Aumento de enzimas pancreáticas no sangue – como investigar ou conduzir?

7 minutos

Por vezes nos deparamos com pacientes que, mesmo sem um motivo aparente, apresentam aumento de enzimas pancreáticas (lipase ou amilase) no sangue. Quando valorizar esse achado? A dosagem das enzimas fora do contexto de dor abdominal é indicada?

Chamamos de hiperenzinemia pancreática o aumento das enzimas no sangue. São várias as possíveis causas para esse aumento, que geralmente envolvem um desbalanço entre a liberação de enzimas na corrente sanguínea e o clearance delas, que pode se apresentar diminuído. 

A primeira questão a ser lembrada é que a amilase é uma enzima produzida por diversos tecidos, sendo os de maior destaque as glândulas salivares e o pâncreas. A lipase é bem mais específica do pâncreas, embora alguns sítios possam produzir lipase também, como o estômago, duodeno, cólon e fígado. 

Essas enzimas são parcialmente eliminadas pelos rins e pelo sistema retículo-endotelial (especialmente pelo fígado). É dessa forma que as enzimas são retiradas do sangue em situações fisiológicas.

Causas de Hiperenzinemia Pancreática

Sem dúvida a principal causa de elevação de enzimas pancreáticas é a pancreatite aguda (PA). Esse é um dos critérios para o diagnóstico da PA definidos pelo Consenso de Atlanta Modificado em 2012, conforme tabela 1.

Tabela 1.- critérios diagnósticos para Pancreatite Aguda

Faz sentido, portanto, a dosagem das enzimas no contexto de dor epigástrica (que pode irradiar para hipocôndrios e dorso), acompanhada de náuseas e vômitos. Neste caso, o aumento superior a 3x o limite superior da normalidade concluiria o diagnóstico de PA, sem a necessidade do exame de imagem. 

A dosagem das enzimas fora do contexto de dor ainda podem representar algum problema pancreático. Qualquer processo patológico na glândula pode se manifestar com aumento de enzimas. Alguns exemplos são:

  • Neoplasias pancreáticas
  • Neoplasias peri-ampulares
  • Dilatações ductais, como as encontradas nos IPMNs
  • Pancreatite crônica
  • Disfunção do esfíncter de Oddi
  • Anormalidades anatômicas, como Santorinocele ou Pancreas divisum
  • Coledococele
  • Manipulação da papila, como nas CPREs

Sabendo disso, faz-se necessária uma boa imagem pancreática para exclusão dessas etiologias, especialmente as neoplasias. 

Existem causas extra-pancreáticas de aumento de liberação de enzimas, tais como: infecções por vírus pancreatotrópicos (Hepatite B, Hepatite C, HIV), cistos ovarianos rotos, gravidez ectópica e distúrbios alimentares. Quadros vasculares podem levar a isquemia das células acinares e elevação das enzimas no sangue (mesmo sem pancreatite aguda). Mesmo diante dessas situações, é sempre necessária a visualização da glândula pancreática. 

Como já foi dito, o clearance das enzimas é parcialmente realizado pelos rins, fígado e baço. Portanto, qualquer prejuízo na função desses órgãos pode acarretar a hiperenzinemia, como nos casos da doença renal crônica, insuficiência hepática e pacientes esplenectomizados. 

Pacientes submetidos a cirurgia pancreática, e até outras cirurgias (como pulmonar e cardíaca) também podem ter elevação das enzimas de forma temporária.

Medicamentos

Assim como alguns medicamentos podem causar pancreatite aguda, existem também medicamentos que levam a hiperenzinemia sem a presença dos critérios de PA. Dentre as principais associações estão: azatioprina, didanosina, ciclosporina, paracetamol, efedrina, pentamidina, dentre outros. Mais recentemente, os agonistas de receptor de GLP-1 (medicações utilizadas para tratamento de diabetes e obesidade) foram relacionados com aumento sérico de enzimas pancreáticas. 

Diferentemente do que ocorre com os casos de pancreatite aguda, os medicamentos causadores de hiperenzinemia (sem PA) não requerem a suspensão do uso.

Macroamilasemia

Uma condição já reconhecida há algum tempo é a macroamilasemia. Nesses casos, a amilase produzida pelo indivíduo se liga a outras proteínas séricas ou sofrem um processo de polimerização que tornam maior a molécula de amilase (que normalmente tem em torno de 50 kDa), assim chamada de macroamilase (que pode variar de tamanho entre 150 kDa até 2.000 kDa). 

Nesses casos, a macromolécula acaba não sendo filtrada corretamente pelos túbulos renais, e permanece circulando na corrente sanguínea, causando um aumento sérico nos níveis de amilase. 

O diagnóstico de macroamilasemia é feito com o cálculo do clearance de amilase na urina, ou com a dosagem da macroamilase na corrente sanguínea. Essa condição não é patológica e não traz nenhum prejuízo para o indivíduo, embora seja associada com algumas patologias, como a  Doença Celíaca, por exemplo. 

Nesses casos a dosagem de lipase é normal. É descrita a macrolipasemia, embora seja muito mais rara do que a macroamilasemia.

Como investigar?

Aqui apresentamos um algoritmo de como investigar os casos de hiperenzinemia pancreática.

Adaptado de Frullonni, L et al. 2005

Por fim, se o paciente tiver alteração de enzimas pancreáticas, com exame de imagem normal, e sem exposição relevante a álcool e medicamentos e excluída a hipótese de macroamilasemia, e se essas alterações se sustentarem por um período maior que 2 anos, pode-se firmar o diagnóstico de Hiperenzinemia Pancreática Benigna ou Síndrome de Gullo

Mensagens para Casa:

  • A Hiperenzinemia Pancreática pode ter relação com patologias pancreáticas (pancreatite aguda, pancreatite crônica ou neoplasias pancreáticas) e também com problemas extra-pancreáticos (disfunção renal, insuficiência hepática dentre outros).
  • Frente a alteração de enzimas pancreáticas devemos sempre ter um bom exame de imagem da glândula.
  • Faz-se necessário descartar macroamilasemia nos casos de aumento isolado de amilase.
  • Na anamnese, sempre avaliar uso de medicações, que podem causar o aumento de enzimas – na ausência de pancreatite aguda, não é necessária a suspensão das medicações.
  • Frente ao diagnóstico de Hiperenzinemia Pancreática Benigna – ou Síndrome de Gullo – tranquilizar o paciente, pois essa condição não predispõe a alterações pancreáticas futuras.
Leia também sobre aumento de CA19-9

Elevação do marcador CA 19-9

Referências:

  1. Banks PA. et al. Classification of acute pancreatitis— 2012: revision of the Atlanta classification and definitions by international consensus. Gut. 2013, pp. 102-111.
  2. Frullonni, L et al. Pancreatic Hyperenzymemia: Clinical Significance and Diagnostic Approach. JOP. J Pancreas (Online) 2005; 6(6):536-551.
  3. Chen, Y et al. Risk factors associated with elevated serum pancreatic amylase levels during hemodialysis. Hemodialysis International 2011; 15:79–86
  4. Lando HM, Alattar M, Dua AP .Elevated amylase and lipase levels in patients using glucagon like peptide-1 receptor agonists or dipeptidyl-Peptidase-4 inhibitors in the outpatient setting. Endocr Pract (2012)18(4):472
  5. Gossum, AV. Macroamylasemia: a Biochemical or Clinical Problem? Dig Dis 1989; 7:19-27.
  6. Gullo, L et al. Benign pancreatic hyperenzymemia or Gullo’s syndrome. Advances in Medical Sciences · Vol. 53(1) · 2008 · pp 1-5

Como citar este artigo

Marzinotto M. Aumento de enzimas pancreáticas no sangue – como investigar ou conduzir? Gastropedia 2023, vol 2. Disponivel em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreas/aumento-de-enzimas-pancreaticas-no-sangue-como-investigar-ou-conduzir/




Doença diverticular do cólon: epidemiologia e fisiopatologia

 

1. INTRODUÇÃO

A doença diverticular do cólon é uma patologia onde pequenos sacos são formados por uma protrusão geralmente no ponto de penetração da artéria nutriente (vasa recta) que irriga a mucosa e a submucosa. É uma doença crônica com um amplo espetro de sintomas abdominais que eventualmente podem agudizar.

A doença diverticular do colón afeta mais da metade dos indivíduos acima dos 60 anos de idade. No entanto, apenas 20% dos doentes desenvolvem sintomas desta condição.

Existe amplo espectro de apresentações clínicas dos divertículos de cólon. O detalhamento do quadro clínico será discutido em outro artigo. Neste artigo, focaremos na fisiopatologia da doença diverticular e de suas complicações. No entanto, é importante entender a diferença de nomenclaturas utilizadas para descrever cada condição. Resumidamente:

  • Diverticulose ou Doença diverticular assintomática: é a simples presença de divertículos no cólon. Pode ser assintomática ou sintomática. A maioria das pessoas com divertículos do cólon permanece assintomática. Sintomas atribuídos a diverticulose aparecem em cerca de 25-30% dos indivíduos. Alguns autores reservam o termo doença diverticular apenas para a diverticulose sintomática, embora no nosso meio esses termos sejam usados como sinônimos.
  • Doença diverticular sintomática pode variar conforme sua apresentação clínica, desde a Doença diverticular sintomática não complicada, que tipicamente manifesta-se por dor abdominal localizada, sensação de gases e alterações do habito intestinal, até a Doença diverticular complicada, como a diverticulite aguda e a hemorragia diverticular.

2. EPIDEMIOLOGIA

A doença diverticular é uma das desordens gastrointestinais mais comuns nos países ocidentais, e acredita-se que sua incidência tenda a aumentar, sendo proporcional com o envelhecimento da população. A diverticulose do cólon é o achado mais comum na colonoscopia.

A distribuição destes divertículos varia com a raça, mas não com o sexo.

No ocidente, 80-90% situam-se no cólon esquerdo. Na população asiática a diverticulose predomina no cólon direito (80%). Frequência de diverticulose a direita tem aumentado no ocidente ultimamente.

A prevalência da diverticulose é menor que 20% na população com menos de 40 anos, comparado com cerca de 60% nos indivíduos com mais de 70 anos de idade.

