ESOPEC e MATTERHORN: dois estudos que devem transformar a prática clínica no tratamento dos tumores esofagogástricos
Recentemente, foram divulgados os resultados de dois grandes estudos com potencial para transformar o paradigma do tratamento dos adenocarcinomas da transição esofagogástrica (TEG) e do estômago. Nesta postagem, discutimos os principais achados dos estudos ESOPEC e MATTERHORN e suas implicações futuras.
O ESOPEC foi desenhado para comparar duas estratégias consagradas no tratamento dos tumores da TEG e do esôfago distal:
CROSS trial: demonstrou benefício da quimiorradioterapia neoadjuvante (carboplatina, paclitaxel e radioterapia 41,4 Gy) seguida de cirurgia, com foco em controle loco-regional. (1)
FLOT4 trial: mostrou que o esquema de quimioterapia perioperatória FLOT era superior ao ECF (Epirrubicina, cisplatina, 5-FU), especialmente em adenocarcinomas gástricos e da TEG, visando o controle sistêmico de micrometástases. (2)
Nota: ECF Foi o esquema usado no MAGIC trial (NEJM, 2006), que demonstrou benefício da quimioterapia perioperatória com ECF em comparação à cirurgia isolada para câncer gástrico e da junção esofagogástrica.
Nota: FLOT: 4 ciclos antes e 4 ciclos após a cirurgia. 5-Fluorouracil (5-FU), Leucovorin, Oxaliplatina, Docetaxel. Ciclo a cada 2 semanas (14 dias).
Com os bons resultados demonstrados no estudo FLOT que foi publicado posteriormente ao CROSS, surgiu a dúvida: ainda é necessário adicionar radioterapia à quimioterapia moderna? Essa questão é ainda mais relevante em tumores Siewert II e III, tratados frequentemente com gastrectomia total, onde a realização da anastomose em campo previamente irradiado pode gerar receios técnicos aos cirurgiões.(3)
1.1 Desenho e resultados do ESOPEC
Estudo de fase III, multicêntrico, com 438 pacientes com adenocarcinoma localmente avançado da TEG (Siewert I–III) ou esôfago distal, randomizados para:
Grupo A (FLOT): 4 ciclos de quimioterapia antes e após a cirurgia.
Grupo B (CROSS): quimiorradioterapia neoadjuvante seguida de cirurgia.
Os resultados foram publicados em janeiro de 2025 no New England Journal of Medicine.(4)
Com mediana de seguimento de 55 meses, a sobrevida global em 3 anos foi de 57,4% no grupo FLOT vs. 50,7% no grupo CROSS (HR = 0,70; IC95%: 0,53–0,92; p= 0,01), favorecendo o FLOT.
1.2 Reflexões após o ESOPEC
O CROSS utiliza doses menos intensas de quimioterapia e, em geral, é mais bem tolerado, podendo ser preferível em pacientes idosos ou frágeis. A tolerância ao FLOT na prática clínica, em pacientes que não são tão bem selecionados quanto os de um estudo clínico, ainda é um desafio.
O CROSS mostrou melhor controle loco-regional, o que pode ser relevante em tumores volumosos — realidade frequente em países como o Brasil.
O estudo TOPGEAR (FLOT/ECF com ou sem radioterapia) não demonstrou ganho significativo de sobrevida com a radioterapia, mas evidenciou aumento na resposta patológica completa e melhor controle local — sugerindo benefício em subgrupos específicos.(5)
O ESOPEC não avaliou o uso de imunoterapia adjuvante (como nivolumabe, aprovado no pós-operatório após CROSS no estudo CheckMate -577). Isso levanta a hipótese: CROSS + imunoterapia poderia superar o FLOT?(6)
Essa dúvida começou a ser respondida com os resultados do MATTERHORN.
2. MATTERHORN
O caminho da imunoterapia no câncer gástrico seguiu a progressão clássica: da doença metastática para cenários adjuvantes e, finalmente, perioperatórios.
Vale destacar que o primeiro grande estudo a avaliar o uso de imunoterapia no cenário perioperatório foi o KEYNOTE-585, que investigou o uso de pembrolizumabe associado à quimioterapia baseada em cisplatina (e não ao esquema FLOT) em pacientes com câncer gástrico ou da junção esofagogástrica ressecável. Esse estudo demonstrou melhor taxa de resposta patológica completa com a adição de pembrolizumabe em comparação ao placebo. No entanto, não houve benefício significativo em sobrevida livre de eventos, o que limitou sua adoção imediata.(7)
2.1 Desenho e resultados do MATTERHORN
O MATTERHORN, estudo de fase III, multinacional e randomizado, testou a adição de durvalumabe ao esquema FLOT no cenário perioperatório e teve seus resultados publicados em maio de 2025 no New England Journal of Medicine.(8)
Desenho do estudo:
Pacientes com adenocarcinoma ressecável de estômago ou TEG.
Randomização 1:1 para:
FLOT + durvalumabe
FLOT + placebo
Resultados:
Resposta patológica completa: 19,2% no grupo durvalumabe vs. 7,2% no grupo placebo (RR = 2,69; IC95%: 1,86–3,90).
Sobrevida livre de eventos em 2 anos: 67,4% com durvalumabe vs. 58,5% com placebo (HR = 0,71; IC95%: 0,58–0,86; p<0,001).
A taxa de eventos adversos de grau 3–4 foi semelhante entre os grupos. Eventos imuno-mediados foram mais frequentes com durvalumabe, mas sem impacto na realização da cirurgia ou tratamento adjuvante.
Um dos pontos fortes do MATTERHORN foi sua abrangência global, incluindo centros na Europa, Américas e Ásia. No Brasil, 8 centros participaram do estudo, o que fortalece sua aplicabilidade na nossa realidade.
Considerações finais
A incorporação da imunoterapia com durvalumabe no cenário perioperatório representa um avanço relevante.
Os resultados do MATTERHORN consolidam a tendência de integração entre quimioterapia e imunoterapia, buscando melhores desfechos oncológicos.
Entretanto, o custo ainda representa um desafio à incorporação dessa estratégia no Brasil.
Referências
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Shitara K, Rha SY, Wyrwicz LS, Oshima T, Karaseva N, Osipov M, et al. Neoadjuvant and adjuvant pembrolizumab plus chemotherapy in locally advanced gastric or gastro-oesophageal cancer (KEYNOTE-585): an interim analysis of the multicentre, double-blind, randomised phase 3 study. Lancet Oncol. 2024;25(2):212-24.
Janjigian YY, Al-Batran SE, Wainberg ZA, Muro K, Molena D, Van Cutsem E, et al. Perioperative Durvalumab in Gastric and Gastroesophageal Junction Cancer. N Engl J Med. 2025.
Tratamento Quimioterápico dos Tumores Esofagogástricos: do ECF ao FLOT e à Imunoterapia
O manejo dos tumores da transição esofagogástrica (TEG) e do estômago localmente avançados evoluiu significativamente nas últimas duas décadas. Diversos estudos randomizados definiram os esquemas quimioterápicos mais eficazes no cenário perioperatório, estabelecendo o papel da quimiorradioterapia e, mais recentemente, da imunoterapia. A seguir, revisitamos os estudos que moldaram esse panorama:
O que era o ECF?
