Investigação de Hepatite Medicamentosa (Drug-Induced Liver Injury – DILI): principais conceitos e linha de raciocínio

Aspectos Gerais

A hepatite medicamentosa (Drug-induced liver injury, DILI) é um dos quadros mais desafiadores na Hepatologia devido a ampla disponibilidade de medicações, suplementos e ervas com potencial de hepatoxicidade heterogêneo, variando desde leve elevação de enzimas hepáticas até hepatite aguda pronunciada e insuficiência hepática fulminante (IHF).

Tradicionalmente, DILI pode ser classificada como intrínseca (ou direta) versus idiossincrásica. A primeira é tipicamente dose-relacionada e ocorre na maioria dos pacientes expostos a uma droga, ocorrendo dentro de um curto espaço de tempo (horas a dias). Já DILI idiossincrásica usualmente não é dose-dependente, ocorre em uma menor proporção de indivíduos expostos (imprevisível) e apresenta uma latência variável entre dias a semanas. 

Um pré-requisito comum para DILI intrínseca e idiossincrásica é o metabolismo de drogas lipofílicas no fígado, gerando metabólitos reativos que levam à ligação covalente, estresse oxidativo mitocondrial e do retículo endoplasmático. Tais consequências podem resultar (a) diretamente em necrose ou apoptose [intrínseca] ou (b) em resposta imune adaptativa [idiossincrásica] em indivíduos geneticamente susceptíveis. As principais drogas relacionadas com DILI estão na Tabela 1.

Tabela 1. Drogas associadas com DILI intrínseca e idiossincrásica

Padrões de DILI

Existem 3 padrões de DILI avaliados pela elevação de enzimas hepáticas:

  • Hepatocelular:  se ALT isolada ≥ 5x limite superior da normalidade (LSN)  ou  Fator R ≥ 5
  • Colestático: se FA isolada ≥ 2x LSN  ou  Fator R ≤ 2
  • Misto: Fator R > 2  a  < 5

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Recomendação

DILI deve ser classificada como hepatocelular, colestática ou mista de acordo com o padrão de elevação de enzimas hepáticas da primeira dosagem laboratorial em relação ao evento clínico. Grau B (EASL, 2019).

Chás, Ervas e Fitoterápicos

A hepatotoxicidade por chás, ervas, fitoterápicos e suplementos está relacionada a diferentes fatores que coexistem: falta de adequada identificação da planta, seleção da parte errada da planta medicinal, armazenamento inadequado modificando o produto nativo, adulteração durante o processamento e rotulagem incorreta do produto. 

Outro desafio é a falta de clareza na real composição de preparações à base de plantas, em especial, de multicompostos. Ressalta-se ainda que um produto fitoterápico pode ser contaminado por compostos tóxicos que levam à hepatotoxicidade, como contaminação por metais pesados, pesticidas, herbicidas ou até mesmo microoganismos. 

Destacam-se alguns fitoterápicos que possuem nível de evidência de hepatotoxicidade:

  • Plantas que contém alcaloides pirrolizidínicos (espécies Heliotropium, Senecia, Crotalaria, Symphytum e Gynura)
  • Germander (“cavalinha”)
  • Kava-kava (Piper methysticum)
  • Chá verde (Camellia sinensis)
  • Sena (Cassia angustifolia)
  • Sacaca (Croton cajucara benth)
  • Chaparral (Larrea tridentata)
  • Poejo (Mentha pulegium)
  • Cáscara sagrada (Rhamnus purshiana)
  • Erva de São Cristóvão (Cimicifuga racemosa)
  • Noni (Morinda citrifolia), entre outras

Dentre os suplementos alimentares, destacam-se:

  • Contém ácido úsnico (LipoKinetix, UCP-1, OxyElite)
  • Hydroxycut
  • Ácido linenoléico
  • Plethoryl (vitamina A e hormônios tireoidianos)
  • Esteróides anabolizantes androgênicos

Recomendação

Suplementos alimentares e fitoterápicos podem ser considerados como potenciais agentes causadores de lesão hepática. Grau C (EASL, 2019).

Causalidade – Escores

Alguns escores podem ser utilizados na avaliação de causalidade para DILI, de forma que os critérios de cronologia (início e suspensão da droga), curso da reação, fatores de risco, exclusão de outras causas, manifestações extra-hepáticas, reexposição, entre outros aspectos, são pontuados e classificados em exclusão ou diagnóstico possível, provável ou definitivo para DILI:

  • Council for International Organizations of Medical Sciences Scale/Roussel-Uclaf-Causality-Assessment-Method (CIOMS/RUCAM);
  • Clinical Diagnostic Scale/Maria and Victorino Scale (CDS/M&V scale);
  • Digestive Disease Week-Japan (DDW-J);
  • DILIN Expert Opinion.