A diverticulose geralmente cursa sem sintomas ao longo da vida. A diverticulite aguda ocorre em menos de 5% dos doentes com diverticulose e destes, 20% terão diverticulite complicada.

Depois da recuperação do primeiro episódio, 15 a 20% podem apresentar recorrência.

3. FISIOPATOLOGIA

O mecanismo fisiopatológico envolvido na doença diverticular é complexo e não está completamente compreendido. A diverticulose parece estar ligada à formação de divertículos através de altas pressões na mucosa do cólon em locais de fraqueza onde arteríolas penetram a camada muscular circular para fornecer nutrientes à mucosa. Estas arteríolas advêm de colaterais das artérias mesentérica superior e inferior através da arcada de Riolan, da artéria marginal de Drummond e uma série de outras arcadas. As arcadas terminais por fim penetram a camada muscular pela vasa recta para formar o plexo submucoso. Assim, contrações de elevada amplitude associadas a obstipação e elevado conteúdo de gordura nas fezes no lúmen do cólon sigmóide resultam na criação destes divertículos. Os divertículos ocorrem mais frequentemente no cólon sigmoide estando relacionados a pressão e o tipo de conteúdo intraluminal.

Divertículo falso ou verdadeiro? Na população ocidental, os divertículos são causados por inversão das camadas mucosa e submucosa, mas não da camada muscular, portanto, são denominados falsos divertículos ou pseudodivertículos. Na população oriental, a inversão pode envolver todas as camadas da parede do cólon e esses divertículos são, portanto, referidos como divertículos “verdadeiros”.

Existem três fatores principais envolvidos na fisiopatologia da doença diverticular:

  • Alterações da parede do cólon
  • aumento da pressão intracólica (dismotilidade) 
  • Dieta pobre em fibras (fezes endurecidas)

3.1 Alterações na parede:

Existe um espessamento atribuído à deposição de elastina entre as células musculares na taenea, verificando-se um aumento da síntese de colégeno tipo III. Isso leva a um encurtamento das tênias colônicas com espessamento da camada muscular circular e redução do calibre do órgão, processo conhecido como myochosis coli. Verifica-se uma expressão acentuada do inibidor tecidual de metaloproteinases, que regula a deposição de proteínas na matrix extracelular, o que poderá levar ao aumento da elastina e colágeno. Estes achados parecem estar em harmonia com a incidência mais alta da diverticulose nas doenças do tecido conjuntivo.

  • diversos autores referem espessamento da camada muscular como fator que precede o divertículo, pois esta hipertrofia causaria aumento da pressão intracolônica e aumento do número de ondas motoras.

3.2 Distúrbios da motilidade do cólon:

  • Segundo Painter (TEORIA DA SEGMENTAÇÃO NÃO-PROPULSIVA) (Painter NS, et al. Gastroenterology. 1965), o cólon atua em segmentos separados em vez de funcionar como um tubo contínuo. Havendo progressão desta segmentação, as pressões altas são direcionadas à parede do cólon em vez de desenvolver ondas de propulsão para mover o conteúdo intestinal distalmente.
  • Postulou a teoria da segmentação cólica onde a contração da musculatura lisa em sintonia com as pregas semilunares da mucosa levaria ao aparecimento de múltiplas câmaras (que corresponderiam às haustrações) onde a pressão estaria aumentada favorecendo a pulsão da mucosa contra os pontos de fraqueza na parede cólica na entrada dos vasos retos levando então ao aparecimento dos divertículos.
  • A atividade mioelétrica também parece estar alterada na doença. Foi demonstrado em diversos estudos mais atuais que na doença diverticular existem menos células de Cajal e células gliais e uma variabilidade na expressão de certos neuropeptídeos
  • Alterações da motilidade cólica resultam em aumento das pressões de repouso no cólon de indivíduos com doença diverticular.
  • O cólon sigmoide por ter a maior pressão no cólon e ser o segmento mais estreito é o mais acometido.
  • A observação de pressões elevadas de repouso e induzidas no cólon direito de pacientes asiáticos com divertículos proximais também foi publicada, sugerindo que a dismotilidade proximal também exerce papel na origem de divertículos do cólon direito.

3.3 Dieta:

  • A grande variação na prevalência dessa afecção, bem como sua estreita correlação com a dieta ocidental sugerem a existência de um fator etiológico presente na dieta.
  • Painter e Burkitt (Painter NS and Burkitt DP. Brit Medical.1971) observaram em mais de 1.200 habitantes do Reino Unido e de Uganda que os primeiros, ingerindo dieta ocidental pobre em fibra e refinada (massa fecal diária de aproximadamente 110 gramas), exibiam tempo de trânsito intestinal menor do que os africanos que se alimentavam de dieta rica em fibras e tinham massa fecal avaliada em aproximadamente 450 gramas por dia. Postulou-se que tempos de trânsito intestinal prolongado com fezes pouco volumosas resultantes de dieta pobre em fibras levariam a significativo aumento das pressão intraluminal e predisporiam à formação de divertículos.
  • No entanto, quando olhamos para uma população inteiramente ocidental, tais diferenças na composição da dieta e na duração do tempo de trânsito não foram elucidativas. Tampouco estudos de intervenção estão disponíveis para comprovar a evidência epidemiológica.
A principal hipótese para a diverticulose envolve anormalidades neuromusculares, com alteração na composição do colágeno, no sistema neuronal entérico, num cenário de aumento da pressão intraluminal.
A doença diverticular sintomática não complicada pode se instalar num contexto de alteração da microbiota, levando a um processo inflamatório crônico e insidioso, com liberação de mediadores inflamatórios e hipersensibilidade visceral.

4. Fisiopatologia das complicações da doença diverticular

4.1 Fisiopatologia da Diverticulite Aguda

A causa subjacente da diverticulite é a perfuração micro ou macroscópica de um divertículo. Os mecanismos que levam a essa perfuração não são bem elucidados e provavelmente a causa é multifatorial. Anteriormente, acreditava-se que a obstrução dos divertículos (por exemplo, por fecalitos) aumentava a pressão intradiverticular e causava perfuração. No entanto, essa obstrução nem sempre está presente.

Acredita-se que o processo seja multifatorial:

  • Alteração do microbiota levando a disfunção da barreira mucosa
  • Inflamação crônica local
  • Trauma local com erosão da parede diverticular por aumento da pressão intraluminal e fecalitos
  • Seguem inflamação e necrose focal, resultando em perfuração

Recentemente, descobriu-se que também existe uma inflamação de baixo grau contínua no segmento de cólon acometido. Esta inflamação leva a hipertrofia muscular e ao remodelamentodos nervos entéricos levando a hipersensibilidade visceral e alteração da motilidade. Estas mudanças podem ser a razão da dor abdominal recorrente e distúrbios gastrointestinais posteriormente a um episódio de diverticulite.

Outro fator que também parece ter algum papel na fisiopatologia é a microbiota intestinal. Em diversos estudos, na diverticulite a diversidade de Proteobacteria foi maior em relação ao controle. Também apresenta um maior número de macrófagos e uma depleção de Clostridium cluster IV. Na diverticulose sintomática, parece estarem reduzidos o Clostridium cluster IX, Fusobacterium, e Lactobacillaceae, comparados com as pessoas com diverticulose sem sintomas.

Alterações da microbiota, perda da função de barreira, inflamação e trauma causado por fecalito são os principais mecanismos propostos para a diverticulite aguda.

Confira esse artigo: Tratamento da Diverticulite Aguda

4.2 Fisiopatologia do sangramento diverticular

Com relação à FISIOPATOLOGIA DO SANGRAMENTO DIVERTICULAR, após a herniação diverticular no ponto de fraqueza dos vasos, a vasa recta fica mais exposta ao conteúdo colônico, levando a espessamento da camada íntima e adelgaçamento da camada média, que predispõe a ruptura para o lumen.

O sangramento diverticular ocorre em locais com assimetria de vasos perfurantes que encontram-se com calibre aumentado. Obesidade, hipertensão arterial e trauma luminal são considerados fatores de risco para o sangramento diverticular

Confira esse artigo: Hemorragia Diverticular: quadro clínico e tratamento

5. Fatores de risco

Diversos fatores de risco já foram correlacionados com a doença diverticular, incluindo ingesta de carne vermelha, dieta pobre em fibras, sedentarismo, IMC > 25 Kg/m2 e tabagismo. TODOS OS GUIDELINES COLOCAM A OBESIDADE, DIETA POBRE EM FIBRAS E SEDENTARISMO COMO FATORES DE RISCO PARA DOENÇA DIVERTICULAR.

 

REFERÊNCIAS

Tursi A, Scarpignato C, Strate LL, Lanas A, Kruis W, Lahat A, Danese S. Colonic diverticular disease. Nat Rev Dis Primers. 2020 Mar 26;6(1):20. doi: 10.1038/s41572-020-0153-5. PMID: 32218442

Como citar esse artigo

Martins BC. Doença diverticular do cólon: epidemiologia e fisiopatologia. Em Gastropedia 2023, vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/doenca-diverticular-do-colon-epidemiologia-e-fisiopatologia




Minha tosse é por causa do refluxo?

Não é incomum o gastroenterologista receber no consultório pacientes encaminhados por queixa de tosse crônica e achado de laringite posterior. Mas você sabe como proceder nestes casos?

Alguns estudos sugerem que a tosse crônica pode de fato ser devido à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) em 21 a 41% dos casos. Teoricamente, o refluxo pode causar irritação e inflamação da mucosa do trato aerodigestivo superior, seja por contato direto ou por reflexo neuromediado. O diagnóstico, no entanto, pode ser mais desafiador do que parece, pois são sintomas pouco específicos e que se confundem com outras patologias.

Abaixo, seguem algumas dicas chaves para entender melhor a relação tosse x DRGE.

1. A tosse crônica pode ter diversas etiologias

Uma avaliação multidisciplinar deve ser realizada e outras etiologias não devem ser negligenciadas, tais como:

  • Irritantes ambientais ou ocupacionais
  • Tabagismo
  • Uso de IECAs (inibidor da enzima de conversão de angiotensina)
  • Asma
  • Síndrome da tosse das vias aéreas superiores (antigamente denominada Síndrome de gotejamento pós-nasal) devido a uma variedade de condições rinossinusais
  • Bronquite eosinofílica não asmática
  • Doenças pulmonares supurativas (bronquiectasias e abscessos).

