Câncer Gástrico Difuso Hereditário

No artigo anterior discutiu-se o câncer gástrico (CG) hereditário associado a presença de síndromes que ocasionam quadro de polipose digestiva.1 Nesse artigo será apresentado o Câncer Gástrico Difuso Hereditário (CGDH), a síndrome hereditária mais relevante sem associação com polipose do trato gastrointestinal.

1. CG Difuso Hereditário  

O Câncer Gástrico Difuso Hereditário é uma síndrome caracterizada por uma alta prevalência de câncer gástrico difuso e carcinoma lobular de mama. Inicialmente descrita em uma família Maori da Nova Zelândia em 1998, estima-se atualmente que o CGDH tenha uma incidência populacional de aproximadamente 5-10/100.000 nascimentos.

A maioria dos casos confirmados de CGDH é causada por mutações germinativas no gene supressor de tumor CDH1. O CDH1 codifica a E-caderina, uma proteína transmembrana que está localizada nas junções celulares e tem funções de adesão, detecção de tensão e transdução de sinal através da membrana celular. A mutação do CDH1 com posterior alteração da E-caderina ocasiona a perda de coesão celular ocasionando o aspecto clássico de um carcinoma com células pouco coesas ou com células em anel de sinete. Mutações em um segundo gene também relacionado com a adesão celular, a alfa-catenina (CTNNA1), também são encontradas em uma pequena parcela de casos de CGDH.

2. Critérios Diagnósticos

Os critérios de suspeita clínica tanto do indivíduo quando da família foram relaxados principalmente por meio de mudanças nas restrições de idade nas diretrizes de 2020 (Figura 1).2 A ampliação da indicação do teste genético deve equilibrar os custos relacionados à saúde, a aceitação do público e a carga psicológica imposta à população testada contra o benefício de identificar mais indivíduos assintomáticos de alto risco. O fato de o custo do teste estar diminuindo progressivamente também contribuiu para sua maior indicação.

Figura 1 – Critérios familiares e individuais para indicação do teste genético

Por outro lado, a introdução generalizada de painéis de genes de câncer, identificou variantes inesperadas de CDH1 em indivíduos que não apresentam fenótipos sugestivos de CGDH, criando um desafio para pacientes e médicos. Dessa forma, a pesquisa indiscriminada não tem indicação em casos sem suspeita clínica da síndrome. As estimativas de penetrância do para ocorrência de CG das variantes patogênicas de CDH1 são influenciados pelos critérios clínicos usados para indicar o teste genético. Usando famílias que preencheram os critérios clínicos anteriores de 2010, mais restritos para indicação do teste genético, estimou-se o risco cumulativo de CG aos 80 anos em homens e mulheres portadores de 70% e 56%, respectivamente. No entanto, outro relato evidenciou que famílias que atenderam ao critério de CGDH de 2015, menos rigorosos, a penetrância para ocorrência de CG foi 42% para homens e 33% para mulheres. Dessa forma, o risco de CGDH varia entre as famílias e, portanto, a história familiar deve ser considerada ao estimar o risco de penetrância de cada indivíduo.

Em indivíduos que atendam aos critérios clínicos para realização de teste genético, o teste costuma ser oferecido a partir da idade legal de consentimento (18 anos no Brasil). Sempre que possível, o aconselhamento genético para CGDH deve incluir avaliação de um pedigree familiar de três gerações, histórico familiar de lábio leporino ou fissura palatina e confirmação histopatológica do tipo de CG e/ou mama.

O aconselhamento deve ser realizado por profissional capacitado com discussão abrangente e multidisciplinar em torno dos benefícios e riscos da cirurgia gástrica profilática e vigilância do câncer.

Figura 2 – Fluxograma de diagnóstico após o teste genético

3. Gastrectomia Profilática

Quando indicada, a gastrectomia total profilática (GTP) é realizada no início idade adulta, geralmente entre 20 e 30 anos de idade. Dado o aumento dos riscos perioperatórios e recuperação prolongada com a idade, a GTP não é recomendada em pacientes com mais de 70 anos, a menos que haja circunstâncias atenuantes significativas. Antes da cirurgia, os pacientes devem realizar uma endoscopia para garantir que já não haja CG, o que exigiria a realização do estadiamento completo. O exame também identificar outra patologia coincidente, como o esôfago de Barrett e hérnia de hiato, que pode alterar a extensão da ressecção.

A extensão da gastrectomia deve ser total, com confirmação intraoperatória de mucosa escamosa esofágica na margem proximal e mucosa duodenal na margem distal. As metástases linfonodais perigástricas são extremamente incomuns em pacientes submetidos a GTP na ausência tumor gástrico na endoscopia inicial. Dessa forma, uma linfadenectomia D2 estendida deliberada não é necessária e geralmente é desencorajada para minimizar a morbidade pós-operatória. Para evitar o potencial de subestimar o raro evento de um paciente com um tumor gástrico T2 anteriormente não identificado, a realização da linfadenectomia D1 é suficiente.