Deve-se ter em mente, entretanto, que os escores não substituem os julgamento clínico, sendo, na realidade, uma tradução, em pontuação quantitativa, da suspeita clínica de DILI.

Avaliação Laboratorial para Exclusão de Causas Alternativas

O diagnóstico de DILI baseia-se na exclusão de causas alternativas de agressão hepática. O padrão de lesão hepática pode auxiliar na investigação inicial para descartar as principais causas de hepatite e colestase (Figura 1). 

Em adição, idade e comorbidades, hábitos individuais dos pacientes e características regionais de doenças infecciosas que podem afetar o fígado podem guiar na avaliação (Tabela 2).

A exclusão de doença de Wilson com dosagem de ceruloplasmina deve ser realizada, em especial, em pacientes com menos de 40 anos.

Tabela 2. Diagnóstico de exclusão na investigação de DILI

Recomendação

A ultrassonografia de abdome deve ser realizada em todos os pacientes com suspeita de DILI. Exame de imagem adicional poderá ser indicado de acordo com o contexto clínico-laboratorial. Grau B (EASL, 2019).

Recomendação

A biópsia hepática pode ser considerada em pacientes selecionados suspeitos para DILI, de forma que a histologia hepática possa fornecer informações que embasem o diagnóstico de DILI ou uma alternativa (Grau D) ou quando os exames levantarem a possibilidade de HAI (Grau C); EASL, 2019.

Conclusão

Em resumo, o principal passo no manejo dos casos de DILI é a suspensão de todas as drogas não-essenciais, incluindo formulações, suplementos, ervas e chás. Desta forma, a maioria dos pacientes cursará com recuperação espontânea clínica e/ou laboratorial, sem a necessidade de medidas adicionais.

Pacientes com evidência clínica ou laboratorial de IHF, como encefalopatia hepática ou coagulopatia, devem ser hospitalizados. 

No geral, terapia medicamentosa fica reservada para situações específicas, como n-acetilcisteína na intoxicação por paracetamol ou DILI idiossincrásica com IHF ou corticóides, se houver a possibilidade de hepatite autoimune ou na presença de componentes de hipersensibilidade.

A reexposição à droga (“rechallenge”) é a dado mais definitivo para o diagnóstico de DILI (ALT>3xLSN), mas deve ser avaliada caso a caso, conforme a gravidade do episódio de DILI e necessidade da terapia medicamentosa (exemplo: agentes quimioterápicos ou tuberculostáticos), sob supervisão especializada e rigorosa.

Referências

  1. European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu, Clinical Practice Guideline Panel: Chair:, Panel members, et al. EASL clinical practice guidelines: drug-induced liver injury. J Hepatol 2019;70:1222– 61.
  2. Brennan PN, Cartlidge P, Manship T, Dillon JF. Guideline review: EASL clinical practice guidelines: drug-induced liver injury (DILI). Frontline Gastroenterol. 2021 Jul 29;13(4):332-336. doi: 10.1136/flgastro-2021-101886. PMID: 35722609; PMCID: PMC9186030. 
  3. Chalasani NP, Maddur H, Russo MW, Wong RJ, Reddy KR; Practice Parameters Committee of the American College of Gastroenterology. ACG Clinical Guideline: Diagnosis and Management of Idiosyncratic Drug-Induced Liver Injury. Am J Gastroenterol. 2021 May 1;116(5):878-898. doi: 10.14309/ajg.0000000000001259. PMID: 33929376.
  4. García-Cortés M, Stephens C, Lucena MI, Fernández-Castañer A, Andrade RJ. Causality assessment methods in drug induced liver injury: strengths and weaknesses. J Hepatol. 2011 Sep;55(3):683-691. doi: 10.1016/j.jhep.2011.02.007. Epub 2011 Feb 22. PMID: 21349301.
  5. Bessone F, García-Cortés M, Medina-Caliz I, Hernandez N, Parana R, Mendizabal M, Schinoni MI, Ridruejo E, Nunes V, Peralta M, Santos G, Anders M, Chiodi D, Tagle M, Montes P, Carrera E, Arrese M, Lizarzabal MI, Alvarez-Alvarez I, Caballano-Infantes E, Niu H, Pinazo J, Cabello MR, Lucena MI, Andrade RJ. Herbal and Dietary Supplements-Induced Liver Injury in Latin America: Experience From the LATINDILI Network. Clin Gastroenterol Hepatol. 2022 Mar;20(3):e548-e563. doi: 10.1016/j.cgh.2021.01.011. Epub 2021 Jan 9. PMID: 33434654.