O esquema ECF combinava:
Epirrubicina
Cisplatina
5-Fluorouracil (5-FU)
Foi o padrão estabelecido após o MAGIC trial, publicado em 2006, que demonstrou melhora da sobrevida com quimioterapia perioperatória em relação à cirurgia isolada.
O estudo MAGIC
Publicação: NEJM, 2006 Desenho: fase III, randomizado População: pacientes com adenocarcinoma gástrico ou da junção esofagogástrica Intervenção: cirurgia isolada vs. quimioterapia perioperatória com ECF (3 ciclos antes e 3 após a cirurgia)
Resultado:
Sobrevida global mediana: 24 meses (ECF) vs. 20 meses (cirurgia isolada)
HR 0,75; p = 0,009
Conclusão: o estudo consolidou o uso da quimioterapia perioperatória como novo padrão na época.
O protocolo CROSS
O CROSS trial (Van Hagen et al., NEJM, 2012) marcou uma virada no tratamento dos tumores do esôfago e da TEG, principalmente do tipo escamoso e adenocarcinomas Siewert I.
Intervenção:
Carboplatina (AUC 2) + Paclitaxel (50 mg/m²), 1x por semana por 5 semanas
Radioterapia: 41,4 Gy em 23 frações
Cirurgia: 4 a 6 semanas após término da RQT
Sem quimioterapia adjuvante
Resultado:
Sobrevida global mediana: 49 meses (RQT + cirurgia) vs. 24 meses (cirurgia isolada)
HR = 0,657; p = 0,003
Conclusão: CROSS estabeleceu a quimiorradioterapia neoadjuvante como padrão para tumores do esôfago distal e TEG proximal.
O esquema FLOT
Diante da baixa eficácia do ECF, o estudo FLOT4-AIO introduziu o esquema FLOT, mais intenso, mas com resultados superiores.
FLOT:
5-FU: 2.600 mg/m² em infusão contínua por 24h (dia 1)
Leucovorin: 200 mg/m² (dia 1)
Oxaliplatina: 85 mg/m² (dia 1)
Docetaxel: 50 mg/m² (dia 1)
Ciclo a cada 14 dias
4 ciclos antes e 4 ciclos após a cirurgia (total de 8)
FLOT4 trial (Lancet, 2019):
Comparou FLOT vs. ECF/ECX
Sobrevida global mediana:
FLOT: 50 meses
ECF: 35 meses
HR = 0,77; p = 0,012
Conclusão: FLOT tornou-se o novo padrão perioperatório para tumores gástricos e da TEG ressecáveis.
TOPGEAR Trial
Estudo fase II/III que avaliou se adicionar quimiorradioterapia ao esquema perioperatório poderia melhorar os resultados em câncer gástrico e TEG.
Braço A: quimioterapia perioperatória (FLOT ou ECF)
Sobrevida livre de eventos em 2 anos: 67,4% (durvalumabe) vs. 58,5% (placebo)
HR = 0,71; p < 0,001
Conclusão: consolida a tendência de integração entre quimioterapia e imunoterapia no cenário perioperatório.
Comparativo dos principais estudos
Estudo
Situação clínica
Intervenção
Resultado relevante
MAGIC
Perioperatório
ECF vs. cirurgia
ECF ↑ sobrevida vs. cirurgia
CROSS
Neoadjuvante
QT + RT → cirurgia
↑ sobrevida global vs. cirurgia
FLOT4-AIO
Perioperatório
FLOT vs. ECF
FLOT superior em SG e resposta patológica
TOPGEAR
Perioperatório
FLOT ± RT
RT ↑ resposta patológica (fase II)
CheckMate-577
Adjuvante
Nivolumabe vs. placebo
↑ sobrevida livre de doença
KEYNOTE-585
Perioperatório
Pembro + QT vs. QT
↑ resposta patológica, sem ganho em SLE
MATTERHORN
Perioperatório
FLOT + durvalumabe vs. FLOT
↑ resposta patológica e sobrevida livre de eventos
Referências
MAGIC Trial – Cunningham D, Allum WH, Stenning SP, et al. Perioperative chemotherapy versus surgery alone for resectable gastroesophageal cancer.N Engl J Med. 2006 Jul 6;355(1):11-20.
CROSS Trial – Van Hagen P, Hulshof MCCM, van Lanschot JJB, et al. Preoperative chemoradiotherapy for esophageal or junctional cancer.N Engl J Med. 2012 May 31;366(22):2074-2084.
FLOT4-AIO Trial -Al-Batran SE, Homann N, Pauligk C, et al. Perioperative chemotherapy with FLOT versus ECF/ECX for resectable gastric or gastro-oesophageal junction adenocarcinoma (FLOT4-AIO): a multicentre, open-label, phase 3 trial.Lancet. 2019 May 25;393(10184):1948–1957.
TOPGEAR Trial (fase II) – Leong T, Smithers BM, Haustermans K, et al. TOPGEAR: a randomized phase II trial of preoperative chemotherapy with or without chemoradiation for resectable gastric cancer.Lancet Oncol. 2021 Jan;22(1):e1-e15.
CheckMate-577 – Kelly RJ, Ajani JA, Kuzdzal J, et al. Adjuvant Nivolumab in Resected Esophageal or Gastroesophageal Junction Cancer.N Engl J Med. 2021 Apr 1;384(13):1191–1203.
KEYNOTE-585 (Interim) – Shitara K, van Cutsem E, Ajani JA, et al. Neoadjuvant and adjuvant pembrolizumab plus chemotherapy in locally advanced gastric or gastro-oesophageal cancer (KEYNOTE-585): an interim analysis of the multicentre, double-blind, randomised phase 3 study.Lancet Oncol. 2024 Feb;25(2):212–224.
MATTERHORN – Janjigian YY, Al-Batran SE, Wainberg ZA, Muro K, Molena D, Van Cutsem E, et al. Perioperative Durvalumab in Gastric and Gastroesophageal Junction Cancer. N Engl J Med. 2025.
FIRE: Uma Síndrome Emergente Associada à Esofagite Eosinofílica
A esofagite eosinofílica (EoE) é uma condição esofágica crônica, de origem imunológica, associada à inflamação do tipo 2 e caracterizada por eosinofilia esofágica. Frequentemente, está associada a outras condições atópicas do tipo 2, como dermatite atópica, alergia alimentar mediada por IgE e rinite alérgica.
A EoE é caracterizada por sintomas de disfunção motora esofágica associados à infiltração eosinofílica da mucosa esofágica em resposta a alérgenos alimentares e/ou ambientais. O diagnóstico consiste na contagem de mais de 15 eosinófilos por campo de grande aumento em biópsias esofágicas, após a exclusão de outras causas comuns de eosinofilia esofágica.
E o que é a síndrome FIRE?