4. Vigilância Endoscópica

A vigilância deve ser realizada em centros especializados familiarizados com CGDH.

A chance a priori de ter pelo menos uma lesão compatível com carcinoma células em anel de sinete na amostra de gastrectomia total de um portador de mutação CDH1 é de 95%. Consequentemente, a relevância clínica de alguns casos de carcinoma superficiais (estágio T1a) em biópsias endoscópicas são questionáveis, especialmente porque esses focos de carcinoma em lesões superficiais podem exibir um comportamento muito indolente.

Portanto, o objetivo principal da vigilância não é apenas detectar um foco carcinoma superficial. Em pacientes que desejam adiar a cirurgia, outros objetivos da vigilância incluem: excluir lesões infiltrativas mais profundas, detectar grandes ou numerosas lesões T1a, pois esses pacientes provavelmente têm uma chance maior de desenvolver lesões em estágio T mais avançado, e avaliar a mudança histológica e aparência endoscópica que podem sinalizar comportamento mais maligno.

Dessa forma as endoscopias de vigilância devem incluir biópsias direcionadas e aleatórias. O número de biópsias aleatórias recomendadas é 28-30 (três-cinco na cárdia, cinco no fundo, dez no corpo, cinco na zona de transição corpo-antro e cinco no antro). Recomenda-se que as linguetas de tecido gástrico no esôfago sejam registradas, inspecionadas e biopsiadas. Todos os pacientes sob vigilância devem ser totalmente informados sobre as limitações do exame.

Referências

  1. Kodama, MFKP e Simoes IBP. Câncer gástrico hereditário. Gastropedia 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/cancer-gastrico-hereditario
  2. Blair VR, McLeod M, Carneiro F, et al. Hereditary Diffuse Gastric Cancer: Updated Clinical Practice Guidelines. Lancet Oncol. 2020;21(8):e386-397.       

Como citar este arquivo

Ramos, MFKP. Câncer Gástrico Difuso Hereditário. Gastropedia 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/esofago-estomago-duodeno/cancer-gastrico-difuso-hereditario/




Câncer Gástrico Hereditário

Autores: Marcus Fernando Kodama Pertille Ramos e Ítalo Beltrão Pereira Simões

A maioria dos casos de câncer gástrico (CG) são esporádicos, mas cerca de 10% apresentam agregação familiar e 1 a 3% possuem uma causa hereditária. O conhecimento das síndromes hereditárias como fator causal do câncer colorretal (CCR) é bem difundido, mas no CG isso é menos divulgado, fato que pode prejudicar o diagnóstico precoce e o seguimento adequado.

O CG hereditário pode ocorrer associado a presenças de polipose ou não, como no caso das síndromes do Câncer Gástrico Difuso Hereditário, Li-Fraumeni, BRCA1, BRCA2 e Lynch. Nesse artigo descreveremos as principais síndromes de CG hereditário associadas à polipose. O CG Difuso Hereditário não associado a polipose será discutido em outro artigo (clique aqui).

CG HEREDITÁRIO ASSOCIADO A POLIPOSE

1. POLIPOSE ADENOMATOSA FAMILIAR (PAF)

A PAF decorre de uma mutação do gene supressor tumoral do gene APC causando um altíssimo risco de CCR.

Cerca de 51 a 88% dos pacientes apresentam pólipos gástricos principalmente de glândulas fúndicas. A incidência é elevada inclusiva na PAF atenuada. Eles costumam ser numerosos, e o termo polipose gástrica pode ser empregado apenas quando mais de 20 estão presentes.

Displasia de baixo grau pode estar presente em até 44% dos pólipos de glândulas fúndicas. Pólipos adenomatosos são detectados em cerca de 20% dos pacientes com PAF.

O rastreamento endoscópico alto é recomendado no momento da manifestação da polipose colônica ou a partir de 25 anos. O intervalo de realização vai depender dos achados e também de acordo com a necessidade de seguimento de adenoma de papila, quando presente, de acordo como escore de Spigelman.

Polipose gástrica em paciente com PAF. Imagens mostram inúmeros pólipos em cárdia, fundo, corpo e antro.

2. SÍNDROME DE PEUTZ-JEGHERS (SPJ)

A SPJ é autossômica dominante, caracterizada pelo desenvolvimento de polipose hamartomatosa gastrointestinal principalmente no jejuno associada a presença de máculas melanocíticas.

O diagnóstico clínico baseia-se na confirmação da presença de pólipos hamartomatosos associado com história familiar positiva e hiperpigmentação de mucosas, dedos e genitália externa.

