Há evidência para rastreio de câncer gástrico? Quando realizar?

O câncer gástrico continua sendo um desafio relevante na gastroenterologia. novo guideline europeu MAPS III (Management of epithelial precancerous conditions and early neoplasia of the stomach) publicado em 2025 pela ESGE, EHMSG e ESP, atualizou as recomendações sobre rastreamento, diagnóstico e manejo das condições pré-cancerosas gástricas e do câncer gástrico precoce.

Neste artigo, revisamos as recomendações sobre o rastreamento do câncer gástrico.

1. Conceitos iniciais

Antes de definir quem rastrear, precisamos diferenciar alguns conceitos:

  • Rastreamento populacional: busca ativa em pessoas assintomáticas da população geral.
  • Rastreamento direcionado: feito em grupos de alto risco previamente definidos, como indivíduos com histórico familiar ou síndromes hereditárias.
  • Rastreamento oportunístico: ocorre durante uma endoscopia realizada por outro motivo, aproveitando o exame para avaliar o risco individual e identificar condições pré-cancerosas (atrofia, metaplasia intestinal).
  • Vigilância: refere-se ao acompanhamento endoscópico periódico de pacientes que já têm lesões superficiais tratadas ou condições pré-cancerosas que exigem seguimento

2. Rastreamento populacional: em quem faz sentido?

O MAPS III reforça que o rastreamento endoscópico de câncer gástrico não deve ser universal, mas estratificado conforme o risco populacional, de acordo com a ASR (age-standardized rate, isto é, a taxa ajustada pela idade) – vide Tabela 1.

A ASR ajusta as taxas brutas de incidência para a população mundial padrão da OMS, permitindo comparações válidas entre países ao eliminar o efeito da idade. Em outras palavras: a taxa bruta de incidência, apesar de mais prática, é fortemente influenciada pela estrutura etária — regiões com mais idosos terão taxas brutas maiores, mesmo que o risco individual de câncer seja o mesmo. A taxa ajustada (ASR) reflete o risco “puro” de desenvolver a doença, independente do envelhecimento populacional.


Tabela 1: Recomendações do MAPS III para rastreio populacionado de câncer gástrico, conforme ASR (taxa ajustada pela idade de incidência de câncer gástrico).

Categoria de risco Critério (ASR) Recomendação do MAPS III
Baixo risco < 10/100.000 habitantes/ano Não rastrear
Intermediário 10–20/100.000 habitantes/ano Rastreio a cada 5 anos (se custo-efetivo e houver recursos)
Alto risco > 20/100.000 Rastreio endoscópico a cada 2–3

3. Qual é a evidência?

A maior parte das recomendações tem nível de evidência moderado a baixo, refletindo a escassez de estudos randomizados fora da Ásia. Entretanto, dados de coortes e programas populacionais (como o da Coreia do Sul) mostram redução de 20–40% na mortalidade por câncer gástrico em populações submetidas a rastreamento endoscópico periódico. O MAPS III, portanto, busca equilibrar benefício populacional, custo e sustentabilidade da prática endoscópica.

Embora o benefício do rastreamento populacional do câncer gástrico em regiões de risco intermediário ainda não esteja totalmente estabelecido, estudos recentes apontam possível custo-efetividade quando o rastreamento endoscópico é integrado ao rastreamento colorretal.

4. O Brasil é um país de risco baixo, intermediário ou alto?

Sem considerar os tumores de pele não melanoma, o câncer de estômago ocupa a quinta posição entre os tipos de câncer mais frequentes no Brasil e no mundo.

Segundo o INCA (Estimativas 2023-2025), o Brasil apresenta taxa ajustada pela idade (ASR) de 9,51/100.000 em homens e 4,92/100.000 em mulheres, determinando taxa ajustada pela idade geral de 7,08/100.000 habitantes, o que é compatível com risco baixo para câncer gástrico. Caso considerássemos a taxa bruta, teríamos 12,63 em homens, 7,36 em mulheres e 9,94/100.000 na população geral.

Assim, conforme o presente consenso, não se recomenda rastreamento populacional para câncer gástrico no país. Contudo, vivemos em um país continental heterogêneo e, conforme a Tabela 2, podemos observar que em alguns estados há risco intermediário (principalmente na população masculina).