Como citar este artigo

Oti, KST. Investigação de Drug-Induced Liver Injury (DILI): principais conceitos e linha de raciocínio. Gastropedia 2023, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/investigacao-de-hepatite-medicamentosa




Quando indicar o contraste hepatoespecífico na avaliação de lesões focais hepáticas?

Rotineiramente, na ressonância magnética (RM) de abdome, utiliza-se o contraste extracelular inespecífico (gadolínio), o qual se distribui conforme a distribuição dos vasos e capilares sanguíneos e determina, assim, uma padrão dinâmico de impregnação da lesão focal hepática nas fases arterial, portal (venosa) e equilíbrio.

Em casos selecionados, pode-se indicar os contrastes intracelulares específicos, também denominados de hepatoespecíficos e que podem ser de duas principais classes: (1) óxido de ferro superparamagnérico e (2) hepatobiliares, sendo este último captado especificamente pelas células hepáticas e com excreção renal (50%) e biliar (50%). No Brasil, há a aprovação do contraste hepatobiliar, conhecido como ácido gadoxético (Gd-EOB-DTPA, PrimovistÒ).

Desta forma, além de fornecer os dados habituais do estudo dinâmico, há a etapa final de avaliação hepatobiliar, após cerca de 10 a 20 minutos da injeção endovenosa, na qual há a entrada do contraste nos hepatócitos através dos transportadores de membrana (OATP1, B1/B3) e saída através de proteínas dependentes de ATP multifármaco-resistentes (MRP2, MRP3, MRP4), sendo o transportador MRP2 o encarregado em excretar o contraste no canalículo biliar.

Quais as indicações do contraste hepatoespecífico?

Sabendo-se que o ácido gadoxético é captado pelos hepatócitos e excretado em cerca de 50% pela via biliar, espera-se que um tecido hepático normofuncionante seja impregnado pelo contraste na fase hepatobiliar. Desta forma, a não captação do ácido gadoxético na fase hepatobiliar infere que não há hepatócitos ou canalículos biliares viáveis na lesão avaliada.

Podemos enumerar 3 principais indicações no uso do ácido gadoxético na avaliação de lesões focais hepáticas:

1. Diferenciação entre hiperplasia nodular focal (HNF) e adenoma

Adenoma e HNF são terceiro e segundo tumores hepáticos benignos mais frequentes, respectivamente.

O adenoma é caracterizado por cordões de hepatócitos e ausência de ductos biliares ou tratos portais, logo, na fase hepatobiliar, não apresenta captação na fase hepatobiliar.

Já a HNF caracteriza-se por um aglomerado de hepatócitos hiperplásicos e pequenos canalículos biliares imaturos que não se comunicam com os maiores, o que pode gerar um acúmulo (retenção) de contraste hepatoespecífico na fase hepatobiliar em relação ao parênquima hepático adjacente. Pode-se ainda encontrar uma cicatriz fibrosa central que direciona o padrão da lesão para HNF.

Fonte: arquivo pessoal, em colaboração com Dra Ângela Caiado

Figura 1. Nódulo hipervascularizado no segmento VII hepático medindo 1,2 cm, com padrão de retenção do contraste hepatoespecífico (tardia, 20 minutos), compatível com hiperplasia nodular focal.
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2. Avaliação de nódulos hepáticos em pacientes cirróticos

  • Nódulos regenerativos e displásicos x neoplásicos (carcinoma hepatocelular, CHC)
  • Identificação de pequenos CHCs (<2cm) e melhor avaliação de lesões focais com comportamento atípico em exame contrastado prévio, com realce inespecífico.

O CHC é o tumor primário do fígado mais comum. No paciente cirrótico, um nódulo igual ou maior que 2,0cm de diâmetro, com padrão típico hipervascular na fase arterial (wash-in) e com clareamento nas fases tardias (wash-out) é diagnosticado como CHC.

Em lesões menores que 2 cm, os achados típicos não costumam ser vistos com frequência, em especial nos CHCs iniciais bem diferenciados. Nesses casos, o estudo com contraste hepatoespecífico pode contribuir com achados adicionais, sendo desafiador a distinção entre nódulo displásico de alto grau e CHC bem diferenciado.

Fonte: arquivo pessoal, em colaboração com Dra Ângela Caiado.

Figura 2. Nódulo na face anterior do segmento II/III, medindo 1,2 cm, com realce na fase arterial, clareamento precoce e sem retenção na fase hepatoespecífica.