A Síndrome FIRE (Food-Induced Immediate Response of the Esophagus), por sua vez, é uma nova entidade clínica observada em pacientes com esofagite eosinofílica (EoE), caracterizada por uma resposta de hipersensibilidade imediata após o consumo de certos alimentos ou bebidas, com sintomas agudos e reprodutíveis.
Fisiopatologia
Embora ainda não completamente elucidada, discute-se algumas possibilidade, tais como:
Hipersensibilidade local mediada por IgE.
Ativação de mastócitos na mucosa e camada muscular esofágica.
Barreira epitelial comprometida facilitando a entrada de alérgenos.
Curiosamente, os principais alimentos gatilho não coincidem com alguns dos principais desencadeadores da EoE (trigo, ovo e soja), o que sugere que os mecanismos de FIRE podem ser distintos – ou até sobrepostos – aos da inflamação eosinofílica tradicional.
FIRE é diferente da disfagia clássica da EoE e da síndrome da alergia oral
Embora alguns sintomas possam lembrar a síndrome de alergia oral (SAO), o FIRE é distinto: a reação se localiza no esôfago e não na orofaringe. Além disso, os pacientes reconhecem claramente a diferença entre FIRE e episódios de disfagia ou impactação alimentar comuns na EoE.
Característica
FIRE
EoE clássica
SAO
Início após alimentação
Imediato (<5min)
Variável (disfagia tardia)
Imediato (<5min)
Duração dos sintomas
Minutos até 2h
Prolongado, crônico
Minutos
Localização
Esofágica (retroesternal)
Esofágica
Orofaringe (lábios, língua e palato)
Sintomas principais
Queimação, estreitamento, engasgo, ansiedade
Disfagia, impactação
Prurido oral, formigamento
Desencadeantes comuns
Frutas, vinho, laticínios e nozes
Leite, trigo, ovo e soja
Frutas e vegetais frescos
Associação com atopias
Frequente
Frequente
Muito frequente
Endoscopia e biópsia
Pode ser normal
Eosinofilia esofágica (>15 eos/CGA)
Normal
Tabela 1. Principais diferenças entre FIRE (Food-induced Immediate Response of the Esophagus, SAO (síndroma da alergia oral) e EoE (Esofagite eosinofílica)
Epidemiologia e diagnóstico
Até 40% dos pacientes com EoE podem apresentar quadros sugestivos de síndrome FIRE
FIRE pode preceder ou ocorrer independentemente da atividade da EoE.
Ainda não há critérios diagnósticos padronizados; o diagnóstico é clínico e baseado na reprodutibilidade dos sintomas.
Algoritmo de avaliação de sintomas esofágicos pós alimentares
Conclusão
A síndrome FIRE representa uma nova dimensão dos sintomas esofágicos em pacientes com EoE, exigindo atenção especial dos profissionais de saúde, especialmente gastroenterologistas, alergistas e nutricionistas. Compreender esse fenômeno pode melhorar o cuidado clínico, otimizar estratégias de eliminação alimentar e, quem sabe, lançar luz sobre os mecanismos imunes da EoE.
Mais estudos são necessários para estabelecer critérios diagnósticos, entender sua fisiopatologia e desenvolver tratamentos eficazes.
Referências
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Ali S, Cernat MC, Vintilă MR, Berghea EC, Bumbăcea RS. Shedding Light on FIRE Syndrome: An Overview of a Novel Condition in Eosinophilic Esophagitis. Applied Sciences. 2025; 15(11):6375. https://doi.org/10.3390/app15116375
Biedermann L, Holbreich M, Atkins D, Chehade M, Dellon ES, Furuta GT, Hirano I, Gonsalves N, Greuter T, Gupta S, Katzka DA, De Rooij W, Safroneeva E, Schoepfer A, Schreiner P, Simon D, Simon HU, Warners M, Bredenoord AJ, Straumann A. Food-induced immediate response of the esophagus-A newly identified syndrome in patients with eosinophilic esophagitis. Allergy. 2021 Jan;76(1):339-347. doi: 10.1111/all.14495.
A ausência de contratilidade (AC) é um distúrbio motor esofágico raro, com prevalência estimada em 3% a 4% dos pacientes submetidos à manometria esofágica de alta resolução (MAR) e em 5% a 7% entre aqueles avaliados por disfagia.
De acordo com a Classificação de Chicago versão 4.0 (relembre aqui!), a ausência de contratilidade é definida como 100% de peristalse falha na presença de relaxamento adequado da junção esofagogástrica (ver Figura 1).
Figura 1 – Manometria de Alta Resolução demonstrando ausência de contratilidade esofágica.
Apresentação clínica
Os sintomas da ausência de contratilidade são variados e, muitas vezes, inespecíficos. As principais queixas incluem:
Regurgitação (68%)
Pirose (40% a 82%)
Disfagia (30% a 66%)
Outras manifestações possíveis são:
Dor torácica não cardíaca (17% a 21%)
Eructações (57%)
Náuseas e vômitos (23% a 33%)
Tosse recorrente (49%)
Perda ponderal (24%)
Condições associadas
A ausência de contratilidade é considerada uma “descendente” do chamado “esôfago esclerodérmico”, previamente descrito pela manometria convencional. Embora não seja um achado específico, é fortemente associado a doenças do colágeno, especialmente à esclerose sistêmica.
Distúrbios motores esofágicos estão presentes em até 80%–90% dos pacientes com esclerose sistêmica, sendo que a ausência de contratilidade representa 51% a 60% desses casos, e a motilidade esofágica ineficaz (MEI), 18% a 19%. A esclerose sistêmica é uma doença autoimune sistêmica complexa, que cursa com disfunção endotelial e excesso de deposição de colágeno, comprometendo múltiplos órgãos, inclusive o trato gastrointestinal
Além das doenças reumatológicas, outras condições frequentemente associadas à ausência de contratilidade esofágica incluem:
Doença do refluxo gastroesofágico (DRGE): até 36% dos pacientes com AC têm história de DRGE. A prevalência de esofagite erosiva nesses casos varia entre 31% e 65%. A hipomotilidade pode ser causa ou consequência da agressão esofágica crônica.
Cirurgias gástricas prévias: cerca de 14,9% dos pacientes com AC já realizaram cirurgias gástricas, como fundoplicatura ou procedimentos bariátricos.
Doença pulmonar intersticial: é comum encontrar AC em pacientes candidatos a transplante pulmonar, tanto pela doença de base (ex: colagenose) quanto por alterações mecânicas, como a tração lateral gerada pela fibrose. Há relatos de melhora da motilidade esofágica após transplante.
Uso de álcool: estudos sugerem maior prevalência de consumo alcoólico em pacientes com AC comparados a controles, embora a relevância clínica dessa associação ainda demande mais evidências.
Diagnóstico
O exame de escolha é a manometria esofágica de alta resolução.
