como diarreia crônica/ esteatorreia ou perda de peso;
    • Ausência de história familiar de DC;
    • Descendentes de chineses, japoneses ou da África subsaariana.

  • Alta probabilidade

    • Presença de sintomas altamente sugestivos de DC como diarreia crônica/esteatorreia e perda de peso;
    • Indivíduos que apresentem ambos os achados abaixo:

      • Fatores de risco que os coloquem como moderado a alto risco para DC: parente de primeiro ou segundo grau com DC, DM tipo 1, tireoidite autoimune, síndrome de Down e Turner, hemossiderose pulmonar (risco moderado);
      • Sintomas gastrointestinais ou extra-intestinais sugestivos de DC (descritos acima).

Como testar?

  • Indivíduos com baixa probabilidade: testes sorológicos. O anti-transglutaminase imunoglobulina A (anti-tTG IgA) e o anti-endomísio IgA tem sensibilidade semelhantes. Resultados negativos em qualquer destes testes em indivíduos com baixo risco para DC tem alto valor preditivo negativo e evita a necessidade de biópsias. Já pacientes com testes sorológicos positivos devem ser submetidos a EDA com biópsias duodenais.
  • Indivíduos com alta probabilidade: testes sorológicos e múltiplas biópsias duodenais devem ser realizadas. As biópsias duodenais neste grupo devem ser efetuadas independentemente do resultado dos testes sorológicos.

Sobre os testes sorológicos

  • A sorologia é um componente crucial para diagnóstico de DC;
  • Nenhum teste sorológico é 100% específico para doença celíaca;
  • Anti-tTG IgA é o anticorpo mais solicitado para o diagnóstico em adultos e deve ser realizado com IgA sérica para afastar deficiência de IgA;
  • Pacientes submetidos à EDA para investigação de quadros dispépticos e cujo duodeno foi biopsiado por achados de atrofia devem ser testados com anti-tTG IgA e IgA sérica;
  • Caso o paciente tenha alta probabilidade de DC, EDA com biópsias duodenais devem ser realizadas mesmo com sorologia negativa;
  • Em pacientes com deficiência de IgA, a sorologia com IgG deve ser realizada: comumente anti-gliadina deaminada ou anti-tTG.

Leia mais sobre os testes sorológicos para Doença Celíaca aqui: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/intestino/o-papel-dos-autoanticorpos-no-diagnostico-da-doenca-celiaca/

Sobre biópsias duodenais

  • São necessários 1 a 2 fragmentos do bulbo (posição 9 ou 12 horas) e pelo menos 4 fragmentos da segunda porção duodenal para o correto diagnóstico de DC;
  • A EDA também é importante para diagnóstico diferencial de outras síndromes de má-absorção ou enteropatias;
  • Duodenite linfocítica (> 25 linfócitos/100 células epiteliais) na ausência de atrofia vilositária não é específica para DC e outros diagnósticos devem ser considerados, como: infecção pelo H. Pylori, uso de anti-inflamatórios não hormonais ou outras medicações, supercrescimento bacteriano do intestino delgado, sensibilidade não celíaca ao glúten, outras doenças autoimunes;
  • A análise histopatológica, classificada de acordo com MARSH ou mais recentemente a classificação simplificada de Corazza, é o padrão ouro para o diagnóstico da doença.

Comparação entre as classificações de Marsh e Corazza

Marsh LIE
Marsh/Corazza
Criptas Vilosidades Corazza
Tipo 0 <40 Normal Normal
Tipo 1 >40/>25 Normal Normal Grau A
Tipo 2 >40/>25 Hiperplásica Normal Grau A
Tipo 3 a/b >40/>25 Hiperplásica Atrofia parcial ou subtotal Grau B1
Tipo 3 c >40/>25 Hiperplásica Atrofia total Grau B2
Tipo 4 <40

Normal

Atrofia total
LIE: linfócitos intraepiteliais (por 100 células epiteliais)
Adaptada de:
American College of Gastroenterology Guidelines Update 2023

Diagnóstico

O diagnóstico é feito quando há sorologia positiva com histopatológico das biópsias duodenais mostrando aumento dos linfócitos intraepiteliais com hiperplasia de criptas (Marsh 2) ou, mais comumente, com atrofia vilositária (Marsh 3). Se a sorologia for positiva e as biópsias duodenais classificadas como Marsh 0 ou 1, atentar para anticorpos falso-positivos (normalmente em baixa titulação) ou resultados falso-negativos nas biópsias, devendo-se prosseguir a investigação.

Diagnóstico sem biópsias

  • Em crianças, a combinação de altos níveis de anti-tTG (> 10x LSN) e anti-endomísio positivo (em uma segunda amostra) pode ser considerado para diagnóstico. Em adultos sintomáticos que não podem ou não querem ser submetidos à EDA, esse critério pode ser utilizado para o diagnóstico de DC provável;
  • Em pacientes com dermatite herpetiforme comprovada por biópsias, o diagnóstico de DC pode ser estabelecido somente pela sorologia.

Testes HLA DQ2/DQ8

  • Presente em quase todos os pacientes com DC, não é necessário para o diagnóstico, entretanto é útil para excluí-la pelo seu alto valor preditivo negativo (maior que 99%);
  • Em pacientes com sorologia e histologia divergentes:

    • Se HLA DQ2/DQ8 negativo, DC é descartada;
    • Se HLA DQ2/DQ8 positivo, sorologia positiva e histologia não-compatível: novas biópsias devem ser realizadas após dieta com alto teor de glúten (> 10 gramas/dia, equivalente a 4 fatias de pão/dia por 6 a 12 semanas). Após nova avaliação histológica, se Marsh 0 ou 1 com sorologia positiva, o paciente é considerado com portador de DC potencial;
    • Se HLA DQ2/DQ8 positivo, sorologia negativa, porém paciente com sinais e sintomas sugestivos de DC e histologia compatível: se afastados outros diagnósticos diferenciais e houver melhora clínica e histológica após dieta sem glúten, considerar DC soronegativa (é muito rara).