Tabela 2: Estimativas de 2023 a 2025 de taxa ajustada pela idade (ASR) de câncer gástrico por unidade federativa (UF) no Brasil. Adaptado de INCA, 2022. (https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/estimativa-2023-incidencia-de-cancer-no-brasil )

UF Estado ASR Homens ASR Mulheres ASR Geral
AC Acre 9,74 4,61 7,08
AL Alagoas 11,41 4,47 7,49
AM Amazonas 18,77 8,51 13,42
AP Amapá 17,66 8,18 12,85
BA Bahia 9,05 4,96 6,84
CE Ceará 16,00 7,58 11,34
DF Distrito Federal 9,12 3,72 5,93
ES Espírito Santo 8,85 3,99 5,98
GO Goiás 7,10 5,55 5,61
MA Maranhão 9,21 4,78 6,90
MG Minas Gerais 5,75 2,41 3,86
MS Mato Grosso do Sul 10,28 5,55 7,31
MT Mato Grosso 8,88 4,75 6,80
PA Pará 17,20 8,11 12,57
PB Paraíba 10,70 5,26 7,66
PE Pernambuco 10,09 5,26 7,35
PI Piauí 7,81 4,14 5,82
PR Paraná 9,28 4,31 6,33
RJ Rio de Janeiro 5,28 2,78 3,73
RN Rio Grande do Norte 12,13 6,52 9,03
RO Rondônia 11,78 5,46 8,65
RR Roraima 9,51 4,92 7,27
RS Rio Grande do Sul 5,94 2,67 3,95
SC Santa Catarina 15,69 5,64 9,98
SE Sergipe 10,71 4,96 7,47
SP São Paulo 7,06 2,85 4,51
TO Tocantins 8,84 3,74 6,33
BR Brasil 9,51 4,92 7,08


5. Rastreio oportunístico: uma chance que deve ser aproveitada

Um dos pontos mais importantes do MAPS III é a ênfase no rastreamento oportunístico. A recomendação é que toda endoscopia digestiva alta inicial inclua a avaliação endoscópica do risco individual de câncer gástrico — independentemente do país de origem do paciente.

Isso significa que, mesmo em regiões de risco baixo, como o Brasil, o endoscopista deve:

  • Avaliar atrofia e metaplasia intestinal;
  • Coletar biópsias em dois sítios anatômicos (antro/incisura e corpo);
  • Realizar diagnóstico e estratificação de risco conforme OLGA/OLGIM.

Essa abordagem transforma a endoscopia em uma ferramenta de prevenção secundária personalizada.


6. Rastreamento direcionado

O guideline propõe duas estratégias de atenção especial aos familiares de primeiro grau de pacientes com câncer gástrico:

  • Triagem e erradicação não invasiva de H. pylori entre 20 e 30 anos;
  • Endoscopia aos 45 anos ou 10 anos antes da idade de diagnóstico do familiar afetado.

Essas recomendações refletem o reconhecimento do componente hereditário e familiar do risco gástrico, reforçando a importância de programas de rastreamento direcionado para esse grupo.

As diretrizes britânicas (BSG) recomendam ainda rastreio endoscópico direcionado em pacientes ≥50 anos com fatores de risco como anemia perniciosa, sexo masculino, tabagismo ou histórico familiar de câncer gástrico.


7. Quando suspender o rastreamento?

O benefício do rastreamento do câncer gástrico diminui com o avanço da idade e a presença de comorbidades, pois ambos reduzem a expectativa de vida e aumentam o risco de complicações associadas a procedimentos invasivos. Quando a expectativa de vida é inferior a 10 anos, o rastreamento é pouco provável de trazer impacto significativo na sobrevida.

Por isso, as diretrizes recomendam que o rastreamento ou vigilância endoscópica seja interrompido — ou nem iniciado — em indivíduos com mais de 80 anos ou cuja expectativa de vida seja claramente menor que 10 anos. Esse limite etário é arbitrário, baseado na expectativa média de vida e na baixa probabilidade de progressão relevante das condições pré-cancerosas após essa idade.


8. Marcadores séricos: o papel do pepsinogênio

Segundo presente consenso, a endoscopia está recomendada em indivíduos com níveis séricos baixos de pepsinogênio I ou relação I/II reduzida, especialmente se sorologia negativa para H. pylori. Esses achados bioquímicos indicam atrofia avançada da mucosa gástrica e, portanto, risco aumentado de câncer, justificando investigação endoscópica. A dosagem destes marcadores, contudo, não é rotineira em nosso país.


Conclusões práticas para o Brasil

  • Brasil é um país de risco baixo: rastreamento populacional não é indicado, mas o rastreio oportunístico durante endoscopias deve ser rotina.
  • Estratificar o risco individual por meio de achados endoscópicos biópsias dirigidas (OLGA/OLGIM) é fundamental para vigilância
  • Pacientes com histórico familiar de câncer gástrico merecem atenção especial, com teste e erradicação de H. pylori e EDA direcionada.


Referências

  1. Dinis-Ribeiro M, et al. Management of epithelial precancerous conditions and early neoplasia of the stomach (MAPS III): ESGE/EHMSG/ESP Guideline Update 2025. Endoscopy. 2025. DOI: 10.1055/a-2529-5025
  2. Instituto Nacional de Câncer (INCA). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2022. 160 p. ISBN 978-65-88517-10-9. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/estimativa-2023-incidencia-de-cancer-no-brasil

Como citar este artigo

Lages RB. Há evidência para rastreio de câncer gástrico? Quando realizar? Gastropedia 2025, Vol II. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/ha-evidencia-para-rastreio-de-cancer-gastrico-quando-realizar/