Segundo a Classificação de Chicago v4.0, o diagnóstico de ausência de contratilidade exige:
Relaxamento adequado do esfíncter esofagiano inferior (IRP < 15 mmHg)
100% de deglutições com falha peristáltica (DCI < 100 mmHg·s·cm)
A ausência de contratilidade pode representar um estágio precoce da acalasia tipo I. Em um seguimento médio de 20,5 meses, 6,8% dos pacientes inicialmente diagnosticados com AC evoluíram para acalasia. Isso se deve, possivelmente, à progressiva degeneração neuronal, que pode comprometer o corpo esofágico antes do esfíncter esofagiano inferior. Além disso, o valor do IRP pode ser afetado por erros técnicos ou por variações fisiológicas.
Em pacientes com disfagia significativa e IRP limítrofe (10–15 mmHg), a acalasia tipo I deve ser considerada no diagnóstico diferencial. Estudos mostram que até 25% dos pacientes com ausência de contratilidade ou acalasia tipo I podem ser incorretamente classificados apenas com base no IRP. Alguns pacientes com aperistalse e IRP normal (< 15 mmHg) apresentam na verdade história clínica, aparência radiográfica e achados endoscópicos mais consistentes com acalasia. Por isso, testes adicionais são fundamentais para diferenciar essas condições – tema que será abordado em uma próxima publicação neste site.
Tratamento
O tratamento da ausência de contratilidade é desafiador, pois não há terapias farmacológicas eficazes para melhorar o vigor contrátil esofágico. O manejo deve ser individualizado, com foco nos sintomas predominantes e e no tratamento de qualquer refluxo concomitante, quando presente.
Medidas comportamentais úteis incluem:
Fracionar e mastigar bem os alimentos
Associar alimentos sólidos com líquidos
Comer em posição ereta
Evitar decúbito por algumas horas após as refeições
Terapias farmacológicas:
Prucaloprida: pode aumentar a amplitude das contrações primárias do esôfago em pacientes com DRGE e ajudar no controle de sintomas em casos associados com gastroparesia ou constipação, mas não é considerada opção de tratamento para hipomotilidade esofágica;
Buspirona: mostrou aumento da contratilidade esofágica em pacientes com esclerose sistêmica, mas não se mostrou superior ao placebo em alívio sintomático.
Neuromoduladores: podem ajudar quando a dor torácica é o sintoma predominante.
Tratamento da DRGE associada:
Deve-se realizar controle agressivo da acidez com IBPs em altas doses (ou bloqueadores ácidos competitivos de canais de potássio).
Fundoplicatura: tem eficácia limitada (50%–60%) e pode agravar a disfagia em até 70% dos pacientes com esclerose sistêmica. Fundoplicatura parcial pode ser discutida no caso de sintomas refratários.
Bypass gástrico com anastomose em Y de Roux: de modo semelhante a uma cirurgia bariátrica, mas com uma alça mais curta para evitar perda de peso pós-operatória significativa, surge como uma alternativa mais eficaz que a fundoplicatura. Essa abordagem permitiria, afinal, abrandar a DRGE refratária sem levar ao agravamento dos sintomas disfágicos.
Considerações finais
A ausência de contratilidade é um raro, porém grave distúrbio motor do esôfago associado a disfagia e sintomas refratários de doença do refluxo gastroesofágico. O seu adequado diagnóstico por meio da manometria esofágica é fundamental para evitar tratamentos inapropriados e orientar adequadamente os pacientes.
Referências
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As esofagites infecciosas mais comuns incluem candidíase, vírus herpes simples (HSV) e citomegalovírus (CMV). Embora seja mais comum em pacientes imunossuprimidos, a esofagite infecciosa também pode ocorrer em indivíduos imunocompetentes. Abaixo, resumimos as principais opções de tratamento.
Agente
1ª linha
Opções
Monilíase esofágica
Fluconazol VO 14-21 dias (**400 mg 1º dia, 200-400 mg demais dias) ** EV se não tolerar VO
Brasil: Formulação oral mais comum em geral 150 mg
Notas: – Nistatina não é suficiente… – Azóis são teratogênicos… – É discutível o tratamento em casos assintomáticos
– Tempo mais prolongado (28 dias) para refratariedade – Itraconazol 200 mg 1x/dia – Voriconazol 200 mg 2x/dia – Anfotericina B lipossomal 3-4 mg/kg/dia – Equinocandinas (caspofungina 50 mg/d)
14-21 dias
Herpes simples
Imunocomprometidos Aciclovir VO 400 mg 5x/dia 14-21 dias
Imunocompetentes Pode ocorrer resolução espontânea em 1-2 semanas Considerar: Aciclovir VO 200 mg 5x/dia ou 400 mg 3xd 7-10 dias
Opções com melhor comodidade posológica, mas mais caras – Valaciclovir 1 g 2x/dia – Fanciclovir 500 mg 2x/dia
14-21 dias se imunossuprimidos
Se via oral indisponível: – Aciclovir 5 mg/kg/dose 8/8h
Citomegalovírus
Imunocomprometidos (3-6 semanas) Ganciclovir EV 5 mg/kg/dose 12/12h Foscarnet EV 60 mg/kg/dose 8/8h (ou 90 mg/kg/dose 12/12h)
Imunocompetentes Observar? Suporte? > 80% precisam tratar em séries de casos Tempo menor?>2 semanas?
Reddy CA, Mcgowan E, Yadlapati R, Peterson K. AGA Clinical Practice Update on Esophageal Dysfunction Due to Disordered Immunity and Infection: Expert Review. Clin Gastroenterol Hepatol. 2024;1–10.
Rosołowski M, Kierzkiewicz M. Etiology, diagnosis and treatment of infectious esophagitis. Prz Gastroenterol. 2013;8(6):333–7.
Papel dos diferentes métodos diagnósticos na abordagem da doença do refluxo gastroesofágico
Embora a DRGE seja uma patologia comum, o seu diagnóstico pode ser desafiador, uma vez que os sintomas são inespecíficos, a apresentação clínica é heterogênea e há sobreposição com outros distúrbios gastrointestinais.1,2 Como para muitos autores não há padrão-ouro, o diagnóstico deve ser baseado em uma combinação de diversos fatores, tais como apresentação clínica, resposta terapêutica, avaliação endoscópica e monitoramento prolongado do refluxo.3,4
O consenso de Lyon (publicado em 2018 e posteriormente atualizado em 2023) buscou orientar sobre as indicações de exames complementares, de modo a definir critérios conclusivos para diagnóstico de DRGE, conforme já resumimos em publicação prévia (clique aqui).5,6 Na Tabela 1, descrevemos as vantagens e desvantagens dos principais métodos diagnósticos disponíveis.
