Repensando a obesidade: Como a nova definição pode transformar o cuidado clínico
A publicação da Lancet Commission on the Definition and Diagnosis of Clinical Obesity (1) representa um marco importante na forma como a obesidade é compreendida, diagnosticada e tratada globalmente. Ao propor novas definições baseadas em evidências e centradas na fisiopatologia da doença, a Comissão desafia o uso exclusivo do índice de massa corporal (IMC) como critério diagnóstico e promove uma abordagem mais individualizada e clinicamente significativa.
De uma medida simples a uma doença complexa
Tradicionalmente, a obesidade tem sido diagnosticada com base em pontos de corte de IMC, sem levar em consideração o contexto clínico do indivíduo. Essa abordagem simplificada tem contribuído para diagnósticos errôneos — tanto falsos positivos quanto falsos negativos — e para o estigma generalizado que associa obesidade a uma falha de caráter ou estilo de vida.
A Lancet Commission redefine a obesidade como uma doença crônica e multifatorial caracterizada por excesso de gordura corporal que compromete a saúde, independentemente do IMC.
Ela propõe a distinção entre dois espectros:
- Obesidade pré-clínica: há acúmulo de gordura de forma, mas sem sinais e sintomas ou comprometimento das atividades diárias no presente;
- Obesidade clínica: já há sinais e sintomas (18 descritos em adultos e 13 em adolescentes) diretamente relacionadas com o excesso de tecido adiposo e/ou comprometimento das atividades diárias no presente.
Essa mudança de paradigma tem implicações profundas para a prática clínica.
Diagnóstico mais precoce e individualizado
Ao desvincular a definição de obesidade do IMC como único marcador, abre-se espaço para diagnósticos mais precoces e precisos. Ferramentas como avaliação da composição corporal, distribuição de gordura (por exemplo, gordura visceral), marcadores metabólicos (como resistência à insulina, dislipidemia), testes funcionais e histórico familiar ganham papel central na avaliação.
Isso é particularmente importante para pacientes que não atingem os limiares tradicionais de IMC, mas que apresentam complicações clínicas relacionadas à adiposidade. A nova definição permite identificar e intervir nesses casos antes que a progressão da doença leve a danos irreversíveis.
Abordagem multidisciplinar e longitudinal
Com a adoção das novas definições, reforça-se a necessidade de uma abordagem multidisciplinar, com participação ativa de endocrinologistas, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, cirurgiões bariátricos, entre outros. A obesidade deixa de ser tratada como um evento isolado e passa a ser compreendida como uma condição crônica que exige acompanhamento longitudinal, semelhante ao que já é feito com outras doenças como diabetes ou hipertensão.
Isso implica mudanças na organização dos sistemas de saúde, com desenvolvimento de linhas de cuidado específicas, centros especializados, capacitação de profissionais e incorporação de novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas.
Redução do estigma e aumento do engajamento
Retirando o diagnóstico feito por “corpulência” e reforçando o caráter biológico e multifatorial da obesidade, a Lancet Commission contribui para reduzir o estigma enfrentado por pessoas que vivem com essa condição. Essa mudança de narrativa é fundamental para aumentar o engajamento dos pacientes, muitos dos quais não reconhecem que têm uma doença ou se sentem culpados e, por isso, evitam procurar ajuda.
A definição mais clara e fundamentada pode favorecer o diálogo entre profissionais e pacientes, permitindo conversas mais empáticas e produtivas. Também serve como base para campanhas de educação pública, políticas de saúde e ações de prevenção em larga escala.
Implicações para acesso a tratamento
A obesidade como definida até então como um fator de risco para outras doenças leva a uma confusão de estratégias de tratamento. Se é considerada um fator de risco somente, as intervenções terapêuticas podem ser consideradas profiláticas. Um dos impactos mais tangíveis das novas definições clínicas da obesidade será o acesso ampliado a tratamentos, incluindo terapias farmacológicas e cirurgia bariátrica/metabólica. Atualmente, muitos sistemas de saúde limitam a elegibilidade para esses tratamentos com base estrita no IMC, mesmo quando há indicações clínicas claras.
Ao adotar critérios que levem em conta o estado clínico e o risco individual, pacientes com obesidade clínica, mesmo com IMC mais baixos, poderão ser considerados para intervenções antes da deterioração do quadro. Isso é não apenas mais ético, como também mais eficiente do ponto de vista de saúde pública, evitando o acúmulo de comorbidades e custos futuros.
Já aqueles com obesidade pré-clínica, necessitam de acompanhamento e, dependendo de seu risco, são tratados pela melhor opção, seja clínica ou cirúrgica. Obesidade clínica é uma doença por si só, não sendo necessária outra doença para caracterizá-la. Porém, se o indivíduo é portador de obesidade pré-clínica e tem também diabetes tipo 2, ele(a) deve ser tratado, já que controlar a obesidade é fundamental para seu tratamento.
Como a obesidade clínica tem sinais e sintomas relacionados a complicações do excesso de gordura, quando esses fatores forem controlados podemos obter a remissão da obesidade, exatamente como qualquer enfermidade. Se a depressão for tratada com a medicação adequada e seus sinais e sintomas controlados, pode-se dizer que está clinicamente controlada. Por que não para a obesidade?
Influência em diretrizes e políticas públicas
As definições propostas pela Lancet Commission devem servir de base para a revisão de diretrizes clínicas internacionais e nacionais.
Organizações como a OMS, sociedades médicas e entidades reguladoras de saúde pública poderão adaptar seus critérios diagnósticos e de tratamento, com impacto direto sobre a cobertura por planos de saúde, políticas de prevenção e financiamento de cuidados. As novas definições do espectro obesidade pré-clínica/clínica, permite planejar estratégias diferentes de prevenção e de tratamentos. Quem é portador da doença no presente (obesidade clínica) deve ser priorizado. E aqueles no espectro da obesidade pré-clínica devem ser seguidos e tratados no momento que necessitarem.
Além disso, as novas definições poderão orientar pesquisas clínicas, melhorando a seleção de participantes, a estratificação de risco e a comparação de resultados entre estudos.
Conclusão
As novas definições propostas pela Lancet Commission on Obesity marcam uma virada histórica na compreensão e manejo clínico da obesidade. Elas promovem uma abordagem baseada em ciência, centrada no paciente, e mais justa em termos de acesso e equidade.
Sua adoção poderá melhorar a detecção precoce, guiar intervenções mais eficazes, reduzir o estigma, e, acima de tudo, reconhecer a obesidade como a doença crônica e séria que de fato é — exigindo respostas clínicas, sociais e políticas à altura de sua complexidade e impacto.
Referências
- Rubino F, Cummings DE, Eckel RH, CohenRV et al. Definition and diagnostic criteria of clinical obesity [published correction appears in Lancet Diabetes Endocrinol. 2025 Mar;13(3):e6. doi: 10.1016/S2213-8587(25)00006-3.]. Lancet Diabetes Endocrinol. 2025;13(3):221-262. doi:10.1016/S2213-8587(24)00316-4
Como citar este artigo
Cohen RV. Repensando a obesidade: Como a nova definição pode transformar o cuidado clínico; Gastropedia 2025, Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/repensando-a-obesidade-como-a-nova-definicao-pode-transformar-o-cuidado-clinico/