Referências

  1. Rubio-Tapia, Alberto MD1; Hill, Ivor D. MD2; Semrad, Carol MD3; Kelly, Ciarán P. MD4; Greer, Katarina B. MD, MS5; Limketkai, Berkeley N. MD, PhD, FACG6; Lebwohl, Benjamin MD, MS7. American College of Gastroenterology Guidelines Update: Diagnosis and Management of Celiac Disease. The American Journal of Gastroenterology 118(1):p 59-76, January 2023. | DOI: 10.14309/ajg.0000000000002075
  2. Husby, Steffen et al. AGA Clinical Practice Update on Diagnosis and Monitoring of Celiac Disease—Changing Utility of Serology and Histologic Measures: Expert Review. Gastroenterology, Volume 156, Issue 4, 885 – 889 | DOI: 10.1053/j.gastro.2018.12.010
  3. Ciarán P. Kelly. Diagnosis of Celiac disease in adults. In: J Thomas Lamont (Ed). Up to date. 2024

Como citar este artigo

Arraes L. Como Diagnosticar Corretamente a Doença Celíaca? Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/como-diagnosticar-corretamente-a-doenca-celiaca/




Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I

Os cistos pancreáticos são frequentemente achados de imagem em pacientes assintomáticos ou com sintomas inespecíficos. Está cada dia maior a procura aos consultórios de cirurgiões e gastroenterologistas para definir conduta.

Para nos guiar nesse assunto recorremos aos guidelines de grupos internacionais, que auxiliam no manejo dos cistos pancreáticos. O primeiro guideline de 2006 (estabelecido pelo grupo internacional em Sendai, no Japão) direcionava as atenções aos cistos mucinosos – cistoadenoma mucinoso e IPMNs – que classicamente exibem algum risco de malignização.

Da mesma forma, em 2012, na cidade de Fukuoka no Japão, estabeleceram-se novas atualizações para seguimento e abordagem dos cistos mucinosos. Os critérios de Fukuoka, que foram atualizados em 2017, são até hoje considerados como tendo um alto valor preditivo negativo (ou seja, os cistos que não preenchem os critérios de Fukuoka de estigmas de alto risco ou ¨sinais preocupantes¨ têm praticamente 100% de chance de não serem malignos).

Existem ainda os guidelines europeu e da ACG (publicados em 2018) que também se referem a outros tipos de cistos (como os cistoadenomas serosos), que exibem pequenas diferenças no seguimento em relação ao consenso de Fukuoka.

Em dezembro de 2023 foi publicado na Pancreatology um novo guideline sobre o manejo dos IPMNs, realizado em Kyoto. Algumas mudanças em relação a guidelines anteriores foram bem evidentes. Vamos aqui ressaltar os principais pontos desse novo consenso:

  1. Aspectos patológicos: em relação aos graus de displasia, as lesões podem ser classificadas como displasia de baixo grau, displasia de alto grau (carcinoma in situ) e carcinoma invasivo (as duas últimas se apresentam com indicação cirúrgica). Os subtipos morfológicos atualmente são apenas 3: gástrico, intestinal e pancreatobiliar (o subtipo oncocítico previamente descrito foi separado dos IPMNs, e atualmente é descrito como neoplasia papilar intraductal oncocítica).

  1. Aspectos moleculares: os marcadores moleculares conhecidos ainda não tem impacto prognóstico nos IPMNs, apenas para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas. Os IPMNs tem mutações no KRAS (60-70%) e mutações no GNAS (50-70%). As mutações no GNAS não são encontradas nos cistoadenomas mucinosos.

  1. Avaliação de riscos: os termos Estigmas de Alto Risco (High Risk Stigmata) e Sinais Preocupantes (Worrisome features) continuam a ser utilizados. O primeiro termo se refere a sinais preditores de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. São considerados:

    1. High Risk Stigmata: (i) icterícia obstrutiva em pacientes com lesão na porção cefálica do pâncreas; (ii) nódulo mural com realce > 5 mm ou componente sólido; (iii) ducto pancreático principal > 10 mm; (iv) citologia + ou suspeita para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo.
    2. Worrisome features: (i) pancreatite aguda; (ii) elevação do marcador ca19/9; (iii) diabetes de início recente ou piora abrupta de DM anterior; (iv) nódulo mural com realce < 5 mm; (v) cisto > 30 mm; (vi) parede do cisto espessada ou realçada; (vii) ducto pancreático principal entre 5-9 mm; (viii) mudança abrupta no calibre do ducto principal e atrofia do parênquima à montante; (ix) linfoadenopatia; (x) crescimento do cisto pancreático ≥ 2,5 mm/ano.

  1. Marcadores séricos: o Ca 19-9 (leia mais nesse artigo) ainda foi considerado como o único marcador sérico que pode ter relação com o aparecimento de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. Os marcadores moleculares (como KRAS e GNAS) em biópsia líquida ainda estão sendo estudados, sem orientação para serem utilizados de rotina, por enquanto.

  1. Marcadores intra-císticos: a análise bioquímica do fluido do cisto ainda é interessante na diferenciação de cistos mucinosos de não mucinosos. Os valores de CEA (>192 ng/ml) e de glicose (<50 ng/dL) tem alta especificidade para diagnóstico de cisto mucinoso. A dosagem da glicose foi incorporada somente nesse guideline como sendo marcador de alta acurácia para lesões mucinosas. Na análise molecular, a presença de mutações no KRAS e GNAS também têm alta especificidade para diagnóstico de IPMNs. Para avaliar lesões com displasia de alto grau ou já com carcinoma os marcadores genéticos ainda possuem baixa sensibilidade (mutações no SMAD4, TP53, CDKN2A e PIK3CA possuem sensibilidade de 9-39% apenas), embora tenham alta especificidade.

Nessa primeira parte do guideline de Kyoto, analisamos as mudanças na classificação histopatológica, uma definição mais clara dos estigmas de alto risco e dos sinais preocupantes, além de marcadores para diagnóstico dos IPMNs. Marcadores séricos e intracísticos que avaliam degeneração dos IPMNs ainda têm baixa sensibilidade, com pouca recomendação de uso.