2. Laringite posterior não é sinônimo de refluxo

A inflamação laríngea posterior é classicamente considerada como sinal de refluxo laringofaríngeo. No entanto, outros fatores também poderiam estar implicados com esta inflamação, tais como tabagismo, abuso de álcool, infecções virais ou bacterianas, alergias, sinusite crônica e abuso da voz. Além disso, diferentes estudos enfatizaram que esses sinais são pouco precisos por causa de uma baixa concordância interobservador, variável confiabilidade intra-observador e alta prevalência em indivíduos saudáveis.

Milstein e colaboradores, por exemplo, avaliaram exames de laringoscopia flexível de 52 indivíduos não fumantes e sem sintomas de DRGE e identificaram que 93% deles apresentavam ao menos um sinal de irritação tecidual, com 76,3% revelando edema ou eritema do complexo aritenóideo. Essa alta prevalência de achados em pessoas assintomáticas, levanta, portanto, o questionamento sobre o quão específicos e relevantes estes achados seriam.

3. A monitorização de pH proximal tem resultados controversos

Os primeiros estudos de teste de pH orofaríngeo foram promissores e pareciam prever o sucesso da cirurgia antirrefluxo. No entanto, estudos subsequentes falharam em identificar uma correlação significativa entre eventos de refluxo orofaríngeo e eventos de refluxo na impedâncio-pHmetria, sugerindo que a diminuição do pH orofaríngeo pode ser devido a outros fatores além do refluxo gastroesofágico. Alguns estudos também não identificaram diferenças significativas na exposição ao ácido orofaríngeo entre os pacientes que responderam ao IBP, os que responderam parcialmente e os que não responderam.

4. A resposta ao IBP não é tão satisfatória

Outro ponto importante sobre as manifestações extraesofágicas é que a resposta ao tratamento com inibidores de bomba de prótons (IBPs) não é tão boa. Enquanto é esperado que os sintomas típicos irão resolver em 4 a 8 semanas, a literatura sugere que a melhora da tosse pode demorar até 3 meses. Algumas metanálises inclusive não foram capazes de demonstrar benefícios do tratamento empírico de IBP em pacientes com laringite ou tosse crônica.

Utilizar doses maiores de IBP (isto é, duas vezes ao dia) parece ser mais eficaz para controle de sintomas extraesofágicos. Em um estudo de coorte prospectivo (Park et al, 2005), 54% dos pacientes com sintomas extraesofágicos que não responderam ao IBP uma vez ao dia tiveram melhora dos sintomas após 8 semanas adicionais de IBP duas vezes ao dia.

5.Recomendações gerais

Os algoritmos de diagnóstico para manifestações extraesofágicas são complexos porque elas são heterogêneas e muitas vezes se sobrepõem a outras condições. Conforme os Guidelines do American College of Gastroenterology (2022), as principais recomendações são:

  • Pacientes com queixas extraesofágicas + sem sintomas típicos DRGE – Realizar algum teste objetivo para DRGE antes da terapia empírica com IBP. Se a endoscopia for normal, considere monitorização prolongada do refluxo.
  • Pacientes com queixas extraesofágicas + sintomas típicos DRGE – Terapia empírica com IBP em dose dobrada (duas vezes ao dia) por 8 a 12 semanas antes de teste adicional.
  • Confirmar que existe DRGE não confirma que a DRGE é a causa dos sintomas extraesofágicos.
  • Os achados da laringoscopia NÃO são suficientes para diagnóstico de refluxo laringofaríngeo. O uso da laringoscopia tem muitas limitações, como visualização de inflamação em voluntários assintomáticos, baixa reprodutibilidade e falta de correlação entre achados e sintomas. Testes adicionais devem, portanto, ser realizados para o correto diagnóstico.
  • A monitorização de pH em orofaringe ou faringe com sondas de dois canais tem resultados variáveis e não deve ser recomendada de rotina. A dosagem de pepsina salivar também não tem evidências suficientes para ser utilizada.

O fluxograma 2 tenta sistematizar essas diretrizes.

Fluxograma 2: Algoritmo diagnóstico para sintomas extraesofágicos em Doença do Refluxo Gastroesofágico (American College of Gastroenterology, 2022)

Referências

  1. Ghisa M, Barberio B, Savarino V, Marabotto E, Ribolsi M, Bodini G, et al. The Lyon Consensus: Does It Differ From the Previous Ones? J Neurogastroenterol Motil 2020;26:311–21. doi:10.5056/jnm20046.
  2. Chen JW, Vela MF, Peterson KA, Carlson DA. AGA Clinical Practice Update on the Diagnosis and Management of Extraesophageal Gastroesophageal Reflux Disease: Expert Review. Clin Gastroenterol Hepatol 2023. doi:10.1016/j.cgh.2023.01.040.
  3. Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, Greer KB, Yadlapati R, Spechler SJ. ACG Clinical Guideline for the Diagnosis and Management of Gastroesophageal Reflux Disease. Am J Gastroenterol 2022;117:27–56. doi:10.14309/ajg.0000000000001538.
  4. Kahrilas PJ, Altman KW, Chang AB, Field SK, Harding SM, Lane AP, et al. Chronic Cough Due to Gastroesophageal Reflux in Adults: CHEST Guideline and Expert Panel Report. Chest 2016;150:1341–60. doi:10.1016/j.chest.2016.08.1458.
  5. Milstein CF, Charbel S, Hicks DM, Abelson TI, Richter JE, Vaezi MF. Prevalence of laryngeal irritation signs associated with reflux in asymptomatic volunteers: Impact of endoscopic technique (rigid vs. flexible laryngoscope). Laryngoscope 2005;115:2256–61. doi:10.1097/01.mlg.0000184325.44968.b1.
  6. Park W, Hicks DM, Khandwala F, Richter JE, Abelson TI, Milstein C, et al. Laryngopharyngeal reflux: Prospective cohort study evaluating optimal dose of proton-pump inhibitor therapy and pretherapy predictors of response. Laryngoscope 2005;115:1230–8. doi:10.1097/01.MLG.0000163746.81766.45

Como citar este artigo

Lages RB. Minha tosse é por causa do refluxo? Gastropedia 2023, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/minha-tosse-e-por-causa-do-refluxo




Insuficiência Pancreática Exócrina: um olhar além do óbvio

Quando pensamos em Insuficiência Pancreática Exócrina – IEP (diminuição na atividade das enzimas pancreáticas na luz intestinal, abaixo dos valores para uma digestão normal) automaticamente relacionamos com problemas primários do pâncreas, como pancreatite crônica ou neoplasia pancreática. E isso é correto, essas patologias são sim causa de IEP. Entretanto temos diversas outras causas que devem ser lembradas pelo gastroenterologista.

Para entendermos corretamente, vamos recorrer a fisiologia pancreática. A produção de enzimas digestivas pelo pâncreas não é dependente apenas da morfologia da glândula. Inicialmente o pâncreas é estimulado por vias neurais derivadas do nervo vago, e posteriormente tem sua principal via de estimulação através da passagem do quimo pelo duodeno. Nesta fase, a liberação de secretina e colecistoquinina (CCK) é responsável por cerca de 70% de toda a produção de suco pancreático daquela refeição. Portanto, é correto afirmar que qualquer falha nesse circuito pode ser a causa de IEP.

Hoje classificamos as etiologias da IEP como de causas pancreáticas e extra-pancreáticas:

Dentre as causas pancreáticas, temos:

  • Pancreatite crônica
  • Neoplasias pancreáticas
  • Fibrose Cística
  • Ressecções Pancreáticas
  • Hemocromatose
  • Pancreatite aguda grave, cursando com necrose extensa do parênquima glandular

E dentre as causas extra-pancreáticas, podemos listar:

  • Doença Celíaca
  • Doença de Crohn de acometimento de intestino delgado alto
  • Diabetes tipo I e II
  • Envelhecimento pancreático
  • Cirurgias gastroduodenais

As causas pancreáticas são mais conhecidas, e são causadas por doenças que levam a fibrose progressiva do pâncreas, como a pancreatite crônica; à atrofia pancreática somada a obstrução do ducto pancreático principal (como as neoplasias, especialmente da região cefálica) e a perda de parênquima pancreático, secundária a pancreatite aguda ou ressecções pancreáticas. Além delas, a fibrose cística é a principal doença de causa genética e causa a lipossubstituição do parênquima pancreático, além de alteração no transporte do suco pancreático através dos ductos.

As causas não pancreáticas mais bem estabelecidas são: a doença celíaca (devido a atrofia duodenal e a perda da estimulação pelos hormônios duodenais – secretina e CCK), o diabetes mellitus e as cirurgias derivativas.

Nos estudos mais recentes, o diabetes tem sido apontado como causa de IEP, tanto o DM-1 quanto o DM-2. As razões para isso são diversas e envolvem:

  • Atrofia do parênquima exócrino devido a falta da insulina: o hormônio produzido pelas células endócrinas pancreáticas exerce uma ação trófica parácrina nas células acinares. A diminuição da insulina ocasiona diminuição no trofismo do parênquima exócrino.
  • O diabetes pode levar a neuropatia autonômica, prejudicando as vias vagais e a estimulação da acetilcolina sobre as células pancreáticas.
  • A microangiopatia que leva a um curso de isquemia crônica na glândula, diminuindo a produção enzimática.
  • A infiltração de adipócitos no pâncreas, além de linfócitos, aumenta a ação de fibroblastos e ocasiona uma maior deposição de colágeno no órgão.

A frequência de IEP nos diabéticos ainda é incerta, e ao que parece é maior nos pacientes com DM-1 (30-56%) e menor nos pacientes com DM-2 (30-40%). Apesar da heterogeneidade dos estudos, a prevalência de IEP nos pacientes diabéticos não deve ser menosprezada.

Em relação aos  procedimentos cirúrgicos de abdome superior, observamos uma frequência cada vez maior de IEP em gastrectomias, duodenopancreatectomias e cirurgias derivativas, como o bypass gastrojejunal.