3. Avaliação de metástases hepáticas

As lesões metastáticas não possuem hepatócitos ou ductos biliares funcionantes, logo, não há a captação de contraste na fase hepatobiliar. Além disso, a captação do contraste hepatoespecífico pelos hepatócitos do parênquima normal aumenta a diferença de contrastação com as lesões metastáticas (hipointensas), elevando a sensibilidade da detecção das mesmas.

Fonte: arquivo pessoal, em colaboração com Dra Ângela Caiado.

Figura 3. Metástases hepáticas em paciente com neoplasia de cólon. Há sinais de hepatectomia direito com aumento compensatório do lobo esquerdo. Nas lesões metastáticas, nota-se realce arterial periférico com lavagem e ausência de retenção na fase hepatoespecífica.

Em resumo, na Tabela 1, pode-se identificar os padrões típicos das lesões hepáticas focais nas fases contrastadas.

Tabela 1. Características das lesões hepáticas focais nas fases dinâmicas e hepatobiliar

CHC: carcinoma hepatocelular.

Pontos de reflexão sobre o contraste hepatoespecífico

Além do maior custo, é descrito na literatura a maior ocorrência de artefatos respiratórios após a injeção do contraste hepatoespecífico na fase arterial em alguns pacientes, podendo estar relacionado à dificuldade de se sustentar a apnéia e/ou dispneia subjetiva.

Conclusão

O contraste hepatoespecífico aumenta a acurácia diagnóstica na detecção e caracterização de lesões focais hepáticas, em especial nas mencionadas na Tabela 1, e devem ser avaliadas de acordo com o quadro clínico dos pacientes.
Nódulos com padrão atípico nos exames contrastados devem ser avaliados caso a caso, podendo ser indicados a biópsia hepática para adequada elucidação ou exames de imagem periódicos para seguimento.

Referências

  1. Palmucci S. Focal liver lesions detection and characterization: The advantages of gadoxetic acid-enhanced liver MRI. World J Hepatol. 2014 Jul 27;6(7):477-85. doi: 10.4254/wjh.v6.i7.477. PMID: 25067999; PMCID: PMC4110539.
  2. European Association for the Study of the Liver (EASL). EASL Clinical Practice Guidelines on the management of benign liver tumours. J Hepatol. 2016 Aug;65(2):386-98. doi: 10.1016/j.jhep.2016.04.001. Epub 2016 Apr 13. PMID: 27085809.
  3. Hyperintense Liver Masses at Hepatobiliary Phase Gadoxetic Acid–enhanced MRI: Imaging Appearances and Clinical Importance. Nobuhiro Fujita, Akihiro Nishie, Yoshiki Asayama, Kousei Ishigami, Yasuhiro Ushijima, Daisuke Kakihara, Tomohiro Nakayama, Koichiro Morita, Keisuke Ishimatsu, and Hiroshi Honda. RadioGraphics 2020 40:1, 72-94.
  4. Moosavi, B., Shenoy-Bhangle, A.S., Tsai, L.L. et al. MRI characterization of focal liver lesions in non-cirrhotic patients: assessment of added value of gadoxetic acid-enhanced hepatobiliary phase imaging. Insights Imaging 11, 101 (2020). https://doi.org/10.1186/s13244-020-00894-3.
  5. Roberts LR, Sirlin CB, Zaiem F, Almasri J, Prokop LJ, Heimbach JK, Murad MH, Mohammed K. Imaging for the diagnosis of hepatocellular carcinoma: A systematic review and meta-analysis. Hepatology. 2018 Jan;67(1):401-421. doi: 10.1002/hep.29487. Epub 2017 Nov 29. PMID: 28859233.
  6. Koh, DM., Ba-Ssalamah, A., Brancatelli, G. et al. Consensus report from the 9th International Forum for Liver Magnetic Resonance Imaging: applications of gadoxetic acid-enhanced imaging. Eur Radiol 31, 5615–5628 (2021). https://doi.org/10.1007/s00330-020-07637-4.
  7. Glessgen CG, Breit HC, Block TK, Merkle EM, Heye T, Boll DT. Respiratory anomalies associated with gadoxetate disodium and gadoterate meglumine: compressed sensing MRI revealing physiologic phenomena during the entire injection cycle. Eur Radiol. 2022 Jan;32(1):346-354. doi: 10.1007/s00330-021-08114-2. Epub 2021 Jul 29. PMID: 34324024; PMCID: PMC8660712.

Como citar este artigo

Oti, KST. Quando indicar o contraste hepatoespecífico na avaliação de lesões focais hepáticas? Gastropedia 2023, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/quando-indicar-o-contraste-hepatoespecifico-na-avaliacao-de-lesoes-focais-hepaticas




Nódulo hepático detectado pela ultrassonografia: passo a passo de quando e como investigar

Ao nos depararmos com uma ultrassonografia (USG) descrevendo uma lesão focal hepática, devemos organizar o raciocínio de quando e como investigar a lesão descrita: trata-se de lesão focal cística, com paredes regulares, conteúdo anecoico e sem sinais de complexidade (septos, calcificações, margens irregulares)?