Teste diagnóstico
Comentários
Vantagens
Desvantagens
História clínica
Diagnóstico clínico presuntivo de DRGE pode ser estabelecido se sintomas típicos em pacientes sem sinais de alarme
– Fácil utilização na atenção primária – Sem custos
– Sensibilidade e especificidade limitadas – Sobreposição de queixas com outras afecções esofagogástricas
Teste empírico de supressão ácida
Conduta possível dos pontos de vista terapêutico e diagnóstico. Positivo se sintomas melhoram com uso de inibidor de bombas de prótons
– Fácil utilização na atenção primária – Baixos custos
– Sensibilidade e especificidade limitadas – Outras afecções esofagogástricas também melhoram com supressão ácida
Endoscopia digestiva alta (EDA)
Deve ser realizada em pacientes com sinais de alarme ou sintomas refratários
– Possibilita diagnóstico de esofagite, hérnia de hiato e complicações da DRGE (sangramento, úlceras, estenose, esôfago de Barrett) – Permite diagnóstico diferencial – Elevada especificidade
– Baixa sensibilidade: 70% dos pacientes com DRGE sem tratamento apresentam mucosa normal (não-erosiva) – Exame invasivo – Custo elevado
pHmetria esofágica
Utiliza cateter transnasal (24h). Não é necessária de rotina. Importante em pacientes com sintomas refratários ou avaliação pré-operatória.
– Permite determinar exposição ácida esofágica anormal, frequência do refluxo e associação entre sintomas e episódios de refluxo – Fácil de realizar – Análise automática acurada
– Desconfortável para o paciente, que modifica o comportamento do dia-a-dia – Não se considera variação diária – Requer manometria esofágica
pHmetria esofágica sem fio
Utiliza cápsula sem fio
– Não necessita do uso de cateter transnasal (mais confortável e com isso não modifica comportamentos do dia-a-dia) – Permite monitorização mais prolongada (48-96h) – Análise automática acurada
– Requer EDA para colocação da cápsula – Alguns pacientes podem apresentar disfagia, necessitando da retirada – Cápsula pode se deslocar precocemente – Alto custo e pouca disponibilidade
Impedâncio-pHmetria esofágica
Utiliza cateter transnasal (24h)
– Permite detecção de refluxo não-ácido e aerofagia
– Desconfortável para o paciente – Não se considera variação diária – Requer manometria esofágica – Alto custo e pouca disponibilidade – Análise automática limitada
Manometria esofágica
Recomendada na avaliação pré-operatória da DRGE e em pacientes com queixa de disfagia
– Identifica hipotonia da junção esofagogástrica, hérnia de hiato e hipomotilidade esofágica – Permite descartar outros distúrbios motores do esôfago, como acalásia
– Desconfortável para o paciente – Não confirma o diagnóstico de DRGE
Tabela 1 – Vantagens e desvantagens dos principais métodos diagnósticos utilizados em doença do refluxo gastroesofágico (DRGE).
Fonte: Adaptado de Vaezi e Sifrim (2018)2, Gyawali et al. (2018)5, Fisichella et al. (2017)7, Yadlapati et al (2022)8, Kavitt e Vaezi (2021)9 e Zerbib (2021)10
Comentários adicionais
a) Diagnóstico clínico
Pirose e/ou regurgitação são rotineiramente os sintomas mais confiáveis para o diagnóstico clínico presuntivo de DRGE. Contudo, pode existir sobreposição de queixas com outras afecções esofagogástricas, como gastroparesia, acalasia, pirose funcional e esofagite eosinofílica.2,3 Uma revisão sistemática identificou que tais sintomas apresentavam sensibilidade e especificidade, respectivamente, de 30-76% e 62-96% para a presença de esofagite erosiva.11
Por sua vez, a terapia empírica com IBP para pacientes com sintomas de DRGE sem sinais de alarme é conduta possível tanto do ponto de vista terapêutico como ferramenta diagnóstica. Uma resposta positiva à terapia de supressão ácida confirmaria a suspeita.3,12 Entretanto, uma metanálise prévia sugeriu limitações desta abordagem, com sensibilidade de 78% e especificidade de 54%.13
b) Endoscopia digestiva alta
A endoscopia digestiva alta (EDA) é geralmente o primeiro exame para investigação de DRGE, principalmente em pacientes com sinais de alarme (disfagia, vômitos, perda ponderal, idade maior que 50 anos, anemia) ou sintomas refratários.8,14 Contudo, apesar de apresentar alta especificidade, a endoscopia tem baixa sensibilidade, podendo ser normal em dois terços dos casos sem tratamento.2,15
A EDA contribui para diagnóstico de DRGE ao identificar esofagite, hérnia de hiato e complicações (sangramento, úlceras, estenose, esôfago de Barrett), além de permitir afastar outros diagnósticos diferenciais, tais como malignidades, esofagite eosinofílica e esofagite infecciosa.7 A principal padronização utilizada para definição de esofagite erosiva (EE) é a classificação de Los Angeles, que avalia a extensão de erosões em esôfago distal utilizando os seguintes critérios:16
Grau A: Erosões lineares não confluentes e menores que 5 mm;
Grau B: Erosões lineares não confluentes e maiores que 5 mm;
Grau C: Erosões confluentes que ocupam menos de 75% da circunferência esofágica;
Grau D: Erosões confluentes que ocupam mais de 75% da circunferência esofágica;
No entanto, a esofagite erosiva está presente em apenas 30 a 40% dos pacientes com pirose.5 Em indivíduos em uso de IBP, esse achado passa a ser descrito em menos de 10% das endoscopias.5,17 Um grande estudo de banco de dados identificou esofagite em apenas 17,3% de 280.075 endoscopias, sendo que 79% delas eram graus A ou B de Los Angeles.18 Além disso, existe variação interobservador nos casos de esofagite erosiva grau A de Los Angeles e este achado pode estar presente em até 5,0 a 7,5% de indivíduos assintomáticos.5,19
Segundo o consenso de Lyon publicado inicialmente em 2018, apenas esofagites graus C e D de Los Angeles, estenose péptica e esôfago de Barrett seriam achados confirmatórios de DRGE na EDA.5 Posteriormente em 2022, tanto o consenso sobre DRGE da American Gastroenterological Association (AGA) como do American College of Gastroenterology (ACG) sugeriram que esofagite erosiva grau B de Los Angeles associada a sintomas típicos deveria ser também considerada como achado confirmatório de DRGE.3,8 Nesta mesma direção, a atualização 2.0 do consenso de Lyon (2023) também passou a incluir pacientes com esofagite erosiva grau B como evidência conclusiva para diagnóstico de DRGE, pois estudos de validação evidenciaram que estes casos apresentam AET similar àqueles com esofagite grau C.6,20 Como foi exposto, porém, estas alterações endoscópicas não são frequentes e, por isso, a sensibilidade da EDA é considerada baixa.2,18
c) Manometria esofágica
Embora a manometria esofágica não diagnostique DRGE, tem papel central na avaliação desta patologia, uma vez que avalia a função motora da JEG e a peristalse de corpo esofágico, permitindo descartar distúrbios primários da motilidade esofágica.7,21 Além disso, permite localização da borda superior do EIE para orientar posicionamento adequado do cateter de pHmetria.7