  • Nas gastrectomias parciais ou totais temos estudos mostrando 30-73% de IEP após 3 meses da cirurgia.
  • Já após as duodenopancreatectomias esse percentual pode chegar a 100%, entretanto a média pós-procedimento indicado por neoplasia pancreática ou periampular foi de 74%.
  • Esse percentual é maior do que o encontrado em duodenopancreatectomias por doenças benignas (53%).
  • Há um trabalho que evidencia 16% de IEP pós esofagectomia, embora tenha um N pequeno.

Por fim, a frequência de IEP pós bypass gastrojejunal tem se mostrado uma preocupação no seguimento desses pacientes. Especialmente após alguns anos de cirurgia, uma porcentagem desses pacientes pode apresentar IEP. Em uma coorte retrospectiva, 20,6% dos pacientes tinham esteatorreia, mas apenas 10,3% deles foram diagnosticados com IEP pós bypass com reconstrução em Y-Roux. Entretanto, apesar da frequência não ser alta, o tratamento dos pacientes com IEP diagnosticada é crucial para uma evolução nutricional satisfatória.

Como pudemos observar, as causas de Insuficiência Exócrina Pancreática vão além de problemas estruturais na glândula. É imperativo que o gastroenterologista lembre da IEP nos contextos apresentados acima, e que não deixe passar a oportunidade do tratamento correto desses pacientes.

Referências

  1. Vikesh K Singh, Mark E Haupt, David E Geller, Jerry A Hall, Pedro M Quintana Diez. Less common etiologies of exocrine pancreatic insufficiency. World J Gastroenterol 2017 October 21; 23(39): 7059-7076
  2. Martha Campbell-Thompson, Teresa Rodriguez-Calvo, and Manuela Battaglia. Abnormalities of the Exocrine Pancreas in Type 1 Diabetes. Curr Diab Rep. 2015 October ; 15(10): 79.
  3. J. R. Huddy, F. M. S. Macharg, A. M. Lawn, S. R. Preston. Exocrine pancreatic insufficiency following esophagectomy. Diseases of the Esophagus (2013) 26, 594–597
  4. Miroslav Vujasinovic, Roberto Valente, Anders Thorell, Wiktor Rutkowski, Stephan L. Haas, Urban Arnelo,  Lena Martin and J.-Matthias Löhr. Pancreatic Exocrine Insufficiency after Bariatric Surgery. Nutrients 2017, 9, 1241;
  5. Joshua Y Kwon , Alfred Nelson , Ahmed Salih , Jose Valery,  Dana M Harris, Fernando Stancampiano , Yan Bi. Exocrine pancreatic insufficiency after bariatric surgery. Pancreatology, 2022 Nov;22(7):1041-1045.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Insuficiência Pancreática Exócrina: um olhar além do óbvio. Gastropedia 2023, vol 1. Disponivel em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/insuficiencia-pancreatica-exocrina-um-olhar-alem-do-obvio




Abordagem de pacientes com alterações de enzimas hepáticas

Alterações de enzimas hepáticas são frequentemente encontrados em pacientes assintomáticos durante acompanhamento de rotina.

É importante atentar que o termo “testes (ou provas) de função hepática” apesar de usualmente empregado, pode ser interpretado erroneamente, pois na maior parte das vezes essas alterações evidenciam dano ou lesão hepática, e não necessariamente alteração da função do órgão. Ou seja, as enzimas hepáticas podem estar alteradas mesmo em pacientes com a função do fígado preservada.

A avaliação do paciente deve ser feita com anamnese e exame físico detalhados, com o intuito de pesquisar sinais e sintomas clínicos, estigmas de hepatopatia crônica, histórias epidemiológica e social, uso de medicações e presença de comorbidades que sugiram a etiologia.

 

Do ponto de vista didático, os testes laboratoriais podem ser assim divididos:

  • Aminotransferases: alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST)  –   avaliam lesão hepatocelular
  • Fosfatase alcalina (FA), Gamaglutamil transferase (GGT) e Bilirrubinas – avaliam colestase
  • Albumina, Tempo de protrombina, INR (“international normalized ratio“) – avaliam função hepática, síntese proteica

Testes para avaliação de lesão hepatocelular

A avaliação da lesão hepatocelular é bem determinada pelos níveis de ALT e AST. Com o dano hepático, os hepatócitos se rompem e as enzimas extravasam para o plasma e se tornam marcadores diagnósticos de lesão do fígado.

            A AST está presente no fígado e em outros órgãos como coração e musculatura. Em virtude disso, é preciso cautela na interpretação quanto ao seu aumento isolado. A ALT está presente principalmente no fígado e por isso é mais específica como marcador de injúria hepática.

            Os níveis considerados como normais para aminotransferases tem sido questionado, e estima-se que os valores verdadeiramente normais sejam mais baixos que os atualmente adotados. Deve-se levar em conta ainda que o sexo, a idade e os métodos utilizados também influenciam nessa determinação. Assim, deve-se considerar o número de vezes em que está aumentado com relação ao limite superior da normalidade (LSN), de forma a permitir comparações.

            Nas hepatites agudas (virais ou tóxicas), os níveis de ALT são maiores que os de AST. Na hepatite fulminante, tanto ALT quanto AST, estão bastante aumentadas nos primeiros dias de doença e é seguida de uma queda abrupta e até níveis normais.  Na doença hepática alcoólica, há uma desproporção entre AST e ALT que chama atenção. Isso ocorre pela lesão mitocondrial que o álcool causa (AST/ALT > 2).  As duas enzimas podem chegas a níveis maiores que 5000UI/L em situação de isquemia aguda hepática.

            Nas hepatites crônicas, é comum o aumento das duas enzimas entre 2-40 vezes o LSN e a relação AST/ALT < 1, mas pode ser > 1 quando há evolução para cirrose hepática. Vale ressaltar, que as enzimas podem estar normais mesmo em pacientes com cirrose ou outra doença hepática crônica.        Valores baixos das enzimas podem subestimar atividade necroinflamatória nos quadros de hepatopatias crônicas, como   hepatite autoimune, hepatites pelos vírus B e C, por exemplo – já que nessas situações pode haver uma dissociação entre os níveis enzimáticos e os achados histopatológicos.

            Nas doenças obstrutivas da via biliar, pode haver aumento das aminotransferases até 30 vezes o LSN, o que pode dificultar o diagnóstico.             Na tabela 1 estão apresentadas as principais causas de elevação de aminotransferases

Hepatotoxicidade
Álcool, drogas, ervas
Causas infecciosas
Hepatites virais A, B, C, D, E; herpes simples; varicela; citomegalovírus; Epstein-Barr e outros.
Doenças imunomediadas
Hepatite autoimune
Síndromes de sobreposição
Doenças hepáticas metabólicas
Doença de Wilson (DW)
Hemocromatose
Doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA)
Doenças hepáticas vasculares
Hepatite isquêmica
Síndrome de Budd-Chiari
Síndrome de obstrução sinusoidal
Outras causas
Esquistossomose
Doença celíaca
Deficiência de alfa-1 antitripsina
Doenças granulomatosas: sarcoidose, tuberculose
Doenças reumatológicas: lúpus eritematoso sistêmico, atrite reumatoide
Tabela 1- Causas de elevação de aminotransferases

Testes para avaliação da colestase

A colestase é uma obstrução, anatômica ou funcional, à excreção da bile. As enzimas que se localizam na membrana canalicular do hepático e ductos biliares – FA e GGT – são as que ajudam nesse diagnóstico.

  • Gamaglutamil transferase

O aumento da GGT tem alta sensibilidade para doença hepática, mas baixa especificidade, já que pode aumentar em pacientes com pancreatite, hipertireoidismo, artrite reumatoide e infarto do miocárdio. É uma enzima facilmente induzida e seus níveis podem-se elevar com a ingestão de alguns medicamentos (fenitoína e barbitúricos, por exemplo) e do álcool.

Elevações importantes de GGT (até 70 vezes o LSN) podem ser vistas em doenças obstrutivas do trato biliar, por exemplo. Nas hepatites agudas, os valores de GGT raramente ultrapassam 10 vezes o LSN, exceto nas formas colestáticas da doença.  Já nas hepatites crônicas a alteração tende a ser discreta.

  • Fosfatase alcalina

A função exata dessa enzima é desconhecida. É encontrada em vários órgãos e tecidos, como placenta, mucosa intestinal e membrana canalicular dos hepatócitos. A atividade da FA sérica é derivada de três fontes: fígado, ossos e trato gastrointestinal.  Os valores normais variam muito.

Em casos de aumento de FA, dosagem sérica de GGT e bilirrubinas podem ser utilizadas para confirmar a origem hepática. Se confirmado, é preciso definir se a colestase é de origem intra ou extra-hepática. Nesse ponto, a realização de imagem abdominal será necessária. Na tabela 2 estão apresentadas as principais de aumento de FA e GGT.

Elevações > 3x o LSN de ambas as enzimas Obstrução extra-hepática
Coledocolitíase
Obstrução tumoral
Colangite esclerosante primária (CEP)
Colangiopatia do HIV
Colestase intra-hepática
Drogas
Colangite biliar primária (CBP)
CEP pequenos ductos
Colestase benigna
Nutrição parenteral total
Doenças infiltrativas
linfomas, metástases
Outras colangiopatias (ex.: colangiopatia por IgG4)
Elevações < 3x o LSN de ambas as enzimas Doenças hepatocelulares
Hepatites: viral, crônica, alcoólica
Cirrose
Doenças infiltrativas
Estados hipoperfusionais: sepse, falência cardíaca
Tabela 2- Causas de aumento de FA e GGT

Algorítimo para investigação de testes hepáticos alterados

A avaliação das alterações dos testes hepáticos deve ser feita em conjunto, levando-se em conta se a alteração é em um único teste ou em conjunto com os demais, o que irá direcionar o raciocínio clínico. Assim, na investigação de um teste hepático alterado, deve-se partir da alteração predominante, ou seja:

  • Alteração de ALT e AST predomina sobre alteração de FA e GGT(Figura 1)
  • Alteração de FA e GGT predomina sobre alteração de AST e ALT(Figura 2)
Figura 1: Investigação da elevação das aminotransferases
Figura 2: Investigação de elevação de FA e GGT.
CPRE: colangiopancreatografia retrógrada endoscópica

Caso o diagnóstico das alterações hepáticas permaneça inconclusivo, pode-se até considerar uma conduta expectante para aumentos discretos de enzimas (até duas vezes o LSN para aminotransferases e até uma vez e meia para FA e GGT), com dosagens dos testes bioquímicos e função hepática a cada 6 meses. Porém, caso as alterações persistam, a biópsia hepática deve ser considerada.