Se sim e o exame feito por radiologista experiente, não é necessária investigação adicional. Entretanto, se houver lesão focal cística complexa ou lesão focal sólida, estas possuem indicação de investigação com exame de imagem contrastado (tomografia computadorizada ou ressonância magnética de abdome superior).

Figura 1. Ultrassonografia de abdome evidenciando nódulo sólido, hiperecogênico, medindo aproximadamente 1,0 cm, circunscrito, localizado no lobo direito, segmento hepático VII. Fonte: arquivo pessoal.

É fundamental pedir o exame corretamente, isto é, descrever no pedido do exame que é direcionado à investigação de lesão focal hepática. Isso será fundamental para se alinhar o protocolo correto no dia do exame, em especial, de tomografia de abdome com contraste endovenoso (iodo) com protocolo trifásico – além da fase pré-contraste, haverá as fases arterial, portal e equilíbrio.

O exame de ressonância de abdome com contraste endovenoso (gadolíneo) realiza as fases contrastadas (arterial, portal, equilíbrio) habitualmente, além de possuir sequências adicionais que auxiliam na avaliação da lesão focal (sequências T1 pré-contraste; in-phase e out-of-phase para avaliação de gordura; T2 e difusão).

Recomenda-se fortemente que se mencione no pedido do exame os dados clínicos mais significativos do paciente, como idade, sintomas, ausência/presença de doença hepática crônica e/ou cirrose hepática, uso de anabolizantes ou anticoncepcionais e doença oncológica prévia ou atual.

Nota 1: A presença de cirrose hepática é o dado clínico mais relevante e o fator de risco mais significativo para o desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (CHC), de forma que a cirrose está presente em aproximadamente 90% dos pacientes com CHC. Logo, um nódulo hepático em fígado cirrótico, a principal suspeita será de CHC; já um nódulo hepático em fígado não-cirrótico, haverá maior chance de lesão focal benigna.

Dentre as lesões focais hepáticas benignas, destacam-se: hemangioma, hiperplasia nodular focal e adenoma. Tais lesões apresentam diferentes padrões de ecogenicidade a USG, podendo ser hiperecogênicos, isoecogênicos ou hipoecogênicos e suas particularidades serão temas de próximos posts

Um diagnóstico diferencial a ser lembrado é a possibilidade de área poupada de esteatose, quando o fígado como um todo se torna hiperecogênico pela deposição de gordura e uma área específica é poupada desta, gerando a falsa impressão de lesão focal nodular hipoecogênica. Há ainda casos de esteatose focal, quando o depósito de gordura ocorre de forma localizada, simulando um nódulo hiperecogênico.

Nota 2: Excetuando-se os cistos hepáticos simples, as lesões focais hepáticas sólidas merecem investigação dinâmica com exame contrastado endovenoso para a avaliação do seu comportamento nas diferentes fases de enchimento e esvaziamento vascular, mesmo que sejam sugestivos de lesão benigna à ultrassonografia de abdome.

            Na maioria das vezes, a identificação de lesão focal hepática benigna será incidental, em exames de rotina, sem repercussão clínica (sintomas ou complicações) e sem alterações laboratoriais. Após o exame contrastado inicial (TC/RM), casos selecionados serão candidatos à ressonância de abdome com contraste hepatoespecífico (ácido gadoxético – Primovist), biópsia do nódulo hepático ou até encaminhados para abordagem cirúrgica.

Desta forma, os médicos de diferentes especialidades devem ter o discernimento de investigar de forma adequada o achado de nódulo hepático em exame de rotina ou optar por encaminhar o paciente para avaliação especializada com gastro-hepatologista.

Saiba mais sobre avaliação das lesões hepáticas nesse outro artigo

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Oti, KST. Nódulo hepático detectado pela ultrassonografia: passo a passo de quando e como investigar. Gastropedia 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/nodulo-hepatico-detectado-pela-ultrassonografia-passo-a-passo-de-quando-e-como-investigar/

Referências

  1. Haring MPD, Cuperus FJC, Duiker EW, de Haas RJ, de Meijer VE. Scoping review of clinical practice guidelines on the management of benign liver tumours. BMJ Open Gastroenterol. 2021 Aug;8(1):e000592. doi: 10.1136/bmjgast-2020-000592. PMID: 34362758; PMCID: PMC8351490.
  2. Strauss E, Ferreira AdeSP, França AVC, et al. Diagnosis and treatment of benign liver nodules: Brazilian Society of hepatology (SBH) recommendations. Arq Gastroenterol 2015;52:47–54.
  3. Marrero JA, Ahn J, Rajender Reddy K, Reddy RK, et al. Acg clinical guideline: the diagnosis and management of focal liver lesions. Am J Gastroenterol 2014;109:1328–47.
  4. European Association for the Study of the Liver (EASL). EASL clinical practice guidelines on the management of benign liver tumours. J Hepatol 2016;65:386–98.