Na última década, a manometria de alta resolução (MAR) tornou-se mais disponível em nosso país.22,23 O cateter da MAR apresenta mais sensores do que a manometria convencional, registrando a pressão esofágica sem lacunas significativas dos dados ao longo do comprimento de todo o esôfago.21,24,25 As pressões obtidas são apresentadas em imagens espaço-temporais das pressões esofágicas codificadas por cores (clouse plots), com análise visualmente intuitiva e simultânea da faringe ao estômago.25
Em relação à manometria convencional, a MAR permite a localização mais fácil e imediata dos marcos anatômicos, tornando o teste mais rápido, menos desconfortável para o paciente pelo tempo reduzido de exame, menos susceptível à variabilidade interobservador e mais fácil de interpretar e compensar os artefatos de movimentos.23,26
d) pHmetria esofágica
A pHmetria esofágica prolongada permite a comprovação da presença de refluxo gastroesofágico patológico.27 Apesar de sua utilidade, é exame desconfortável e deve ser reservado para casos em que os sintomas não respondem adequadamente à terapia empírica com IBP. Quando ainda não houver confirmação diagnóstica pelos achados da EDA (EE graus B, C e D de Los Angeles, Barrett longo ou estenose péptica), deve ser realizado após a suspensão de terapia supressora ácida por pelo menos 7 dias.5,8 Também deve ser realizado antes de procedimentos cirúrgicos, pois é importante preditor de boa resposta terapêutica.3
Classicamente, é realizada por meio de cateter introduzido via transnasal com um ou mais sensores de pH. Posiciona-se sensor distal 5 cm acima da borda superior do EIE, previamente identificado por manometria. O refluxo ácido é definido como queda de pH esofágico abaixo de 4.27–29 A percentagem de tempo de pH < 4 durante o tempo total é denominada de tempo de exposição ácida total (AET, sigla já consagrada para acid exposure time) e é a medida mais confiável para diagnóstico de DRGE.5
A depender da referência utilizada, o limite superior de normalidade do AET é considerado entre 3,7 e 5,8%.28 Buscando maior padronização, o consenso de Lyon convencionou em 2018 que valores de AET acima de 6% são confirmatórios para DRGE e abaixo de 4% excluem esse diagnóstico. Definiu-se, portanto, o intervalo de 4 a 6% como uma “zona cinzenta” que depende de evidências auxiliares para confirmação de DRGE (vide publicação do Consenso de Lyon clicando aqui).5,10
A pHmetria também pode ser realizada sem cateter, utilizando-se cápsula sem fio que é fixada à mucosa esofágica durante endoscopia, 6 cm acima da JEG.30 Desta forma, o paciente não tem desconforto do cateter transnasal e passa a tolerar melhor o exame, permitindo um período mais prolongado de monitorização (até 96 horas). No entanto, o custo elevado acaba limitando o uso desta técnica.8
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Em 1991, Silny descreveu técnica para medida da impedância intraluminal esofágica, que permitiu posteriormente o desenvolvimento do cateter de impedâncio-pHmetria.1 Para a compreensão deste exame, é necessário relembrar que impedância é a medida de resistência ao fluxo de uma corrente entre dois eletrodos. Logo, quanto maior é a condutividade do material pelo qual a corrente passa, menor será a resistência e, consequentemente, menor será a impedância.2
O cateter de impedâncio-pHmetria (ZpH) tem o mesmo diâmetro que o cateter convencional de pHmetria (2 mm) e apresenta, além do sensor de pH, anéis metálicos (eletrodos) que são capazes de registrar a resistência ao fluxo (impedância) à corrente entre eles. Desta forma, em cateter padrão, observam-se 6 canais (Z1 a Z6, de proximal a distal), sendo que cada um representa um segmento de impedância elétrica ao redor do cateter no trecho compreendido entre um par de eletrodos, conforme representado na Figura 1.2,3
Figura 1: Representação da estrutura do cateter de impedâncio-pHmetria composto por 8 eletrodos que determinam 6 canais de impedância
A impedância intraluminal esofágica é baseada na medida das variações de resistência elétrica (em Ohms) nestes canais durante a passagem do bolo alimentar. Os líquidos apresentam alta condutividade e, portanto, baixa resistência, sendo detectados pelo decréscimo de 50% da impedância basal. O oposto ocorre com conteúdos gasosos, que são identificados pela elevação da impedância basal em 50% 4,5
A monitorização dessa impedância intraluminal esofágica possibilita a avaliação do transporte do bolo alimentar e de todos os tipos de refluxo, seja ácido ou não.4,6 Na deglutição, observa-se a variação de impedância primeiro em sensores proximais e posteriormente nos distais, ao passo que no caso do refluxo é verificado o oposto devido ao movimento retrógrado do bolo alimentar. Quando a impedância é associada à pHmetria, é possível avaliar se o material refluído é ácido (pH < 4), fracamente ácido (pH entre 4 e 7) ou não-ácido (pH > 7), conforme está representado nas Figuras 2 e 3.3-5
Figura 2: Identificação de refluxo ácido em exame de impedâncio-pHmetriaFigura 3: Identificação de refluxo não-ácido em exame de impedâncio-pHmetria
A avaliação da correlação de sintomas com refluxo é semelhante à utilizada na pHmetria convencional. Um sintoma está associado ao refluxo quando for descrito até 2 minutos após este refluxo.7 Os principais índices utilizados são:
Índice de sintomas (IS): calcula o percentual de episódios de sintomas relacionados a refluxos durante o estudo (= [Número de sintomas relacionados ao refluxo x 100] / Número total de sintomas). Um IS acima de 50% é considerado uma associação positiva entre sintomas e refluxo;3
Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS): É calculado dividindo os dados da monitorização de pH de 24 horas em segmentos consecutivos de 2 minutos. Para cada um desses 2 minutos, é determinado se ocorreu refluxo, fornecendo o número total de segmentos de 2 minutos com (R+) ou sem (R-) refluxo. Então, para cada episódio de sintoma, é determinado se ocorreu (S+R+) ou não (S+R-) refluxo no período de dois minutos precedente (Figura 4). A subtração de S+R+ do total R+ resulta em S-R+ e a subtração de S+R- do total de R- resulta em S-R-. Uma tabela 2×2 é então montada, tabulando-se nas colunas o número de segmentos com e sem sintomas e nas linhas o número de segmentos com e sem refluxo (Tabela 1). O teste exato de Fisher é usado para calcular a probabilidade (p) da distribuição ser ao acaso. A PAS é calculada por (1 – p) x 100%. Por convenção estatística, PAS maior ou igual a 95% significa que há uma associação positiva entre sintomas e refluxo. 7,8
Segundo o Roma IV, estes índices têm utilidade na determinação de pacientes com hipersensibilidade esofágica, que seriam aqueles com exposição ácida normal mas associação de sintomas positiva.9 O uso destes escores é, contudo, limitado, pela baixa quantidade de sintomas reportados durante a monitorização ambulatorial e pela variação diária.10
Fonte: Adaptado de Bredenoord et al., 2005.7 Figura 4: Representação esquemática de traçado de pHmetria para cálculo de Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS).
Neste exemplo (Figura 4), existem dois momentos em que o paciente pressionou o botão de sintomas. O primeiro deles é precedido de refluxo ácido (S+R+), ao passo que o segundo não tem associação com refluxo (S+R-).