Referências

  1. Newsome PN, Cramb R, et al. Guidelines on the management of abnormal liver blood tests. Gut 2018; 67:6
  2. Pratt DS, Kaplan MM. Evaluation of abnormal liver enzyme results in asymptomatic patiets. N Engl J Med 2000; 342:1266
  3. Ferraz ML. Testes laboratoriais na investigação de doenças hepáticas. In: Mattos AA, Dantas-Correa EB. Tratado de Hepatologia. Rio de Janeiro:Rubio,2010. p.21-28.
  4. Ioannou GN, Implications of elevated serum alanine aminotransferase levels: think outside de liver. Gastroenterol 2008; 135 (6):1851-1854
  5. Imagem de capa Freepik

Como citar este artigo

Medeiros M. Abordagem de pacientes com alterações de testes hepáticos. Gastropedia 2023, Vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/abordagem-de-pacientes-com-alteracoes-de-testes-hepaticos




O papel dos autoanticorpos no diagnóstico da doença celíaca

Já é bastante sabido que a sorologia é uma importante arma no diagnóstico da Doença Celíaca (DC), mas a melhor forma de utilizá-la ainda é uma dúvida bastante recorrente na rotina ambulatorial.

É preciso avaliar bem cada paciente antes de definir a melhor estratégia. Nos pacientes com baixa probabilidade de DC, por exemplo, não é recomendado combinar diversos autoanticorpos. Apesar desta conduta aumentar a sensibilidade, ela diminui a especificidade para o diagnóstico e, por esta razão, não é uma boa opção neste grupo de pacientes.

Por outro lado, quando estamos diante de um paciente com alta probabilidade da doença, mesmo se os autoanticorpos forem negativos, deve-se seguir a investigação com a realização de biópsias duodenais.

Se você ainda não conhece a fisiopatologia da Doença Celíaca, vale a pena conferir esse post (clique aqui) antes de estudar os autoanticorpos relacionados.

Autoanticorpos na Doença Celíaca

Antígeno Anticorpo Sensibilidade % Especificidade %
Gliadina IgA
IgG
85 (57-100)
80 (42-100)
90 (47-94)
80 (50-94)
Endomísio IgA
IgG
95 (86-100)
80 (70-90)
99 (97-100)
97 (95-100)
Transglutaminase tecidual IgA
IgG
98 (78-100)
70 (45-95)
98 (90-100)
95 (94-100)
Gliadina Deaminada IgA
IgG
88 (74-100)
80 (70-95)
90 (80-95)
98 (95-100)
Tabela 1: sensibilidade e especificidade dos autoanticorpos para o diagnóstico de DC.

O anticorpo antigliadina foi usado por décadas no diagnóstico de DC, mas tem sua utilidade bastante limitada atualmente devido sua baixa performance quando comparada aos outros testes disponíveis.

A antitransglutaminase tecidual IgA (anti-tTG IgA) é o autoanticorpo de primeira linha por ser o de maior sensibilidade e estar amplamente disponível. Quanto maior o seu título, maior a chance de DC e maior a lesão duodenal. Títulos maiores que 5 vezes o limite superior da normalidade (LSN) têm um alto valor preditivo positivo.

Devido à possível associação da doença celíaca com a deficiência de IgA, a coleta da anti-tTG IgA deve ser realizada preferencialmente associada à dosagem de IgA total (especialmente nos pacientes com alta probabilidade da doença). Outra opção é associar a pesquisa de um autoanticorpo da classe IgG.

A antigliadina deaminada ou desaminada é um autoanticorpo contra a gliadina que entrou em contato com a enzima transglutaminase tecidual e sofreu o processo de desaminação (liberação do seu grupo amina). A associação da anti-tTG IgA à antigliadina deaminada IgG tem mostrado a melhor performance (sensibilidade e especificidade) para o diagnóstico da DC, mas a pesquisa deste autoanticorpo é mais cara e pouco disponível em nosso meio atualmente. Desta forma, uma boa opção, é a associação com a antitransglutaminase IgG, por exemplo.

O anticorpo antiendomísio IgA é o anticorpo com melhor especificidade (aproximadamente 100%) e por isso tem um importante papel de confirmação diagnóstica (especialmente nos pacientes com anti-tTG IgA com títulos menores que 2 vezes o LSN).

Performance dos testes sorológicos

A performance dos testes sorológicos na prática clínica é pior que em muitos dos grandes trials, pois geralmente os estudos são realizados em população com alta prevalência de DC. Além disso, também é importante lembrar que a performance dependem da manutenção da dieta com glúten. Cerca de 80% dos pacientes negativam os auto-anticorpos em 6 a 12 meses e mais de 90% em 5 anos. Pacientes fracamente positivos podem negativar seus autoanticorpos em poucas semanas de dieta. É pouco frequente que esses autoanticorpos não se normalizem a longo prazo com a dieta sem glúten. Se isso acontecer, é preciso descartar que o consumo de glúten não esteja acontecendo de forma inconsciente.

Na última década , estão sendo realizados muitos estudos com POCTs (point-of-care tests). São testes rápidos que podem ser usados tanto no setor de endoscopia quanto no consultório. Uma metanálise publicada em 2019, encontrou sensibilidade e especificidade de 94 e 94,4% respectivamente, levando em consideração a histologia como gold standard. Apesar desses resultados mostrando alta sensibilidade e especificidade, devido à grande variedade dos trabalhos realizados e resultados conflitantes, ainda se sugere mais estudos antes de usá-los na prática clínica. Por enquanto, o uso dos POCTs ainda deve ficar reservado para locais com acesso limitado a laboratórios.

Também estão sendo realizados estudos com pesquisa de autoanticorpos na saliva para rastreamento em crianças com suspeita de DC. Apesar dos resultados serem favoráveis, mostrando uma opção não invasiva, barata e reprodutível, as evidências até o momento ainda não são suficientes para recomendar o seu uso.

Já a detecção de autoanticorpos nas fezes não parece ser útil no rastreamento da doença, com trabalho mostrando sensibilidade de apenas 10%.

Visto que os autoanticorpos na DC são produzidos no próprio intestino delgado, estão sendo realizados trabalhos com pesquisa de autoanticorpos no sobrenadante da biópsia duodenal. Essa pesquisa parece ter sua importância principalmente no diagnóstico de pacientes em fases iniciais da doença, quando os autoanticorpos séricos ainda podem estar negativos. Mas ainda são necessários mais estudos para confirmar seu papel na prática clínica.

Conclusão

Os autoanticorpos são exames de extrema relevância para o diagnóstico da DC. Porém, não há um algoritmo único para a definição de qual autoanticorpo solicitar. Além de conhecer a sensibilidade e especificidade de cada um deles, é preciso avaliar a probabilidade pré-teste da doença em cada paciente e a acessibilidade aos diferentes exames disponíveis para, assim, definir a melhor estratégia.

Referências

  1. Green P, Stavropoulos S, Panagi SG, Goldstein S. Characteristics of adult celiac disease in the USA: results of a national survey. Am J Gastroenterol 2001;96:126– 131.
  2. Sanders DS. Changing face of adult coeliac disease: experience of a single university hospital in South Yorkshire. Postgrad Med J 2002;78(915):31–33.
  3. Al-Toma A , Volta U, Auricchio R, Castillejo G, Sanders D, Cellier C, Mulder C, Lundin K. European Society for the Study of Coeliac Disease (ESsCD) guideline for coeliac disease and other gluten-related disorders. United European Gastroenterol J . 2019;7(5):583-613.
  4. Singh P, Arora A, Strand T, Leffler D, Mäki M, Kelly C, Ahuja V, Makharia G. Diagnostic Accuracy of Point of Care Tests for Diagnosing Celiac Disease: A Systematic Review and Meta-Analysis. J Clin Gastroenterol 2019;53(7):535-542.
  5. De Leo L, Bramuzzo M, Ziberna F, Villanacci V, Martelossi S, Di Leo G, Zanchi C, Giudici F, Pandullo M, Riznik P, Di Mascio A, Ventura A, Not T. Diagnostic accuracy and applicability of intestinal auto-antibodies in the wide clinical spectrum of coeliac disease. EBioMedicine . 2020 Jan;51:102567

Como citar este artigo

Vilela E. O papel dos autoanticorpos no diagnóstico da doença celíaca. Gastropedia 2023, Vol 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/o-papel-dos-autoanticorpos-no-diagnostico-da-doenca-celiaca




Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder?

A infecção pelo H. pylori e o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) são amplamente aceitos como as principais causas de úlcera péptica. Contudo, com a erradicação mais efetiva, as melhores condições sanitárias e o uso generalizado de antibióticos, a prevalência do H. pylori está caindo e, consequentemente, há um aumento no diagnóstico de úlceras não-H. pylori.

A proporção de úlceras não-H. pylori e não-AINEs/aspirina varia bastante (de 2 a 35%) de acordo a época, o país e a metodologia dos diferentes estudos:

  • Um estudo prospectivo multicêntrico francês publicado há 1 década incluiu 713 pacientes e concluiu que 1 em 5 úlceras não era relacionada nem ao H. pylori nem ao uso de AINEs/aspirina.
  • Um estudo brasileiro retrospectivo publicado em 2015 (De Carli, DM et al), por sua vez, identificou que, de 1997 a 2000, 73,3% das úlceras pépticas eram por H. pylori positivo, 3,5% por AINEs, 12,8% por H. pylori + AINEs e 10,4% idiopáticas, ao passo que, de 2007 a 2010, essa proporção passou, respectivamente, a ser de 46,4%, 13,3%, 19,9% e 20,5%.

Mas quais seriam as outras possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais?