O que devemos saber sobre a elastografia hepática transitória e sua aplicação na Doença hepática gordurosa não-alcoólica?

A esteatohepatite não-alcoólica (EHNA) corresponde ao grupo de pacientes com doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) que cursam, além da esteatose predominantemente macrogoticular, com balonização hepatocitária, inflamação lobular, fibrose hepática, cirrose e risco de evolução para carcinoma hepatocelular (CHC). Saiba mais nesse outro artigo.

Cerca de 30-40% dos adultos possuem DHGNA e destes, 3-12% evoluem com EHNA, com prevalência em progressão nos últimos anos, em especial, pela forte associação com fatores metabólicos como a obesidade. Desta forma, a EHNA tornou-se nos últimos anos a principal causa de transplante hepático no mundo

Na avaliação dos pacientes com DHGNA, é fundamental avaliar quais testes não-invasivos (TNI) podem contribuir na investigação. Apesar da ultrassonografia de abdome ser o exame de primeira linha na avaliação inicial dos pacientes com DHGNA, é operador-dependente e apresenta baixa sensibilidade para esteatose hepática leve: tipicamente, a esteatose precisa acometer mais de 30% dos hepatócitos para ser detectável por este método. 

Dentre os TNI disponíveis em nosso meio, a elastografia hepática transitória (FibroScan®, Echosens, Paris, França; TE) é a mais comumente utilizada pelos hepatologistas. A tecnologia foi aprovada em 2013 pela Food and Drug Administration nos Estados Unidos e rapidamente incorporada na avaliação dos pacientes com hepatopatia por diferentes etiologias, incluindo, os portadores de DHGNA.

Vantagens do método

Através da seleção apropriada de uma das sondas (Small, Medium e XL) pela idade, tipo físico e distância pele-fígado, o exame é realizado de forma não invasiva e rápida, permitindo a quantificação da gordura hepática pelo CAP (controlled attenuation parameter) e da fibrose hepática pela avaliação da rigidez hepática (liver stiffness measurement; LSM).

O ponto de referência é guiado pelos marcadores anatômicos (encontro da linha axilar média com linha transversa e paralela aos rebordos costais, ao nível do apêndice xifóide). 

LSM

Através de vibrações de leve amplitude e baixa frequência (50Hz) emitidas pela sonda no ponto de referência, uma onda de cisalhamento se propaga pelo tecido hepático sob uma determinada velocidade (m/s): quanto mais rígido é o tecido, mais veloz será a propagação da onda. A LSM varia de 1,5 a 75 kilopascal (kPa) e avalia a rigidez hepática em volume 100 vezes maior do que uma biópsia hepática.

Os valores de LSM variam de acordo com a etiologia da hepatopatia, sendo reportados na DHGNA, os valores de AUROC para F1, F2, F3 e F4 de 0,82, 0,85, 0,94 e 0,96, respectivamente. Para fibrose avançada (F3-F4), os cut-offs variam de 8-12kPa, com sensibilidade de 84-100% e especificidade de 83-97%.

Nota 1: Alguns estudos transversais e comparação head-to-head indicaram melhor acurácia da elastografia por RM na avaliação da fibrose hepática em relação a TE, na identificação de fibrose (F1-F4) com especificidade (F4, 94,5% vs 75,9%), entretanto, os fatores custo, disponibilidade e tempo de exame (duração) são limitantes da elastoRM na prática clínica.

CAP

É reportada AUROC de 81-84% ≥E1 (esteatose em pelo menos 5-10% dos hepatócitos); 85-88% para ≥E2 (33%) e 86-91% para E3 (66%), com sensibilidade para ≥E1, ≥E2 e E3 de 60-75%, 69-84% e 77-96%, respectivamente. Os cut-offs para CAP é de 248 dB/m para E1, 268 dB/m para E2 e 280 dB/m para E3.

Nota 2: Apesar da ressonância de abdome com fração de gordura por densidade de prótons (RM-PDFF) ter melhor sensibilidade e especificidade para a quantificação da fração de gordura hepática em relação ao CAP, os fatores custo e disponibilidade são os maiores limitantes na prática clínica.