Sintomas (S)
+
–
Refluxo (R)
+
S+R+
S-R+
–
S+R-
S-R-
Fonte: Adaptado de Bredenoord et al, 2005 7 Legenda: S+R+: Sintoma precedido por refluxo; S+R-: Sintoma não precedido por refluxo; S-R+: Refluxo sem presença de sintomas; S-R-: Ausência de refluxo ou de sintoma. Tabela 1 – Tabela 2×2 para cálculo da Probabilidade de Associação de Sintomas
Outras duas métricas que vem ganhando relevância na impedâncio-phmetria são a média noturna basal da impedância (MNBI) e o índice de onda peristáltica induzida por deglutição pós-refluxo (índice PSPW, sigla já consagrada de post-reflux swallow-induced peristaltic wave). Contudo, iremos discutir estes tópicos em outra postagem futura do Gastropedia!
Por fornecer mais informações sobre o refluxo, a impedâncio-pHmetria é considerada o método mais eficiente de monitorização prolongada em DRGE.13,14 No entanto, assim como na pHmetria tradicional, a necessidade de cateter nasal por 24 horas é desagradável para o paciente, acarretando por vezes mudanças nos seus hábitos diários. Existe ainda a possibilidade de variação diária de refluxos e sintomas, reduzindo a sensibilidade do método.2,3
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O que você precisa saber sobre Espasmo Esofágico Distal
O que é?
É um raro distúrbio motor do esôfago caracterizado por contrações prematuras e rapidamente propagadas ou simultâneas (espásticas)em esôfago distal. Estudos estimam que a prevalência é em torno de 2% a 9% em pacientes com disfagia submetidos a testes de motilidade esofágica, sendo mais comum em mulheres com idade média de 60 anos.
Os sintomas do espasmo esofágico distal foram descritos clinicamente pela primeira vez pelo Dr. Osgood em 1889.[1] Ele descreveu seis pacientes com queixa de dor torácica súbita e disfagia durante a alimentação, com eventual sensação de passagem do alimento para o estômago. Em 1934, Moersch & Camp usaram o termo “espasmo difuso da parte inferior do esôfago” para descrever achados de contrações anormais em oito pacientes com dor torácica e disfagia.[2] Desde então, conforme avanços tecnológicos e melhorias nas técnicas de avaliação diagnóstica, sua definição passou por revisões ao longo do tempo.
Fisiopatologia
O espasmo esofágico distal surge por uma coordenação anormal da musculatura lisa esofágica, provavelmente decorrente de um desequilíbrio entre as vias inibitórias (óxido nítrico – NO) e excitatórias (colinérgicas). A depleção de NO em indivíduos controle, por exemplo, é capaz de induzir contrações esofágicas distais simultâneas, confirmando o papel de uma redução no tônus inibitório. Em contraste, a reposição de NO prolonga a latência distal em pacientes com espasmo.
Essa fisiopatologia parece ser compartilhada pela acalasia, onde a perda de neurônios mioentéricos inibitórios leva ao comprometimento do relaxamento do esfíncter esofágico inferior. Essa relação e alguns relatos de casos questionam se o espasmo poderia progredir para acalasia (principalmente tipo III). No entanto, nestes relatos a avaliação foi realizada primordialmente pela manometria convencional, que, por ter menos canais, pode subdiagnosticar a acalasia devido à possibilidade de pseudorelaxamento do esfíncter inferior do esôfago.
O espasmo esofágico pode estar associado à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Em pacientes com espasmo, a DRGE foi detectada pela pHmetria ou endoscopia em 38% dos casos. Contudo, ainda não é bem definido a causalidade e o papel da terapia antissecretora nesta situação. O uso de opioides também claramente podem afetar a motilidade esofágica e, portanto, estas medicações devem ser descartadas neste contexto. Além disso, séries de caso demonstram que o espasmo pode estar associado a doenças psiquiátricas.
Como diagnosticar?
Quando suspeitar?
A apresentação clínica é heterogênea e não específica. As queixas mais comuns são disfagia (55%) e dor torácica não cardíaca (29%), mas também pode se apresentar com regurgitação, pirose, perda de peso, náuseas e vômitos. Tipicamente, os sintomas são intermitentes, durando de segundo a minutos, e podem ou não estar relacionados ou não a refeições.
Quais exames pedir?
Endoscopia digestiva alta: Exame inicial fundamental para excluir diagnósticos diferenciais, tais como neoplasia, anéis e membranas, hérnia de hiato, esofagite eosinofílica. Embora a endoscopia não seja realizada para confirmar o espasmo em si, ela pode apresentar comportamentos sugestivos de distúrbio de motilidade, como contrações esofágicas distais espásticas, vigorosas e/ou descoordenadas, com retenção de saliva ou líquido no lúmen esofágico. Estas características, no entanto, podem ser facilmente ignoradas dada a natureza intermitente do espasmo esofágico.
Esofagograma baritado (Raio-X contrastado esôfago-estômago-duodeno, seriografia): É outro método diagnóstico adjuvante na disfagia. A aparência de “saca-rolhas” ou “rosário” é um achado clássico (Figura 1). Além disso, é capaz de determinar anormalidades anatômicas que podem estar associadas ao espasmo, tais como divertículo esofágico.
Figura 1. Vídeo com esofagograma evidenciando “esôfago em saca-rolha”, sugestivo de espasmo esofágico distal
Manometria esofágica: É considerada o padrão-ouro para o diagnóstico. Na manometria de alta resolução, o ponto-chave para diagnóstico de espasmo passou a ser o tempo de latência distal (DL), que é definido como o tempo entre o relaxamento do esfíncter esofágico superior induzido pela deglutição e o ponto de desaceleração contrátil no esôfago distal, onde a velocidade de propagação diminui (Figura 2).
ESE: Esfíncter superior do esôfago; BK: Quebra (Break); DCI: Integral de contratilidade distal (Distal Contractile Integral); DL: Latência distal (Distal latency); IRP: Pressão integral de relaxamento (Integrative Relaxation Pressure); JEG: Junção esofagogástrica.Figura 2. Registro de uma deglutição normal captada por aparelho de manometria de alta resolução com sistema de perfusão, mostrando as marcações dos parâmetros tradicionais da Classificação de Chicago.
Uma contração com DL inferior a 4,5 segundos recebeu o termo “contração prematura” (Figura 3). Este valor de normalidade foi estabelecido para o sistema de estado sólido e é utilizado como referência para a Classificação de Chicago 4.0. Contudo, o sistema de manometria de alta resolução por perfusão ainda é o mais frequentemente usado no Brasil devido à sua maior durabilidade e ao menor custo do cateter e do sistema de transdução de pressão associado.
Buscando valores normativos para este sistema de perfusão em nossa população, trabalhos recentes realizaram manometria em voluntários assintomáticos e identificaram pontos de corte de 5,8 segundos[3] e 6,2 segundos[4], sugerindo que talvez estejamos subdiagnosticando o espasmo ao utilizar o valor de DL de 4,5 segundos em exames com o aparelho de perfusão. No entanto, é necessária a validação destes valores em pacientes para definir se eles realmente conseguem se correlacionar com os sintomas e com os diagnósticos propostos pela Classificação de Chicago 4.0.