Tabela 1: Possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais não associadas ao Helicobacter pylori e ao uso de AINE

Etiologia Comentário
Neoplasia (Adenocarcinoma, Linfoma, GIST, Leiomiossarcoma) Deve-se sempre considerar a possibilidade de malignidade no caso de úlceras gástricas (inclusive por este motivo devemos sempre biopsiar úlceras gástricas e sempre realizar exame para confirmar a sua cicatrização). O adenocarcinoma é o mais prevalente (95% dos casos). Características mais suspeitas são: fundo necrótico e bordas elevadas e irregulares.
Síndrome de Zollinger-Ellison Secundária a gastrinoma (único ou multifocal, localizado em pâncreas ou delgado). Paciente cursa com dor abdominal + diarreia, com múltiplas úlceras geralmente refratárias ou recorrentes. 25 a 30% dos pacientes que desenvolvem gastrinoma apresentam neoplasia endócrina múltipla tipo 1 (NEM1 – hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise).
Medicações não AINEs (Bifosfonatos, Corticoides, Clopidogrel, inibidores seletivos das recaptação de serotonina, cloreto de potássio) A associação isolada destas medicações com doença ulcerosa é controversa, mas certamente apresentam ação sinérgica com o uso de AINEs
Infecções – Colonização duodenal pelo H. pylori- Helicobacter não-pylori: o mais frequente é o Helicobacter heilmannii- Vírus (herpes simples tipo I, Citomegalovírus, EBV): a biópsia será definidora para o diagnóstico. – Sífilis- Tuberculose

Mastocitose sistêmica Caracterizada por infiltração de mastócitos em muitos tecidos e sintomas de rubor, prurido, taquicardia, dor abdominal e diarreia. Dispepsia, úlceras e duodenite ocorrem em 30 a 50% dos casos. Considera-se que a produção de histamina pelos mastócitos resulte em estimulação excessiva da produção de ácido. A triptase sérica pode estar aumentada. Na biópsia da úlcera, pode-se identificar infiltração da mucosa por mastócitos.
Isquêmicas (Doença arterial ou venosa / Vasculites) As úlceras isquêmicas podem resultar de insuficiência vascular secundária a hipotensão, vasculite ou tromboembolismo. No entanto, elas são raras, pois há uma rica circulação colateral na região. As biópsias podem sugerir isquemia e, em caso de suspeita, uma angiotomografia abdominal pode auxiliar.
Uso de drogas Cocaína, crack e anfetaminas provocam isquemia tecidual por vasoconstricção
Pós-cirúrgico Após gastrectomia subtotal (úlcera de borda anastomótica). A etiologia pode ser multifatorial:- Isquemia local- Tensão anastomótica- Síndrome do antro gástrico retido: quando uma pequena porção da mucosa antral contendo células G permanece na porção proximal do duodeno. Essa mucosa do antro gástrico no final da alça duodenal é estimulada, então, pelo ambiente duodenal alcalino a secretar continuamente gastrina.
Doenças granulomatosas (Crohn, Sarcoidose) – Apenas de 0,3% a 5% dos casos de doença de Crohn envolvem o trato gastrointestinal superior.
– O envolvimento gastrointestinal é muito raro na sarcoidose, mas quando ocorre acomete principalmente o estômago. A sarcoidose gástrica pode se apresentar como úlcera ou como envolvimento difuso (semelhante à linite plástica).
Hiperparatireoidismo O cálcio estimula a liberação da gastrina, mas não se tem certeza sobre a relevância clínica deste efeito.
Gastroenterite eosinofílica É uma condição clínica rara e heterogênea, que pode envolver qualquer segmento do trato gastrointestinal. A patogênese ainda não é bem estabelecida, mas há associação com quadros atópicos, como asma, rinite e eczema. Os exames laboratoriais apresentam eosinofilia no sangue periférico em 70 a 80% dos casos e aumento de IgE sérico em até dois terços dos pacientes. A identificação de densa infiltração de eosinófilos na biópsia é grande marcador diagnóstico.
Úlcera de estresse Úlcera que ocorre devido à hospitalização, principalmente em pacientes na unidade de terapia intensiva.
Doenças crônicas (Cirrose, doença renal crônica, diabetes) Esses pacientes geralmente têm taxas de sucesso de erradicação de H. pylori mais baixas e menor eficácia de IBP do que aqueles sem doenças crônicas
Radioterapia O estômago e o duodeno às vezes estão envolvidos no campo de radiação durante o tratamento de alguns tumores. As úlceras induzidas por radiação são difíceis de tratar e geralmente não cicatrizam com agentes secretores antiácidos convencionais, podendo ser necessários procedimento cirúrgicos.
Idiopática

Como investigar, então, a etiologia da úlcera?

1. Confirmar que realmente não há H. pylori:

é preciso se certificar de que o H. pylori foi pesquisado de forma adequada. Considera-se que a principal causa de úlcera H. pylori negativa é na verdade o erro na detecção do microrganismo. Devemos checar:

  • O exame foi realizado em contexto de sangramento? Se sim, o ideal é repetir. A úlcera péptica hemorrágica pode produzir até 25% de resultados falso negativos no teste da urease;
  • O paciente suspendeu IBP e antibióticos antes da endoscopia? Para fins práticos, deve-se retardar os testes diagnósticos de H. pylori por 4 semanas após o uso de antibióticos, preparações com bismuto, IBP e bloqueadores H2.
  • Qual método utilizado para pesquisa? Se possível, é interessante realizar pelo menos dois testes simultâneos para aumentar a sensibilidade. A pesquisa histológica deve incluir pelo menos duas biópsias de antro e corpo.

2. Confirmar que o paciente realmente não utilizou AINEs:

Muitas vezes, o paciente esquece que pode ter feito uso ou não associa a classe ao medicamento. É importante perguntar ativamente pelos remédios (citar nominalmente) e se não utilizou tratamentos, por exemplo, para cefaleia, artralgia, tratamento dentário ou cólica menstrual. Ervas medicinais chinesas, medicamentos manipulados e produtos de terapias alternativas podem conter compostos anti-inflamatórios, que não são reconhecidos pelos pacientes. Deve-se checar também o uso de AAS, mesmo que em baixas doses.

Se realmente não confirmarmos que o H. pylori foi negativo e que não há relato de AINEs, devemos reforçar alguns pontos importantes na história clínica:

  • Uso de outras medicações;
  • Uso de drogas;
  • Histórico de imunossupressão;
  • Histórico de cirurgias gástricas ou radiação;
  • Histórico de comorbidades, tais como Doença de Crohn, sarcoidose, mastocitose sistêmica, NEM 1 (hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise)
  • Sintomas associados, principalmente diarreia (que pode ser associada a Doença de Crohn, Síndrome de Zollinger-Ellison ou mastocitose sistêmica);
  • Histórico familiar de úlcera ou de NEM 1.

3. Biópsia da úlcera

Apesar de muitas vezes inespecífica, a biópsia da úlcera (principalmente gástrica) é fundamental para a investigação de etiologias menos usuais. A análise imuno-histoquímica pode trazer informações adicionais importantes.

Exames complementares adicionais devem ser realizados conforme suspeita clínica, como por exemplo:
– Gastrina sérica: Se suspeita de Zollinger-Ellison;
– PTH e cálcio: Investigação de hiperparatireoidismo;
– VDRL: Se suspeita de úlcera infecciosa;
– Triptase sérica: Pode auxiliar na suspeita de mastocitose sistêmica.

Em pacientes com úlcera sem etiologia bem estabelecida, recomenda-se repetir a endoscopia em 8 a 12 semanas após tratamento, com novas biópsias se a úlcera ainda estiver presente. Pode ser interessante também biopsiar o duodeno para detectar colonização duodenal isolada de HP.

Conclusão

Teste falso negativo para H. pylori e falha em detectar o uso de AINEs são provavelmente as causas mais comuns de úlceras que aparentemente não apresentam etiologia definida. Uma vez que se excluam essas possibilidades, devemos focar em uma anamnese detalhada e em uma avaliação cuidadosa do anatomopatológico.

Referências

  1. Chung CS, Chiang TH, Lee YC. A systematic approach for the diagnosis and treatment of idiopathic peptic ulcers. Korean J Intern Med 2015;30:559–70. doi:10.3904/kjim.2015.30.5.559.
  2. Kim HU. Diagnostic and treatment approaches for refractory peptic ulcers. Clin Endosc 2015;48:285–90. doi:10.5946/ce.2015.48.4.285.
  3. Charpignon C, Lesgourgues B, Pariente A, Nahon S, Pelaquier A, Gatineau-Sailliant G, et al. Peptic ulcer disease: One in five is related to neither Helicobacter pylori nor aspirin/NSAID intake. Aliment Pharmacol Ther 2013;38:946–54. doi:10.1111/apt.12465.
  4. de Carli DM, Pires RC, Rohde SL, Kavalco CM, Fagundes RB. Diferentes frequências da úlcera péptica relacionadas com H. pylori ou AINES. Arq Gastroenterol 2015;52:46–9. doi:10.1590/S0004-28032015000100010.
  5. Lanas A, Chan FKL. Peptic ulcer disease. Lancet 2017;390:613–24. doi:10.1016/S0140-6736(16)32404-7.

Como citar este artigo

Lages RB. Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder? Gastropedia 2023, Vol 1. Disponivel em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/ulceras-nao-relacionadas-a-helicobacter-pylori-e-anti-inflamatorios-aines-como-proceder/




Patogênese da Doença Celíaca

A doença celíaca é uma doença autoimune causada por uma resposta imunológica anormal aos peptídeos do glúten no intestino delgado superior. É importante entender sua fisiopatologia para saber interpretar os exames sorológicos que auxiliam no diagnóstico da doença celíaca.

O glúten é uma proteina encontrado no trigo, cevada e centeio. No intestino delgado, o glúten é digerido e se decompõe em gliadina.

Glúten (derivado do Latin gluten = cola) é uma proteína amorfa composta pela mistura de cadeias protéicas longas de gliadina e glutenina.

Na doença celíaca, a gliadina consegue atravessar a barreira epitelial no intestino delgado e chegar à lamina própria subjacente. A causa da permeabilidade da gliadina epitelial é incerta, mas pode ser devido a um processo patológico subjacente (por exemplo, infecção) ou alterações nas junções intercelulares (tight junctions).

A Doença Celíaca (DC) resulta da interação do gluten com fatores imunes, genéticos e ambientais.