Referências:

  1. Ohtsuka, T et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology, 2023. https://doi.org/10.1016/j.pan.2023.12.009
  2. Tanaka, M et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pâncreas. Pancreatology, 2017. http://dx.doi.org/10.1016/j.pan.2017.07.007
  3. Elta, GH et al. ACG Clinical Guideline: Diagnosis and Management of Pancreatic Cysts. Am J Gastroenterol 2018. doi: 10.1038/ajg.2018.14

Como citar este artigo

Marzinotto M. Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreas/guideline-de-kyoto-atualizacoes-na-abordagem-dos-ipmns-parte-i/




Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer?

“Doutor, o que é essa metaplasia que apareceu na minha endoscopia? Eu li no Google que ela vira câncer de estômago! O que eu faço agora?” – essa é uma preocupação que provavelmente você já ouviu no consultório médico. Mas e, então, você sabe o que responder e o que fazer?

O que é?

A inflamação crônica no estômago gera um processo regenerativo que pode estimular a transformação da mucosa gástrica em células mais parecidas com aquelas que revestem os intestinos, o que chamamos de metaplasia intestinal (MI).

A prevalência de MI é variável conforme a população estudada (relaciona-se, por exemplo, à prevalência de H. pylori), sendo estimada em 4,8% nos Estados Unidos, mas em até 25% em algumas populações asiáticas. Além disso, estudos demonstram uma maior prevalência em faixas de idade mais avançadas. Não há sintomas específicos associados com a metaplasia em si.

Mas se essa transformação que leva à MI é consequência de uma inflamação gástrica, quais seriam os fatores que podem predispor ou acelerar essa evolução?

  1. Helicobacter pylori: Sem dúvidas, é o principal fator de risco para lesões pré-cancerígenas gástricas. O H. pylori aumenta a chance de câncer gástrico em 2 a 3 vezes.
  2. Gastrite autoimune: Aumento do risco de tumores neuroendócrinos gástricos tipo I e de adenocarcinoma.
  3. Tabagismo
  4. Refluxo biliar
  5. Dieta: vegetais e frutas são geralmente fatores protetores, ao passo que dietas ricas em sal, processados, defumados e alimentos ricos em nitrosaminas aumentam o risco.

Como identificar?

Na endoscopia com luz branca, a metaplasia intestinal apresenta-se superficialmente elevada ou com áreas planas esbranquiçadas. Também pode aparecer como placas da mesma cor da mucosa adjacente ou até áreas ligeiramente deprimidas e avermelhadas. Se disponíveis, equipamentos de alta definição e cromoscopia são superiores a endoscópios de alta definição com luz convencional, pois podem direcionar as biópsias para áreas mais representativas e com maior risco de malignidade (Figura 1).

Figura 1:
Metaplasia intestinal (MI) em antro gástrico. À esquerda, exame sob luz branca e, à direita, exame com cromoscopia óptica (LCI), onde é mais fácil reconhecer a extensão da MI.

De forma análoga ao que temos para gastrite atrófica, também temos um sistema de classificação para estadiamento da metaplasia, o Operative Link on Gastritis Assessment based on Intestinal Metaplasia (OLGIM). Para tal, são necessárias biópsias do antro (+ incisura) e do corpo gástrico (na pequena e na grande curvatura de cada região), que devem ser identificadas em frascos separados (Figura 2). A endoscopia precisa ser de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia. No caso de lesões suspeitas visíveis, deve-se realizar biópsias adicionais.

Figura 2:
Sistema OLGIM para avaliação de metaplasia intestinal gástrica.

Qual o risco?

O adenocarcinoma gástrico tipo intestinal é o final da famosa cascata de Pelayo Correa: inflamação –> atrofia –> metaplasia –> displasia –> carcinoma. Logo, tanto a gastrite atrófica como a metaplasia intestinal são consideradas condições pré-cancerígenas. Outra inferência desta cascata é que, se existe metaplasia intestinal gástrica, significa que também há gastrite atrófica.

Um dos maiores estudos de seguimento populacional identificou que a incidência anual de câncer gástrico em pacientes com MI era de 0,25%, com uma incidência cumulativa em 10 anos de 2,4%. No Japão, onde a incidência de câncer gástrico é maior, um estudo demonstrou uma incidência cumulativa muito maior: 5,3 a 9,8% em 5 anos para MI.

Ter a metaplasia intestinal gástrica não deve ser encarada, portanto, como uma evolução obrigatória para o câncer, mas como uma oportunidade de vigilância para, em caso de evolução para displasia ou adenocarcinoma, ser possível o diagnóstico e tratamento precoces.

Quem são os pacientes com metaplasia intestinal que apresentam maior risco de evolução para neoplasia?

  • Extensão da metaplasia intestinal: OLGIM III e IV. É considerada limitada se restrita a uma região do estômago e extensa se acometer duas (antro e corpo).
  • Histórico familiar de câncer gástrico: Embora a maioria dos cânceres gástricos sejam esporádicos, algum tipo de histórico familiar ocorre em até 10% dos casos. Ter um familiar de primeiro grau com câncer gástrico aumenta o risco em 2 a 10 vezes. Acredita-se que esse risco familiar não se deve apenas a uma suscetibilidade genética herdada, mas também a fatores ambientais ou de estilo de vida compartilhados, bem como ao compartilhamento da mesma cepa citotóxica de H. pylori.
  • Presença de metaplasia intestinal incompleta: o risco de progressão para câncer é até 11x maior quando comparado com metaplasia intestinal completa. Histologicamente, a metaplasia intestinal completa é definida por mucosa do tipo intestino delgado com células absortivas maduras, células caliciformes e borda em escova. Já a metaplasia intestinal incompleta é semelhante ao epitélio do cólon com células colunares “intermediárias” em vários estágios de diferenciação.
  • Gastrite atrófica autoimune.
  • Infecção persistente pelo H. pylori, pois não foi possível a erradicação apesar das tentativas terapêuticas.

Como acompanhar?

Não existe um tratamento específico para metaplasia intestinal até o momento. Uma vez diagnosticada, o foco é controlar os fatores agressores (principalmente tratamento do H. pylori, mas também cessar tabagismo e melhorar dieta) e realizar vigilância endoscópica em casos selecionados que apresentem maior risco de evolução para câncer.

Um dos principais fluxogramas para guiar esse seguimento é o Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), que foi publicado em 2019 pela ESGE (Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal) e está resumido na Figura 3.