Critérios de confiabilidade

De acordo com as recomendações do fabricante, durante a TE, devem ser obtidas 10 medidas válidas, com taxa de sucesso >60% e um intervalo interquartil (IQR) ≤30%.
Alguns estudos demonstraram que IQR > 40 dB/m do CAP com sonda M associou-se com menor confiabilidade para o diagnóstico de esteatose hepática, porém estudos adicionais são necessários para validação como critério.

Limitações e considerações do método

Um dos maiores desafios da TE é a menor taxa de sucesso em pacientes obesos. Enquanto a sonda M é indicada para adultos com peso normal (IMC <25kg/m2) e a sonda S para crianças e adolescentes, a sonda XL está indicada para pacientes obesos ou naqueles com distância pele-fígado maior que 3,5cm, haja vista que esta sonda permite maior profundidade na avaliação da rigidez hepática (35-75 vs 25-65mm) e do CAP.

Estudos prospectivos indicam que a sonda XL estima maior valor de rigidez hepática do que a sonda M quando aplicada no mesmo paciente, entretanto, o IMC elevado tende a superestimar a LSM, assim, os efeitos da obesidade e da sonda XL tendem a se anular.

Outros fatores que prejudicam a LSM são: congestão hepática, obstrução biliar, amiloidose, lesões focais hepáticas, aumento de transaminases (1-5xLSN) e ascite.

É fundamental orientar o jejum de 3-4 horas antes do exame, pois o aumento do fluxo portal pode aumentar a LSM em 1-5kPa (pico em 20-40 minutos, com duração de até 180 minutos, em média).

Aplicação clínica

Além da avaliação de rigidez hepática e quantificação da esteatose, a TE possui um importante papel em predizer complicações da doença hepática crônica avançada compensada (DHCAc), como varizes de esôfago (VE), CHC e morte relacionada ao fígado.

De acordo com Baveno VII, no geral:

  1. LSM ≤15kPa e plaquetas ≥ 150.000 exclui hipertensão portal clinicamente significativa (HPCS, sensibilidade e valor preditivo negativo >90%) em paciente com DHCAc;
  2. LSM <20kPa e plaquetas > 150.000 permite evitar a realização de EDA rastreamento de VE;
  3. Em pacientes de etiologia viral, alcoólica e EHNA não obesos (IMC <30kgm/2), LSM ≥ 25 é suficiente para excluir HPCS (sensibilidade e valor preditivo positivo >90%).
  4. Nos pacientes com DHCAc por EHNA, o modelo ANTECIPATE pode ser usado para predizer o risco de HPCS, mas validação adicional é necessária.

Recomendações de Guidelines

A TE é um TNI validada e recomendado pelos guidelines da AASLD e EASL e, conforme a sua disponibilidade, deve ser incorporado como ferramenta na avaliação dos pacientes com DHGNA na prática clínica.

Referências

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Como citar este arquivo

Oti KST., O que devemos saber sobre a elastografia hepática transitória e sua aplicação na Doença hepática gordurosa não-alcoólica?. Gastropedia, 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/o-que-devemos-saber-sobre-a-elastografia-hepatica-transitoria-e-sua-aplicacao-na-doenca-hepatica-gordurosa-nao-alcoolica/




MAFLD versus NAFLD: implicações da mudança de nomenclatura

O termo doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA; non-alcoholic fatty liver disease, NAFLD) surgiu em 1980 para caracterizar uma doença semelhante à doença hepática gordurosa alcoólica, mas em pacientes sem consumo etílico significativo. Este conceito engloba dois espectros da doença: esteatose simples e esteato-hepatite não alcoólica (EHNA; non-alcoholic steatohepatitis, NASH), sendo o último sob o risco de progressão de fibrose hepática e evolução para cirrose e carcinoma hepatocelular.

A DHGNA é a causa mais comum de doença hepática crônica afetando um quarto da população global adulta, entretanto o seu conceito não contempla quadros metabólicos e recebe críticas por ter critérios de exclusão para a sua definição: é fundamental a exclusão de etilismo significativo (>20g/ dia em mulheres e >30g/dia em homens), outras hepatopatias crônicas (virais, autoimunes, entre outras) e uso de medicações esteatogênicas.

Em 2020, um painel de especialistas propôs uma nova definição e critérios para a DHGNA como doença hepática gordurosa metabólica (DHGM; metabolic-associated fatty liver disease, MAFLD), com o intuito de simplificar o diagnóstico através de critérios positivos e de forma independente do consumo de álcool ou de outras doenças hepáticas concomitantes.