Conforme a classificação de Chicago 4.0 (clique aqui), o espasmo esofágico distal é caracterizado pela presença de pelo menos 20% de contrações prematuras em esôfago distal, juntamente com uma pressão normal de relaxamento do esfíncter inferior. Para que o diagnóstico manométrico seja clinicamente relevante, é necessário que existam sintomas compatíveis.
Esta definição de Chicago mudou o foco da velocidade peristáltica para o DL como critério definidor do espasmo. Alguns autores destacam, contudo, que a presença de ondas simultâneas, mesmo com o DL normal, ainda poderia também ser considerada no diagnóstico de espasmo.
Figura 3. Registro de uma contração prematura (DL < 4,5 segundos) captada por aparelho de manometria de alta resolução com sistema de perfusão.
FLIP: Exame ainda pouco disponível no Brasil, que discutimos melhor AQUI. Sua principal utilidade no contexto é avaliar o esfíncter inferior do esôfago e garantir que não há uma obstrução ao fluxo, especialmente porque o espasmo compartilha uma via fisiopatológica comum com a acalasia espástica.
Como tratar?
Devido à falta de ensaios clínicos suficientes e às manifestações heterogêneas, não há uma recomendação muito bem definida para o espasmo esofágico. As opções são:
Tratamento medicamentoso
Inibidores de bomba de prótons: Considerar naqueles pacientes com suspeita de DRGE;
Relaxantes da musculatura lisa: nitratos (ex: dinitrato de isossorbida 5-10 mg sublingual 5 a 10 minutos antes de refeições no caso de disfagia ou sob demanda se dor torácica), inibidores de 5-fosfodiesterase (sildenafil), bloqueadores de canal de cálcio (diltiazem 180 a 240 mg/dia ou nifedipino 10-30 mg aproximadamente 10-15 minutos antes das refeições)
Antidepressivos tricíclicos: Principalmente se a dor torácica for o sintoma principal. Ex: imipramina, trazodona, amitriptilina
Tratamento endoscópico
Miotomia endoscópica peroral (POEM)
Toxina botulínica: 100 UI em cada quadrante do EIE / esôfago distal. A eficácia geralmente é limitada a 6-12 meses.
Dilatação pneumática esofágica: considerar apenas se disfagia associada. Sucesso questionável.
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Lages RB. O que você precisa saber sobre Espasmo Esofágico Distal Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/esofago/o-que-voce-precisa-saber-sobre-espasmo-esofagico-distal/
Atualizações no diagnóstico de DRGE: Consenso de Lyon 2.0 (2023)
Desde 2018, o consenso de Lyon tornou-se a principal referência para definição de critérios para diagnóstico de certeza da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Contudo, a ciência está em constante evolução e, portanto, acaba de ser publicada a versão 2.0 deste consenso, atualizando as recomendações conforme os resultados de estudos dos últimos cinco anos. Caso queira acesso a esta nova versão na íntegra, basta clicar aqui. O Gastropedia, contudo, traz aqui os highlights para facilitar sua vida.
Qual a relevância?
A presença de sintomas típicos de DRGE, por vezes, é suficiente para a prescrição de terapia medicamentosa com antissecretores (ex: inibidores de bomba de prótons, bloqueadores ácidos competitivos de potássio). Contudo, um diagnóstico inquestionável de DRGE é recomendado para investigar sintomas não típicos, avaliar adequadamente pacientes com sintomas refratários, justificar o uso prolongado de medicamentos ou indicar terapia invasiva.
Quais as principais mudanças?
Esofagite erosiva Los Angeles grau B passa a ser evidência conclusiva para diagnóstico de DRGE, seguindo tendência das publicações dos guidelines de 2022 da AGA (American Gastroenterological Association) e da ACG (American College of Gastroenterology – clique aqui e veja resumo que publicamos previamente no Gastropedia!);
Definição de métricas para usar na pHmetria prolongada sem fio;
Definição de parâmetros para diagnóstico de DRGE refratária em exames realizados em uso de tratamento antissecretor;
Reforça que pacientes com sintomas atípicos isolados têm uma menor probabilidade de associação com DRGE e que, portanto, devem preferencialmente ser investigados com endoscopia e monitorização prolongada de refluxo em detrimento de terapia empírica (você pode ler mais sobre o tema clicando aqui);
Quando eu tenho um diagnóstico de certeza de DRGE?
Critérios em endoscopia digestiva alta (para maximizar o rendimento diagnóstico, realizar 2 a 4 semanas após suspender terapia antissecretora):
Esofagite erosiva graus B, C ou D;
Esôfago de Barrett confirmado em biópsia;
Estenose esofágica péptica.
Critérios em exames de monitorização prolongada de refluxo
Tempo de exposição ácida total (AET) > 6%
> 80 episódios de refluxo
Média noturna basal da impedância (MNBI) < 1500 Ω
Quando há evidências limítrofes ou inconclusivas nos exames de endoscopia e de monitorização prolongada de refluxo apoiadas por evidências adjuvantes.
Devo suspender ou não o IBP para realizar a pHmetria?
Na maioria das vezes, o exame de monitorização prolongada do refluxo deve ser realizado após a suspensão da terapia antissecretora por pelo menos 7 dias. Contudo, suspender ou não o IBP irá depender dos exames prévios e do objetivo do exame, conforme descrito a seguir:
Exame SEM terapia antissecretora por pelo menos 7 dias: Utilizar quando eu ainda quero confirmar DRGE (no caso, por exemplo, de investigação em paciente com endoscopia sem esofagite erosiva ou com Los Angeles A);
Exame EM terapia antissecretora: Utilizar quando eu já tenho certeza de que tem DRGE, mas quero investigar porque os sintomas persistem. Neste caso, o uso de impedâncio-pHmetria pode ser superior, uma vez que possibilita a identificação de refluxos não-ácidos ou fracamente ácidos.
A seguir, segue um resumo dos achados que estabelecem evidência conclusivas para DRGE conforme Consenso de Lyon 2.0.
Figura 1: Definições para diagnóstico de certeza da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) conforme Consenso de Lyon 2.0. Adaptado de Gyawali CP et al, 2023.
Gyawali CP, Yadlapati R, Fass R, et al. Updates to the modern diagnosis of GERD: Lyon consensus 2.0. Gut. Epub ahead of print 21 Sep 2023. doi: 10.1136/gutjnl-2023-330616
Como citar este artigo
Lages RB. Atualizações no diagnóstico de DRGE: Consenso de Lyon 2.0 (2023) Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/esofago/atualizacoes-no-diagnostico-de-drge-consenso-de-lyon-2-0-2023/
Live Esofagite Eosinofílica
Caros,
Segue abaixo os slides com as principais mensagens passadas durante nossa live de esofagite eosinofílica. Se você perdeu a live ou se quiser rever alguns trechos clique nesse link: LIVE ESOFAGITE EOSINOFÍLICA