Figura 3: Vigilância de pacientes com metaplasia intestinal gástrica. Adaptado do Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), 2019.[1] Atentar que é recomendado que tenha sido realizada endoscopia de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia.

Referências

  1. Pimentel-Nunes P, Libânio D, Marcos-Pinto R, Areia M, Leja M, Esposito G, et al. Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach (MAPS II): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE), European Helicobacter and Microbiota Study Group (EHMSG), European Society of Pathology (ESP), and Sociedade Port. Endoscopy 2019;51:365–88. doi:10.1055/a-0859-1883.
  2. Jencks DS, Adam JD, Borum ML, Koh JM, Stephen S, Doman DB. Overview of Current Concepts in Gastric Intestinal Metaplasia and Gastric Cancer. Gastroenterol Hepatol (N Y) 2018;14:92–101. doi:10.1111/j.1365-2559.1987.tb01893.x.
  3. Sugano K, Moss SF, Kuipers EJ. Gastric Intestinal Metaplasia: Real Culprit or Innocent Bystander as a Precancerous Condition for Gastric Cancer? Gastroenterology 2023;165:1352-1366.e1. doi:10.1053/j.gastro.2023.08.028.
  4. Gupta S, Li D, El Serag HB, Davitkov P, Altayar O, Sultan S, et al. AGA Clinical Practice Guidelines on Management of Gastric Intestinal Metaplasia. Gastroenterology 2020;158:693–702. doi:10.1053/j.gastro.2019.12.003.
  5. White JR, Banks M. Identifying the pre-malignant stomach: From guidelines to practice. Transl Gastroenterol Hepatol 2022;7:1–13. doi:10.21037/tgh.2020.03.03.

Como citar este artigo

Lages RB. Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer? Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/metaplasia-intestinal-gastrica-qual-o-risco-e-o-que-fazer/




Ultrassonografia Multiparamétrica Hepática em Cirrose

Introdução

A avaliação multiparamétrica hepática por ultrassom (AMH-US) em pacientes cirróticos consiste na pesquisa minuciosa e periódica de achados ultrassonográficos que cuja detecção impactem diretamente na sobrevida do paciente. Tais achados podem e devem ser investigados ao longo do exame de maneira customizada, a depender da etiologia da cirrose e de suas principais complicações, o CHC e a Hipertensão Portal Clinicamente Significativa (HPCS). Via de regra, faz-se uma avaliação detalhada no modo B e avaliação vascular Doppler, ainda que também possa contemplar, a depender da etiologia da cirrose, a elastografía ARFI (Pointer ou 2D SWE), quantificação gordurosa e inflamatória hepática, bem como no uso do contraste de microbolhas.

O CHC é a complicação de maior impacto na sobrevida de pacientes com doença hepática crônica avançada (HCAc/Cirrose)1. Assim, a sua detecção precoce (Estadio BCLC 0 ou A) é muito importante já que são justamente esses pacientes os candidatos à tratamentos de intenção curativa 2,3.

Como resultado, todas as diretrizes internacionais apoiam a vigilância do CHC nestes pacientes com base no exame semestral de ultrassonografia hepática, associado ou não a dosagem sérica de alfafetoproteína (AFP) 3-5, com uma sensibilidade global variando de 58% a 89% e uma especificidade de 90% 6.

No entanto, estudos prospectivos e meta analises de populações controladas e incluídas em programa de rastreios periódicos de CHC descrevem uma sensibilidade inferior a 30% para a detecção de CHC inicial em certa populações de pacientes cirróticos. Em primeiro lugar, 20-30% dos cirróticos apresentam uma nodularidade e heterogeneidade parenquimatosa que pode dificultar a detecção de CHC precoce por ultrassonografia7. A sensibilidade do US também pode ser reduzida em obesos e/ou pacientes com doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica ou “Metabolic Dysfunction Associated Steatotic Liver Disease (MASLD)” devido à atenuação sonora posterior causada por esta condição8. Finalmente, as competências e conhecimentos técnicos do médico ultrassonografista também impactam diretamente na capacidade diagnóstica do método9,10.

Na tentativa de endereçar estas limitações e melhorar portanto a jornada do paciente no rastreio do CHC, o American College of Radiology (ACR) propôs uma nova diretriz para o rastreio de nódulos em pacientes cirróticos chamado Liver Imaging Reporting And Data System per US (US-LI-RADS®) 11.

US-LIRADS

US-LI-RADS® consiste na estruturação do exame de ultrassonografia de rastreio em pacientes cirróticos, propondo um desde um detalhamento técnico da realização do exame até um formato estruturado na comunicação dos resultados e eventuais limitações no relatório do exame. Se trata de:

  • Um documento dinâmico, a ser expandido e refinado à medida que o conhecimento se acumule e em resposta ao feedback dos usuários.
  • Desenvolvido para melhorar a comunicação, atendimento ao paciente, educação e pesquisa.
  • Apoiado e endossado pelo American College of Radiology (ACR)
  • Desenvolvido por um comitê multidisciplinar de radiologistas e hepatologistas com experiência em ultrassonografia hepatobiliar, com contribuição e aprovação do Comitê de Direção do LI-RADS.

Consiste na estruturação técnica do exame da comunicação entre o médico ultrassonografista e o médico solicitante através de um léxico de terminologia padronizada, atlas ilustrativo e diretrizes para a confecção do laudo.

O US-LI-RADS requer dois tipos de avaliação:

  • a primeira delas é de comunicar claramente ao médico através de um score de visualização se naquele momento do exame foi possível avaliar com segurança todo o fígado do paciente e/ou se o fígado tem uma condição factível de rastreio de lesões focais por ultrassografia (figura 1). São elas:

    • A. Limitações mínimas ou nenhuma (figura 2);
    • B. Limitações moderadas (figura 3)
    • C. Limitações acentuadas (Figura 4).