Resposta imunológica na mucosa

Quando a gliadina entra em contato com a lamina própria, ela é desaminada pela transglutaminase tecidual (TTG). A gliadina desaminada então reage com os receptores HLA-DQ2 ou HLA-DQ8 nas células apresentadoras de antígenos que estimulam a ativação de células T e B, levando à liberação de citocinas, produção de anticorpos e infiltração de linfócitos. Com o tempo, a inflamação causa atrofia vilosa, hiperplasia de criptas nas células epiteliais e linfocitose intraepitelial.

Patogênese da doença celíaca: O glúten é digerido por enzimas luminais e da borda em escova em aminoácidos e peptídeos. Os peptídeos de gliadina induzem mudanças no epitélio por meio do sistema imunológico inato e, na lâmina própria, por meio do sistema imunológico adaptativo. No epitélio, a gliadina danifica as células epiteliais, resultando em aumento da expressão de interleucina-15, que, por sua vez, ativa os linfócitos intraepiteliais. Esses linfócitos se tornam citotóxicos e matam os enterócitos que expressam a proteína de estresse MIC-A em sua superfície. Durante infecções ou como resultado de alterações de permeabilidade, a gliadina entra na lâmina própria, onde é desaminada pela transglutaminase tecidual, permitindo a interação com HLA-DQ2 (ou HLA-DQ8) na superfície de células apresentadoras de antígenos. A gliadina é apresentada aos linfócitos T CD4+ reativos à gliadina por meio de um receptor de célula T, resultando na produção de citocinas que causam danos aos tecidos. Isso leva à atrofia vilosa e hiperplasia de criptas, bem como à ativação e expansão de células B que produzem anticorpos. Figura CCBY4.0 de Kaminarskaya YuА. Celiac disease, wheat allergy, and nonceliac sensitivity to gluten: topical issues of the pathogenesis and diagnosis of gluten-associated diseases. Clinical nutrition and metabolism. 2021;2(3):113–124.

Fatores Genéticos

A ocorrência familiar da doença celíaca sugere que existe uma influência genética na sua patogênese. A doença celíaca não se desenvolve a menos que uma pessoa tenha alelos que codificam para as proteínas HLA-DQ2 ou HLA-DQ8, produtos de dois dos genes HLA.

No entanto, muitas pessoas, a maioria das quais não tem doença celíaca, carregam esses alelos; portanto, sua presença é necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento da doença.

Estudos em irmãos e gêmeos idênticos sugerem que a contribuição dos genes HLA para o componente genético da doença celíaca é inferior a 50%.14 Vários genes não HLA que podem influenciar a suscetibilidade à doença foram identificados, mas sua influência não foi confirmada.

Fatores ambientais

Estudos epidemiológicos sugeriram que Fatores ambientais que têm um papel importante no desenvolvimento da doença celíaca . Estes incluem um efeito protetor da amamentação e a introdução de glúten em relação ao desmame. A administração inicial de glúten antes dos 4 meses de idade está associada a um aumento do risco de desenvolvimento da doença, e a introdução de glúten após os 7 meses está associada a um risco marginal. No entanto, a sobreposição da introdução de glúten com a amamentação pode ser um fator protetor mais importante na minimização do risco de doença celíaca.

A ocorrência de certas infecções gastrointestinais, como a infecção por rotavírus, também aumenta o risco de doença celíaca na infância.

Agora entenda como a pesquisa dos autoanticorpos pode ajudar no diagnóstico da doença celíaca: O papel dos autoanticorpos no diagnóstico da doença celíaca

Referências

  1. Green PH, Cellier C. Celiac disease. N Engl J Med. 2007 Oct 25;357(17):1731-43. doi: 10.1056/NEJMra071600. PMID: 17960014.
  2. Kaminarskaya YuА. Celiac disease, wheat allergy, and nonceliac sensitivity to gluten: topical issues of the pathogenesis and diagnosis of gluten-associated diseases. Clinical nutrition and metabolism. 2021;2(3):113–124.

Como Citar esse artigo

Martins BC. Patogênese da Doença Celíaca. Gastropedia, 2023, vol I. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/intestino/patogenese-da-doenca-celiaca




Esteatose Pancreática – Onde estamos?

Um tema que tem ganhado atenção dos estudiosos de pâncreas ultimamente é a esteatose pancreática. Essa é uma denominação genérica que infere o acúmulo de gordura no pâncreas. Entretanto, existem 2 principais mecanismos para justificar a esteatose pancreática: 

  • O primeiro é chamado é “ fatty replacement”, ou seja, a substituição de células pancreáticas por adipócitos após a morte de células acinares. Isso ocorre em síndromes genéticas e congênitas, como na Fibrose Cística, Shwachman-Diamond e Johanson-Blizzard, além de abuso de álcool, uso de alguns medicamentos (como corticóides, gencitabina, octreotide e rosiglitazona), infecções virais, desnutrição e pós pancreatite aguda necrotizante (a área de necrose muitas vezes é substituída por adipócitos). 
  • O segundo mecanismo é a infiltração gordurosa (ou “fatty infiltration”), na qual os adipócitos se acumulam na glândula, sem haver perda de células acinares. Diferentemente do que acontece com a gordura hepática, que é intracelular, a gordura pancreática se acumula na região interlobular, tanto do parênquima exócrino quanto das ilhotas de parênquima endócrino. Esse mecanismo é o mais associado com a obesidade, DM-2 e coma Síndrome Metabólica.

Epidemiologia

Os dados sobre a incidência e prevalência da esteatose pancreática ainda são escassos, especialmente no ocidente. No oriente, em 16-35% das pessoas tem esse achado em exames de imagem. Em indivíduos submetidos a ultrassom endoscópico, o achado de esteatose pancreática foi em 27% dos pacientes. 

Em metanálise conduzida por Singh e colaboradores de 11 estudos com 12.675 pacientes, a prevalência global foi de 33%. Esses pacientes tiveram 67% maior risco de hipertensão, 108% maior risco de diabetes e 137% maior risco de Síndrome Metabólica. 

A obesidade se mostrou o principal fator de risco para o achado de esteatose pancreática. E alguns estudos também relacionaram o achado de doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) com esteatose pancreática, embora o acúmulo de gordura pancreática preceda o aparecimento de gordura hepática.

Diagnóstico

O diagnóstico definitivo da esteatose pancreática é com a análise histológica, entretanto é raro dispormos de biópsias pancreáticas no contexto de doenças benignas. Portanto se faz necessário a utilização de exames de imagem não invasivos, tais como:

  • Ultrassom trans-abdominal: é um exame bastante disponível e que não utiliza radiação ou contraste. Entretanto, sendo o pâncreas um órgão retro-peritoneal, a avaliação da glândula é prejudicada por interposição gasosa e pelo próprio biotipo do paciente. A característica ultrassonográfica é de um pâncreas hiperecoico, em comparação com os parênquimas hepático e esplênico. 
  • Ultrassom endoscópico: método mais utilizado para diagnóstico e graduação da esteatose pancreática (que pode variar de I a IV, sendo os tipos I e II considerados pâncreas normais, e tipos III e IV considerados pâncreas esteatóticos). A graduação é feita em comparação com o parênquima do baço. Entretanto, há ainda pouca concordância inter observadores, e são necessários estudos multicêntricos e com maior número de participantes para que essa graduação seja validada. 
  • Tomografia de abdome: na tomografia de abdome sem contraste, podemos observar um pâncreas hipoatenuante em relação ao parênquima esplênico. Há uma boa correlação entre os índices tomográficos de atenuação e a histologia. No estudo sem contraste, porém, pode-se perder o diagnóstico de massas pancreáticas que também podem se apresentar hipoatenuantes. 
  • Ressonância magnética: método seguro e eficaz em diagnosticar a esteatose pancreática, pois tem maior acurácia para avaliação de partes moles. Mais estudos são necessários, no entanto, para determinar a quantidade “ normal” de gordura em indivíduos saudáveis

Impacto clínico

Algumas situações relacionadas com a esteatose pancreática estão sendo levantadas nos estudos mais recentes. Ainda existem muitas dúvidas quanto ao real impacto clínico desse achado, mas o que temos de positivo até o momento é:

  • Relação da esteatose pancreática com a obesidade: há correlação de esteatose pancreática e obesidade, assim como redução da esteatose com a perda de peso. Em indivíduos submetidos a cirurgia bariátrica (by-pass ou gastrectomia vertical) houve diminuição significante da gordura pancreática, independente da perda de peso ou controle de comorbidades (como o diabetes, por exemplo). 
  • Relação da esteatose pancreática com o Diabetes mellitus: em indivíduos diabéticos, o achado de esteatose pancreática é comum, e aumenta com o tempo de doença. Entretanto há dúvidas se a presença de esteatose pancreática pode potencializar a disfunção das células beta pancreáticas, e contribuir para uma piora do controle glicêmico. 
  • Relação da esteatose pancreática e da Doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD): ao que parece, a esteatose pancreática precede a esteatose hepática nos pacientes com Síndrome metabólica. Quase a totalidade de indivíduos com NAFLD (97%) apresentam infiltração gordurosa pancreática concomitante. 
  • Relação de esteatose pancreática e câncer de pâncreas: é sabido que obesidade é considerada fator de risco para adenocarcinoma pancreático e, ao que parece, a infiltração gordurosa no pâncreas tem papel na carcinogênese, independente da obesidade. Esse achado deve-se a lipotoxicidade e liberação de substâncias resultantes do estresse oxidativo, como radicais livres de oxigênio. No pâncreas gorduroso é maior a incidência de neoplasia intra-epitelial (PanIN) e de adenocarcinoma ductal invasivo. Sugere-se, inclusive, que pacientes com esteatose pancreática teriam maior gravidade do acometimento, com mais metástases linfonodais. 

Já outras associações não são possíveis de serem feitas no momento, como: associação com pancreatite aguda, pancreatite crônica ou fibrose pancreática, insuficiência pancreática exócrina ou aparecimento de fístula pancreática no pós operatório. Essas relações ainda são controversas, e necessitam de maiores estudos.