Assim, a definição MAFLD baseia-se na evidência de esteatose hepática em adição a um ou mais de três critérios: sobrepeso/obesidade, diabetes mellitus tipo 2 ou evidência de desequilíbrio metabólico (Figura1).

Figura 1. Fluxograma com critérios para doença hepática gordurosa metabólica (DHGM). Adaptado de Eslam M, Newsome PN, Anstee QM et al.

Apesar do posicionamento favorável de diferentes sociedades de Hepatologia em adotar a nova terminologia e critérios, um amplo debate cresce no meio científico sobre o prognóstico e aplicabilidade da definição MAFLD.

Seria DHGM (MAFLD) uma melhor definição para a doença?

A adoção do novo termo envolve não somente a mudança de nome, mas também da definição da doença. Como resultado, alguns pacientes que eram previamente classificados como “lean NAFLD” (índice de massa corporal normal) podem não preencher os critérios para DHGM.

Por outro lado, paciente com esteatose hepática que previamente não eram classificados como DHGNA devido o consumo etílico significativo, outras doenças hepáticas ou causas secundárias de esteatose hepática podem ser diagnosticados como DHGM.

Tais modificações tem implicações na interpretação da doença, dos pacientes e nas pesquisas científicas.

O que os estudos mostram?

Os estudos mostram que a grande maioria dos pacientes preenche os critérios para ambos DHGNA e DHGM, entretanto, cerca de 10-25% podem preencher somente os critérios de uma das condições.

Comparando-se a acurácia da definição DHGM versus DHGNA, os estudos indicam uma maior sensibilidade para DHGM na identificação de pacientes com fibrose hepática significativa (93,9% vs 73%; valor preditivo negativo 95,5% vs 86,2%) e com maior risco cardiovascular (HR 1,43 vs 1,09).

O estudo de Kim e colaboradores demonstrou que dentre 2.702 pacientes adultos com esteatose hepática identificada por ultrassonografia abdominal, 2.044 (75,6%) preencheram os critérios de ambas as definições DHGNA e DHGM, 212 (7,8%) somente para MAFLD, 394 (14,6%) somente para DHGNA e 52 (1,9%) não preencheram critérios para nenhuma das definições. Observou-se ainda uma maior taxa de mortalidade nos pacientes com DHGM (HRa 1,66; 95% IC 1,19-2,32) e maior mortalidade por câncer (HRa 1,95; 95% IC 1,05-3,62).

DHGM (MAFLD): visão crítica

Apesar de os estudos indicarem que o grupo DHGM apresenta maior risco de complicações, esta definição falha na identificação dos potenciais pacientes com risco de desfechos desfavoráveis, em especial, nos pacientes com DHGNA, sem DHGM (Figura2).

Figura 2. Definições da doença como doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) e doença hepática gordurosa metabólica (DHGM) e implicações prognósticas. Adaptado de Wong VW e Lazarus JV.

Apesar de alguns autores criticarem a aplicabilidade dos critérios para DHGM, em especial, em estudos retrospectivos, pela indisponibilidade de PCR ou HOMA-IR de todos os pacientes, recentes estudos encorajam a difundir o conceito e critérios da DHGM na avaliação dos pacientes com doença hepática gordurosa, em especial, nos pacientes que preenchem critérios para DHGM, mas não preenchem para DHGNA. Existe, assim, um grande esforço científico na proposta de modificação da terminologia e critérios da doença, no sentido de se alcançar uma melhor definição que otimize a identificação dos pacientes com esteatose hepática entre especialistas e não-especialistas na prática clínica e permita uma uniformização de terminologia nos estudos.

Saiba mais

Como citar esse artigo

Oti, KST. MAFLD versus NAFLD: implicações da mudança de nomenclatura. Gastropedia 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/mafld-versus-nafld-implicacoes-da-mudanca-de-nomenclatura/

Referências

  1. Eslam M, Newsome PN, Sarin SK, Anstee QM, Targher G, Romero-Gomez M, Zelber-Sagi S, Wai-Sun Wong V, Dufour JF, Schattenberg JM, Kawaguchi T, Arrese M, Valenti L, Shiha G, Tiribelli C, Yki-Järvinen H, Fan JG, Grønbæk H, Yilmaz Y, Cortez-Pinto H, Oliveira CP, Bedossa P, Adams LA, Zheng MH, Fouad Y, Chan WK, Mendez-Sanchez N, Ahn SH, Castera L, Bugianesi E, Ratziu V, George J. A new definition for metabolic dysfunction-associated fatty liver disease: An international expert consensus statement. J Hepatol. 2020 Jul;73(1):202-209. doi: 10.1016/j.jhep.2020.03.039. Epub 2020 Apr 8. PMID: 32278004.
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