  • É recomendado nas categorias B e especialmente C a complementação do rastreio de CHC com método seccional contrastado (TC/RM) e é onde tem se discutido mais a indicação dos protocolos abreviados de Ressonância Magnética12..
  • A segunda avaliação trata justamente de categorizar os achados de lesões focais e propõe ainda uma conduta. Três categorias são possíveis:

    • US-1 Negativo (Sem lesão focal ou achado(s) definitivamente benigno(s), recomendando indicação de novo rastreio por US em 6 meses;
    • US-2 Sublimiar (Achado(s) < 10 mm de diâmetro e não definitivamente benignos), ), recomendando indicação de novo rastreio por US em 3 meses e
    • US-3 Positivo (Achado(s) ≥ 10 mm de diâmetro, não definitivamente benigno e /ou trombose venosa nova), por fim, recomendando indicação de estudo seccional com contraste multifásico (Figura 6).

Figura 1: Score de visualização US-Lirads.

 

Figura 5: Classificação das lesões identificadas, nos acessos acústicos disponíveis.

 

Rastreio vascular e diagnóstico de HPCS

Devemos considerar na avaliação mutiparamétrica hepática por US em pacientes cirróticos o estadiamento vascular. Em primeiro lugar, checar o calibre, permeabilidade e padrão de fluxo das veias hepáticas, sistema portal e artéria hepática é fundamental para que se compreenda o status quo da cirrose e da hipertensão portal, bem como de seu nível de gravidade, além de buscar outras complicações da cirrose como, por exemplo, as tromboses.

Achados indiretos para o diagnóstico de Hipertensão Portal Clinicamente Significativa (HPCS) são de suma importância já que se trata de um importante ponte de corte para o reconhecimento de pacientes que apresentam maior risco de complicações que afetam a sobrevida global, além de ser condição que influencia na tomada de decisão terapêutica em pacientes BCLC 0, A e B 13,14. Os achados ultrassonográficos principais do diagnóstico indireto de HPCS na avaliação multiparamétrica de pacientes cirróticos são: A presença de recanalização da veia paraumbilical e/ ou a presença de circulação colateral abdominal, sendo as varizes no território das veias gástrica esquerda, gástricas curtas e região periesplênica as mais comuns, e, por fim, a detecção de ascite e/ou anastomoses porto sistêmicas14(Figura 7).

 

Elastografia 2D SWE

Não só para o diagnóstico não invasivo de hepatopatia crônica avançada a elastografía ARFI tem sido discutida e já amplamente aplicada. Tem sido crescente a discussão do papel da elastografía Point Share Wave e 2DSWE também no acesso à rigidez hepática e esplênica para predição de varizes esofágicas de alto risco15, ainda que estejamos pendentes de validação de pontos de corte e maior consolidação de seu nível de evidência. Por fim, também tem sido discutida a acurácia diagnóstica da elastografía hepática por ultrassom na predição de complicações como CHC e HPCS no paciente cirrótico com hepatite C após tratamento dom DAAs16.

Quantificação gordurosa hepática e acesso a quantificação de inflamação

Nos últimos anos a indústria de tecnologia em ultrassom tem se dedicado ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de softwares também dirigidos a quantificação gordurosa para diagnóstico e seguimento da doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica e doença hepática gordurosa alcóolica, além da quantificação também da inflamação hepática nas mais diversas etiologias das doenças hepáticas difusas. Estas novas ferramentas já estão disponíveis e autorizadas para aplicação na prática clínica e parecem bastante promissoras. No entanto, estão pendentes de maior consolidação de seu nível de evidência 17,18.

Referências

  1. Moon AM, Singal AG, Tapper EB. Contemporary epidemiology of chronic liver disease and cirrhosis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2020;18:2650–66
  2. Llovet JM, Kelley RK, Villanueva A, Singal AG, Pikarsky E, Roayaie S, et al. Hepatocellular carcinoma. Nat Rev Dis Primers. 2021;7:6.
  3. European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines: Management of hepatocellular carcinoma. J Hepatol. 2018;69:182–236.
  4. Heimbach JK, Kulik LM, Finn RS, Sirlin CB, Abecassis MM, Roberts LR, et al. AASLD guidelines for the treatment of hepatocellular carcinoma. Hepatology. 2018;67:358–80.
  5. Omata M, Cheng AL, Kokudo N, Kudo M, Lee JM, Jia J, et al. Asia-Pacific clinical practice guidelines on the management of hepatocellular carcinoma: a 2017 update. Hepatol Int. 2017;11: 317–70.
  6. Kim CK, Lim JH, Lee WJ. Detection of hepatocellular carcinomas and dysplastic nodules in cirrhotic liver: accuracy of ultrasonography in transplant patients. J Ultrasound Med. 2001;20:99–104
  7. Simmons O, Fetzer DT, Yokoo T, Marrero JA, Yopp A, Kono Y, et al. Predictors of adequate ultrasound quality for hepatocellular carcinoma surveillance in patients with cirrhosis. Aliment Pharmacol Ther. 2017;45:169–77
  8. Wong LL, Reyes RJ, Kwee SA, Hernandez BY, Kalathil SC, Tsai NC. Pitfalls in surveillance for hepatocellular carcinoma: How successful is it in the real world? Clin Mol Hepatol. 2017;23: 239–48
  9. Sato T, Tateishi R, Yoshida H, Ohki T, Masuzaki R, Imamura J, et al. Ultrasound surveillance for early detection of hepatocellular carcinoma among patients with chronic hepatitis C. Hepatol Int. 2009;3:544–50.
  10. Schoenberger H, Chong N, Fetzer DT, Rich NE, Yokoo T, Khatri G, et al. Dynamic changes in ultrasound quality for hepatocellular carcinoma screening in patients with cirrhosis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2022;20:1561–69.e4.
  11. Shuchi K. Rodgers , David T. Fetzer , Helena Gabriel , James H. Seow , Hailey H. Choi , et al. RadioGraphics 2019 39:3,690-708.
  12. An JY, Peña MA, Cunha GM, Booker MT, Taouli B, Yokoo T, Sirlin CB, Fowler KJ. Abbreviated MRI for Hepatocellular Carcinoma Screening and Surveillance. Radiographics. 2020 Nov-Dec;40(7):1916-1931.
  13. Reig M, Forner A, Rimola J, Ferrer-Fàbrega J, Burrel M, Garcia-Criado Á, Kelley RK, Galle PR, Mazzaferro V, Salem R, Sangro B, Singal AG, Vogel A, Fuster J, Ayuso C, Bruix J. BCLC strategy for prognosis prediction and treatment recommendation: The 2022 update. J Hepatol. 2022 Mar;76(3):681-693.
  14. de Franchis R, Bosch J, Garcia-Tsao G, Reiberger T, Ripoll C; Baveno VII Faculty. Baveno VII – Renewing consensus in portal hypertension. J Hepatol. 2022 Apr;76(4):959-974
  15. Liu Y, Tan HY, Zhang XG, Zhen YH, Gao F, Lu XF. Prediction of high-risk esophageal varices in patients with chronic liver disease with point and 2D shear wave elastography: a systematic review and meta-analysis. Eur Radiol. 2022 Jul;32(7):4616-4627.
  16. Nicoletti A, Ainora ME, Cintoni M, Garcovich M, Funaro B, Pecere S, De Siena M, Santopaolo F, Ponziani FR, Riccardi L, Grieco A, Pompili M, Gasbarrini A, Zocco MA. Dynamics of liver stiffness predicts complications in patients with HCV related cirrhosis treated with direct-acting antivirals. Dig Liver Dis. 2023 Nov;55(11):1472-1479.
  17. Park J, Lee JM, Lee G, Jeon SK, Joo I. Quantitative Evaluation of Hepatic Steatosis Using Advanced Imaging Techniques: Focusing on New Quantitative Ultrasound Techniques. Korean J Radiol. 2022
  18. Schulz M, Wilde AB, Demir M, Müller T, Tacke F, Wree A. Shear wave elastography and shear wave dispersion imaging in primary biliary cholangitis-a pilot study. Quant Imaging Med Surg. 2022 Feb;12(2):1235-1242.