Referências

  1. Sepe, PS et al. A prospective evaluation of fatty pancreas by using EUS. Gastrointestinal Endoscopy, 2011. doi:10.1016/j.gie.2011.01.015
  2. Majumder, S et al. Fatty Pancreas: Should We Be Concerned? Pancreas. 2017 ; 46(10): 1251–1258. doi:10.1097/MPA.0000000000000941.
  3. Catanzaro, R et al. Exploring the metabolic syndrome: Nonalcoholic fatty pancreas disease. World J Gastroenterol 2016 September 14; 22(34): 7660-7675. DOI: 10.3748/wjg.v22.i34.7660
  4. Chang, ML. Fatty Pancreas-Centered Metabolic Basis of Pancreatic Adenocarcinoma: From Obesity, Diabetes and Pancreatitis to Oncogenesis. Biomedicines 2022, 10, 692. https://doi.org/10.3390/biomedicines10030692.

Como citar este artigo

Marzinotto, M. Esteatose Pancreática – Onde estamos? Gastropedia 2021, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreas/esteatose-pancreatica-onde-estamos




Investigação de Hepatite Medicamentosa (Drug-Induced Liver Injury – DILI): principais conceitos e linha de raciocínio

Aspectos Gerais

A hepatite medicamentosa (Drug-induced liver injury, DILI) é um dos quadros mais desafiadores na Hepatologia devido a ampla disponibilidade de medicações, suplementos e ervas com potencial de hepatoxicidade heterogêneo, variando desde leve elevação de enzimas hepáticas até hepatite aguda pronunciada e insuficiência hepática fulminante (IHF).

Tradicionalmente, DILI pode ser classificada como intrínseca (ou direta) versus idiossincrásica. A primeira é tipicamente dose-relacionada e ocorre na maioria dos pacientes expostos a uma droga, ocorrendo dentro de um curto espaço de tempo (horas a dias). Já DILI idiossincrásica usualmente não é dose-dependente, ocorre em uma menor proporção de indivíduos expostos (imprevisível) e apresenta uma latência variável entre dias a semanas. 

Um pré-requisito comum para DILI intrínseca e idiossincrásica é o metabolismo de drogas lipofílicas no fígado, gerando metabólitos reativos que levam à ligação covalente, estresse oxidativo mitocondrial e do retículo endoplasmático. Tais consequências podem resultar (a) diretamente em necrose ou apoptose [intrínseca] ou (b) em resposta imune adaptativa [idiossincrásica] em indivíduos geneticamente susceptíveis. As principais drogas relacionadas com DILI estão na Tabela 1.

Tabela 1. Drogas associadas com DILI intrínseca e idiossincrásica

Padrões de DILI

Existem 3 padrões de DILI avaliados pela elevação de enzimas hepáticas:

  • Hepatocelular:  se ALT isolada ≥ 5x limite superior da normalidade (LSN)  ou  Fator R ≥ 5
  • Colestático: se FA isolada ≥ 2x LSN  ou  Fator R ≤ 2
  • Misto: Fator R > 2  a  < 5

                                                                                  Clique para calcular

Recomendação

DILI deve ser classificada como hepatocelular, colestática ou mista de acordo com o padrão de elevação de enzimas hepáticas da primeira dosagem laboratorial em relação ao evento clínico. Grau B (EASL, 2019).

Chás, Ervas e Fitoterápicos

A hepatotoxicidade por chás, ervas, fitoterápicos e suplementos está relacionada a diferentes fatores que coexistem: falta de adequada identificação da planta, seleção da parte errada da planta medicinal, armazenamento inadequado modificando o produto nativo, adulteração durante o processamento e rotulagem incorreta do produto. 

Outro desafio é a falta de clareza na real composição de preparações à base de plantas, em especial, de multicompostos. Ressalta-se ainda que um produto fitoterápico pode ser contaminado por compostos tóxicos que levam à hepatotoxicidade, como contaminação por metais pesados, pesticidas, herbicidas ou até mesmo microoganismos. 

Destacam-se alguns fitoterápicos que possuem nível de evidência de hepatotoxicidade:

  • Plantas que contém alcaloides pirrolizidínicos (espécies Heliotropium, Senecia, Crotalaria, Symphytum e Gynura)
  • Germander (“cavalinha”)
  • Kava-kava (Piper methysticum)
  • Chá verde (Camellia sinensis)
  • Sena (Cassia angustifolia)
  • Sacaca (Croton cajucara benth)
  • Chaparral (Larrea tridentata)
  • Poejo (Mentha pulegium)
  • Cáscara sagrada (Rhamnus purshiana)
  • Erva de São Cristóvão (Cimicifuga racemosa)
  • Noni (Morinda citrifolia), entre outras

Dentre os suplementos alimentares, destacam-se:

  • Contém ácido úsnico (LipoKinetix, UCP-1, OxyElite)
  • Hydroxycut
  • Ácido linenoléico
  • Plethoryl (vitamina A e hormônios tireoidianos)
  • Esteróides anabolizantes androgênicos

Recomendação

Suplementos alimentares e fitoterápicos podem ser considerados como potenciais agentes causadores de lesão hepática. Grau C (EASL, 2019).

Causalidade – Escores

Alguns escores podem ser utilizados na avaliação de causalidade para DILI, de forma que os critérios de cronologia (início e suspensão da droga), curso da reação, fatores de risco, exclusão de outras causas, manifestações extra-hepáticas, reexposição, entre outros aspectos, são pontuados e classificados em exclusão ou diagnóstico possível, provável ou definitivo para DILI:

  • Council for International Organizations of Medical Sciences Scale/Roussel-Uclaf-Causality-Assessment-Method (CIOMS/RUCAM);
  • Clinical Diagnostic Scale/Maria and Victorino Scale (CDS/M&V scale);
  • Digestive Disease Week-Japan (DDW-J);
  • DILIN Expert Opinion.

Deve-se ter em mente, entretanto, que os escores não substituem os julgamento clínico, sendo, na realidade, uma tradução, em pontuação quantitativa, da suspeita clínica de DILI.

Avaliação Laboratorial para Exclusão de Causas Alternativas

O diagnóstico de DILI baseia-se na exclusão de causas alternativas de agressão hepática. O padrão de lesão hepática pode auxiliar na investigação inicial para descartar as principais causas de hepatite e colestase (Figura 1). 

Em adição, idade e comorbidades, hábitos individuais dos pacientes e características regionais de doenças infecciosas que podem afetar o fígado podem guiar na avaliação (Tabela 2).

A exclusão de doença de Wilson com dosagem de ceruloplasmina deve ser realizada, em especial, em pacientes com menos de 40 anos.

Tabela 2. Diagnóstico de exclusão na investigação de DILI

Recomendação

A ultrassonografia de abdome deve ser realizada em todos os pacientes com suspeita de DILI. Exame de imagem adicional poderá ser indicado de acordo com o contexto clínico-laboratorial. Grau B (EASL, 2019).

Recomendação

A biópsia hepática pode ser considerada em pacientes selecionados suspeitos para DILI, de forma que a histologia hepática possa fornecer informações que embasem o diagnóstico de DILI ou uma alternativa (Grau D) ou quando os exames levantarem a possibilidade de HAI (Grau C); EASL, 2019.

Conclusão

Em resumo, o principal passo no manejo dos casos de DILI é a suspensão de todas as drogas não-essenciais, incluindo formulações, suplementos, ervas e chás. Desta forma, a maioria dos pacientes cursará com recuperação espontânea clínica e/ou laboratorial, sem a necessidade de medidas adicionais.

Pacientes com evidência clínica ou laboratorial de IHF, como encefalopatia hepática ou coagulopatia, devem ser hospitalizados. 

No geral, terapia medicamentosa fica reservada para situações específicas, como n-acetilcisteína na intoxicação por paracetamol ou DILI idiossincrásica com IHF ou corticóides, se houver a possibilidade de hepatite autoimune ou na presença de componentes de hipersensibilidade.

A reexposição à droga (“rechallenge”) é a dado mais definitivo para o diagnóstico de DILI (ALT>3xLSN), mas deve ser avaliada caso a caso, conforme a gravidade do episódio de DILI e necessidade da terapia medicamentosa (exemplo: agentes quimioterápicos ou tuberculostáticos), sob supervisão especializada e rigorosa.

Referências

  1. European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu, Clinical Practice Guideline Panel: Chair:, Panel members, et al. EASL clinical practice guidelines: drug-induced liver injury. J Hepatol 2019;70:1222– 61.
  2. Brennan PN, Cartlidge P, Manship T, Dillon JF. Guideline review: EASL clinical practice guidelines: drug-induced liver injury (DILI). Frontline Gastroenterol. 2021 Jul 29;13(4):332-336. doi: 10.1136/flgastro-2021-101886. PMID: 35722609; PMCID: PMC9186030. 
  3. Chalasani NP, Maddur H, Russo MW, Wong RJ, Reddy KR; Practice Parameters Committee of the American College of Gastroenterology. ACG Clinical Guideline: Diagnosis and Management of Idiosyncratic Drug-Induced Liver Injury. Am J Gastroenterol. 2021 May 1;116(5):878-898. doi: 10.14309/ajg.0000000000001259. PMID: 33929376.
  4. García-Cortés M, Stephens C, Lucena MI, Fernández-Castañer A, Andrade RJ. Causality assessment methods in drug induced liver injury: strengths and weaknesses. J Hepatol. 2011 Sep;55(3):683-691. doi: 10.1016/j.jhep.2011.02.007. Epub 2011 Feb 22. PMID: 21349301.
  5. Bessone F, García-Cortés M, Medina-Caliz I, Hernandez N, Parana R, Mendizabal M, Schinoni MI, Ridruejo E, Nunes V, Peralta M, Santos G, Anders M, Chiodi D, Tagle M, Montes P, Carrera E, Arrese M, Lizarzabal MI, Alvarez-Alvarez I, Caballano-Infantes E, Niu H, Pinazo J, Cabello MR, Lucena MI, Andrade RJ. Herbal and Dietary Supplements-Induced Liver Injury in Latin America: Experience From the LATINDILI Network. Clin Gastroenterol Hepatol. 2022 Mar;20(3):e548-e563. doi: 10.1016/j.cgh.2021.01.011. Epub 2021 Jan 9. PMID: 33434654.

Como citar este artigo

Oti, KST. Investigação de Drug-Induced Liver Injury (DILI): principais conceitos e linha de raciocínio. Gastropedia 2023, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/investigacao-de-hepatite-medicamentosa