Como citar este artigo

Branco CP. “Ultrassonografia Multiparamétrica hepática em cirrose” Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em: Ultrassonografia Multiparamétrica hepática em cirrose




Pancreatite Aguda por Hipertrigliceridemia

A relação dos triglicérides com o dano pancreático tem sido estudada ao longo dos anos. Sabe-se hoje que a Hipertrigliceridemia (HTG) é a 3a maior causa de pancreatite aguda (menos prevalente apenas que as causas biliares e alcoólica). Entretanto, a presença de HTG é frequente em todas as etiologias das pancreatites agudas.

Como saber se os triglicérides (TG) são a causa ou apenas um epifenômeno presente em uma pancreatite aguda de outra etiologia?

Conceito

A hipertrigliceridemia é definida como aumento de níveis séricos de triglicérides acima de 150 mg/dL. Esse aumento pode ser categorizado em:

  • HTG leve: 150-199 mg/dL
  • HTG moderada: 200-999 mg/dL
  • HTG severa: 1000-1999 mg/dL
  • HTG muito severa: > 2000 mg/dL

As HTG são classificadas em:

  • Primárias – pacientes portadores de alterações genéticas que não permitem o correto metabolismo dos triglicérides. Essas causas foram catalogadas por Friderickson em tipos I a V. Os tipos mais associados com pancreatite aguda são: tipos I, IV e V.
  • Secundárias: alguns pacientes elevam os TG devido a: obesidade, diabetes mal controlado, dieta hipercalórica e hiperlipídica, gestação e uso de álcool. Além disso, algumas medicações são sabidamente causa de HTG e devem ser pesquisadas nesse contexto (ex: retinóides, inibidores de proteases, anti-psicóticos, inibidores de calcineurina, diuréticos e estrógenos)

O risco de pancreatite aguda (PA) ocorrer em indivíduos com HTG é considerado quando os TG se elevam > 1000 mg/dL (em torno de 5%) e aumenta muito quando TG > 2000 mg/dL (risco passa a ser 10-20%). Ao analisar a população com hipertrigliceridemia severa, cerca de 20% relataram histórico prévio de pancreatite aguda, valor muito acima da prevalência encontrada na população.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da pancreatite por HTG é complexa, e até hoje não completamente compreendida. Sabe-se que os TG na microcirculação induzem a liberação da lipase pancreática, que clivam as moléculas em ácidos graxos livres (que são lipotóxicos para as células pancreáticas). Esses, por sua vez, levam a lesão do endotélio cursando com extravasamento capilar. Os TG também ativam substâncias como o tramboxano, fosfolipase A e prostaglandinas que levam a vasoconstrição e isquemia pancreática.

Os triglicérides e os ácidos graxos livres também tendem a se agrupar sob a forma de micelas, o que aumenta a viscosidade plasmática e leva a isquemia da glândula.

Somado a isso temos também o desbalanço no cálcio intracelular, o estresse oxidativo em organelas, que também precipitam a ativação precoce da tripsina, ainda dentro do pâncreas.

Diagnóstico

O diagnóstico de PA por HTG é dado da mesma forma que outras etiologias, com os critérios de Atlanta, quando presentes 2 dos 3 critérios (dor em abdome superior, elevação de enzimas pancreáticas > 3 o limite do método e exame de imagem compatível) associados a elevação de TG > 1.000 mg/dL.

Aqui é importante lembrar que as PAs originadas de outras causas (biliares, alcoólicas e medicamentosas) podem elevar os TG na fase aguda, porém raramente em níveis > 1000 mg/dL. Essa elevação é vista como um epifenômeno.

Quanto à gravidade, em estudos realizados, observou-se que a PA por HTG tende a ser mais grave comparada a outras etiologias. Em metanálises e revisões sistemáticas observou-se que esses pacientes evoluíram com maiores escores de gravidade, maiores taxas de recorrências, mais admissão em UTIs, e maior mortalidade.

Tratamento

O tratamento inicial é baseado em suporte, como em qualquer pancreatite: hidratação, analgesia e suporte nutricional (especialmente para as PAs graves).

Dentre as abordagens específicas, destacam-se:

  • Bomba de heparina: a heparina pode ser usada em monoterapia ou associada a outras modalidades (como à bomba de insulina). O anticoagulante aumenta inicialmente a degradação dos TG em ácidos graxos livres. Esse efeito, porém, é temporário e o consumo hepático da lipoproteína lipase plasmática causa um aumento rebote dos TG após a suspensão da infusão. Além disso, a infusão de heparina aumenta os eventos hemorrágicos, principalmente nas PAs graves com complicações locais.
  • Bomba de insulina: a infusão contínua de insulina também aumenta a ativação da lipoproteína lipase e diminui a liberação de ácidos graxos livres pelos adipócitos e promove o metabolismo desses ácidos graxos por células sensíveis ao hormônio. Ela pode ser usada em conjunto com a terapia da heparina, porém os estudos que avaliaram os resultados são pequenos. Essa modalidade tem o potencial de reduzir os níveis de TG em 50-75% em 3 dias.
  • Plasmaférese: essa terapia remove mecanicamente o excesso de quilomícrons da corrente sanguínea. Da mesma forma, parece reduzir os níveis de citocinas pró-inflamatórias, que são determinantes para a gravidade na fase inicial da PA. No entanto, os resultados quanto a desfechos relevantes (disfunção de múltiplos órgãos, mortalidade) não favoreceram a plasmaférese em relação a terapia de suporte. Além disso, esses pacientes tiveram maiores taxas de admissão em UTI (visto que é um procedimento realizado em unidade de terapia intensiva), necessitam sempre passagem de cateter central e podem apresentar reação infusional ao plasma. É uma terapia segura para ser realizada em gestantes.
  • Hemofiltração: essa é outra terapia controversa, que tende a remover os lipídios e as citocinas do plasma. Embora remova TG de forma rápida e efetiva, não houve diferença nos desfechos clínicos relevantes, além de ter um custo elevado.

Seguimento

Os pacientes que já tiveram PA por HTG necessitam seguimento após a alta para reduzir os riscos de recorrência. O uso de agentes hipolipemiantes (como os fibratos) é recomendado assim que o paciente já estiver apto a retomar a dieta via oral, ainda no hospital. O objetivo no tratamento ambulatorial é manter os níveis de TG < 500 mg/dL.

Os pacientes com HTG primárias devem ser seguidos por especialistas na área de lípides.

Em resumo, a HTG é causa relevante de PA, especialmente nos pacientes com as hipertrigliceridemias primárias. A dosagem de triglicérides deve ser feita nas primeiras horas, pois os níveis tendem a cair significativamente com o jejum. A abordagem terapêutica é semelhante a de outras pancreatites, e pode-se associar terapias específicas para a redução de TG a curto prazo. Os pacientes devem ser sempre encaminhados para seguimento pós alta, para reduzir o risco de novo evento.

Referências

  1. Yang, AL & McNabb-Blatar, J. Hypertriglyceridemia and acute pancreatitis. Pancreatology 20 (2020) 795-800
  2. Qiu, M et al. Comprehensive review on the pathogenesis of hypertriglyceridaemia associated acute pancreatitis. Annals of Medicine 2023, VOL. 55, No. 2, 2265939
  3. de Pretis, N et al. Hypertriglyceridemic pancreatitis: Epidemiology, pathophysiology and clinical management. United European Gastroenterology Journal 2018, Vol. 6(5) 649–655
  4. Bálint, ER et al. Assessment of the course of acute pancreatitis in the light of aetiology: a systematic review and meta‑analysis. Sci Rep 2020 Oct 21;10(1):17936.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Aguda por Hipertrigliceridemia Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: gastropedia.com.br/gastroenterologia/pancreas/pancreatite-aguda-por-hipertrigliceridemia/




Quando suspeitar de Hepatite autoimune?

A Hepatite autoimune é uma doença de etiologia desconhecida, descrita por Jon Waldenstrom em 1950, em que ocorre destruição progressiva do parênquima hepático e que pode acarretar cirrose com elevada morbimortalidade na ausência de tratamento. A Hepatite autoimune acomete principalmente mulheres jovens, mas pode ser diagnosticada em ambos os sexos, em qualquer faixa etária (1,2). A doença caracteriza-se por hipergamaglobulinemia, reatividade de autoanticorpos circulantes, hepatite de interface ao exame histológico, suscetibilidade genética relacionada a antígenos leucocitários humanos (HLA) específicos e, ainda, pela resposta favorável ao uso de corticoide e imunossupressores (3,4).

O mecanismo patogênico da Hepatite autoimune é multifatorial, com participação de agentes desencadeantes (infecções, drogas, toxinas), predisposição genética e menor tolerância à ativação imunológica e expansão celular efetora (linfócitos T citotóxicos CD4/CD8) (5).



Figura 1 –Mecanismo de lesão hepática na hepatite autoimune
Fonte:
Falcão, Lydia Teófilo de Moraes. Estudo randomizado de cloroquina versus azatioprina, em associação com prednisona, no tratamento da hepatite autoimune [tese]. São Paulo, Faculdade de Medicina; 2018

A lesão hepática inicia-se com apresentação de autoantígenos pelas células apresentadoras de antígenos (APCs), com estímulo à diferenciação de células T CD4. As Interleucinas IL-6 e IL-1β estimulam a diferenciação na resposta Th17, com secreção de citocinas pró-inflamatórias IL-17 e de IL-6, a qual estimula ainda mais a diferenciação na resposta Th17. A exposição à IL-12 estimula a diferenciação na resposta Th1, com secreção de Interferon-γ e indução de diferenciação de monócitos. A exposição à IL-4 estimula a diferenciação na resposta Th2, que cursa com secreção de IL-13, IL-4 e IL-10, estimulando a maturação de células B em plasmócitos e consequente produção de autoanticorpos.

Quando suspeitar de Hepatite Autoimune?

A hepatite autoimune muitas vezes é subdiagnosticada. Para que haja suspeição, precisamos compreender as formas de apresentação da doença (6-7).

  • Assintomática: 15-20% dos casos, apenas com elevação de enzimas hepáticas. Ou seja, mesmo na ausência de sintomas, na presença de elevação de enzimas hepáticas, especialmente aminotransferases, deve haver suspeita de HAI e serem solicitados exames para investigação etiológica. (confira mais sobre elevação de enzimas hepáticas neste post)

  • Hepatite aguda: ocorre em 30% dos casos, sendo caracterizada por sintomas inespecíficos como astenia, anorexia, artralgia, dor abdominal, prurido, icterícia, colúria e acolia fecal. Menos frequentemente, a HAI é diagnosticada no contexto de insuficiência hepática aguda, com surgimento de encefalopatia, ascite, hemorragia digestiva, com indicação de transplante hepático em pacientes previamente assintomáticos.

  • Insidiosa: caracteriza-se por fadiga progressiva, icterícia flutuante, anorexia, amenorreia e perda ponderal. Os sintomas inespecíficos retardam o diagnóstico e a doença evolui para a forma crônica.

  • Crônica: caracterizada pelo surgimento de alterações clínico-laboratoriais e histológicas características de hepatopatia avançada, com presença ou não de hipertensão portal.

Dados de uma coorte do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), composta por 268 portadores de HAI, evidenciou hepatite aguda como forma de apresentação mais prevalente (56%), hepatopatia crônica avançada em 25% e diagnóstico na forma assintomática em 10% dos casos (8). Há, ainda, formas atípicas de apresentação, com acometimento de ductos biliares e ausência de reatividade de autoanticorpos circulantes.

Diagnóstico da Hepatite Autoimune

Os critérios para diagnóstico e resposta ao tratamento da hepatite autoimune foram definidos em 1993 e revisados em 1999 pelo Grupo Internacional de Hepatite Autoimune (Figura 2). Apesar dos critérios requererem a exclusão de outras etiologias de hepatopatias crônicas com aspectos clínico-laboratoriais semelhantes, muitas características da HAI podem estar presentes em outras doenças hepáticas, como a colangite biliar primária, colangite esclerosante primária, hepatopatia induzida por drogas, hepatites virais e esteato-hepatite alcoólica ou associada ao metabolismo, tornando muitas vezes o diagnóstico desafiador (9).

 

Parâmetros Pontuação
Sexo Feminino +2
FA/AST ou ALT (X acima do VN)  
< 1,5 +2
1,5-3,0 0
>3,0 -2
Gamaglobulina/IgG (número de vezes acima do VN)  
>2,0x +3
1,5-2,0x +2
1,0-1,5x +1
<1,0x 0
Autoanticorpos (FAN/AML/LKM1)  
>1:80 +3
1:80 +2
1:40 +1
< 1:40 0
Outros marcadores (Anti-SLA/LP, anti-actina, anti-LC1, p-ANCA) +2
Antimitocôdria+ -4
Marcadores virais
Anti-VHA IgM, AgHBs, anti-HBc IgM +
-3
Anti-VHC+ e RNA do VHC + -3
Anti-VHA IgM, AgHBs, anti-HBc IgM ou anti-VHC negativos +3
Uso recente de drogas hepatotóxicas positiva/negativa -4/+1
Consumo alcoólico  
< 25g/dia +2
>60g/dia -2
Outra doença autoimune no paciente ou em familiar de primeiro grau +2
Histologia:  
Hepatite de Interface +3
Rosetas +1
Plasmócitos +1
Nenhuma das alterações acima -5
Alterações biliares (de CBP e CEP) -3
Alteração sugestiva de outra etiologia -3
HLA DR3 ou DR4
DR7 ou DR13 (varaições regionais)
+1
Resposta Terapêutica  
Completa +2
Recidiva durante ou após suspensão do tratamento após resposta completa Inicial +3
Figura 2 –
Critérios Diagnósticos Modificados da HAI pelo Grupo Internacional de Hepatite autoimune. Adaptado
(10). Interpretação: Antes do tratamento: > 15: diagnóstico definitivo,≤ 15 –
10: provável, Após tratamento: > 17: diagnóstico definitivo,≤ 17 -12: provável

 

A suspeição da hepatite autoimune deve ocorrer em todas as formas de apresentação da doença, desde quadros assintomáticos, com elevação de aminotransferases em exames de rotina (Figura 3), até as formas sintomáticas, com presença ou não de hepatopatia crônica avançada. A importância da suspeição e do diagnóstico precoce deve-se ao fato de que o tratamento clínico pode induzir remissão clínico-laboratorial da doença, prevenir fibrogênese hepática e a evolução para hepatopatia crônica avançada.

Figura 3 – Suspeição de hepatite autoimune em pacientes com elevação de aminotransferases (ALT/AST)

Leia também: Pancreatite Autoimune

Referências

  1. Manns MP, Czaja AJ, Gorham JD, Krawitt EL, Mieli-Vergani G, Vergani D, et al. Diagnosis and management of autoimmune hepatitis. Hepatology. 2010;51(6):2193-213.
  2. Czaja AJ. Diagnosis and Management of Autoimmune Hepatitis: Current Status and Future Directions. Gut Liver. 2016;10(2):177-203.
  3. Lohse AW, Mieli-Vergani G. Autoimmune hepatitis. J Hepatol. European Association for the Study of the Liver. 2011;55(1):171-82.
  4. Zachou K, Muratori P, Koukoulis GK, Granito A, Gatselis N, Fabbri A, et al. Review article: autoimmune hepatitis — current management and challenges. Aliment Pharmacol Ther. 2013;38(8):887-913.
  5. Liberal R, Mieli-Vergani G. VD. Autoimmune hepatitis: From mechanisms to therapy. Rev Clin Esp. 2016;216(7):372-83.
  6. Manns MP, Vogel A. Autoimmune hepatitis, from mechanisms to therapy. Hepatology. SEGO; 2006;43(2 SUPPL. 1).
  7. Bittencourt PL, Cançado ELR, Couto CA, Levy C, Porta G, Silva AEB, et al. Brazilian society of hepatology recommendations for the diagnosis and management of autoimmune diseases of the liver. Arq Gastroenterol. 2015;52:15-46.
  8. Terrabuio DBR. 20 anos de hepatite auto-imune no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo [Dissertação]. USP; 2006.
  9. European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines: Autoimmune Hepatitis. J Hepatol. 2015;63:971-1004.
  10. Alvarez F, Berg PA, Bianchi FB, Bianchi L, Burroughs AK, Cançado EL, et al. International Autoimmune Hepatitis Group Report: review of criteria for diagnosis of autoimmune hepatitis. J Hepatol 1999;31(5): 929-38.

Como citar este artigo

Falcão LTM. “Quando suspeitar de Hepatite autoimune?” Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em: https://gastropedia.com.br/gastroenterologia/figado/quando-suspeitar-de-hepatite-autoimune/