Pólipos gástricos são detectados em 25% dos casos, comparados com 70-90 % encontrados no intestino delgado e 50% no cólon. O aspecto morfológico do pólipo gástrico na SPJ assemelha-se a um padrão viloso proliferação epitelial hiperplásica sendo difícil distinguir do pólipo juvenil e hiperplásico.

Displasia é raramente detectada nos pólipos mas indivíduos com SPJ tem 29% risco de desenvolver CG principalmente do tipo intestinal.

Rastreamento deve ser iniciado precocemente na infância com endoscopia inicial com periodicidade dependendo dos achados. A partir dos 50 anos, o risco de CG aumenta e a periodicidade deve ser mais frequente entre 1 a 2 anos.

Sequência de imagem mostrando pólipo em região de corpo gástrico em paciente com Síndrome de Peutz-Jeghers, imagens inferiores com magnificação de imagem.

3. SÍNDROME DA POLIPOSE JUVENIL

Síndrome autossômica dominante que leva ao desenvolvimento de pólipos em todo trato gastrointestinal principalmente no cólon e reto.

Critérios para suspeita clínica da síndrome incluem mais de 5 pólipos juvenis colorretais, pólipos juvenis ao longo do trato gastrointestinal ou mais de 1 pólipo juvenil com história familiar positiva. O diagnóstico definitivo é realizado de um dos critérios de suspeita clínica na presença dos genes BMPR1A e SMAD4 no teste genético.

Os pólipos juvenis são pólipos hamartomatosos que se desenvolvem a partir de um tecido normal do trato gastrointestinal. O aspecto endoscópico habitualmente é de um pólipo pediculado, multilobado, macio variando desde pequenos pólipos até pólipos gigantes. Em até 75% dos casos existem outros tipos de pólipos em conjunto.  Polipose gástrica severa pode ocorrer causando anemia, hematêmese, enteropatia com perda proteica e sintomas obstrutivos. Progressão para CG ocorre em até 21% dos casos com média de idade de 58 anos.

Rastreamento endoscópico é recomendado a partir da adolescência com endoscopias anuais.

Saiba mais sobre a polipose juvenil neste artigo

Imagens superiores mostram pólipo juvenil hamartomatoso em região da cárdia em paciente com polipose juvenil. Imagens inferiores mostram os diferentes aspectos e tamanho dos pólipos encontrados na síndrome.

4. POLIPOSE ASSOCIADA AO MUTYH (MAP)

MAP é uma síndrome rara, autossômica recessiva, associada com mutação no gene MUTYH que participa de processos de reparo de DNA. Pacientes com MAP tem predisposição para o CCR, mama e ovário.

Pólipos gástricos são detectados em cerca de 10 a 33% dos casos e a maioria adenomas e PGF.

O risco de CG é baixo (2%) mas ocorre em pacientes mais jovens (mediana de 38 anos). Por outro lado, o risco de câncer duodenal é alto podendo ocorrer em 17% dos casos.

5. ADENOCARCINOMA GÁSTRICO COM POLIPOSE PROXIMAL (GAPPS)

Essa síndrome é caracterizada pelo desenvolvimento de uma polipose gástrica proximal incluindo o fundo e corpo formando um tapete de pequenos pólipos usualmente menores que 1 cm. O tipo histológico dos pólipos é variado podendo ser pólipos de glândulas fúndicas, hiperplásicos, adenomas e mistos.

Os critérios para diagnóstico clínico incluem:

  • detecção de mais de 100 pólipos ou mais de 30 pólipos com história familiar positiva em parente de primeiro grau,
  • pólipos restritos ao corpo e fundo sem a presença de pólipos colorretais,
  • morfologia de glandula fundica com áreas de displasia ou carcinoma,
  • exclusão de outras síndromes e uso de inibidor de bomba de prótons.

Série de casos relataram incidência de 12,7% de CG, todos do tipo intestinal.

Seguimento endoscópico deve ser realizado, mas em casos com múltiplos pólipos a avaliação de pólipos com sinais de degeneração pode ficar prejudicada sendo indicada a gastrectomia total.

Imagens de GAPPS evidenciando acometimento de corpo e fundo com diminuição progressiva no número de pólipos no estômago distal.
Tabela com resumo das principais características das síndromes genéticas relacionadas com o câncer gástrico hereditário, dividindo-as em associadas e não associadas a polipose do trato gastrointestinal.

Referências

  1. Clauditz TS, Moore M, Setia N, et al. Syndromic gastric polyposis and hereditary gastric cancers. Diagnostic Histopathologic 2019; 26(1):39-46.
  2. Mahon SM. Hereditary Polyposis Syndromes. Gentics and Genomics 2018; 22(2): 151-6
  3. Cardoso DM. Síndromes de polipose colorretal. Endoscopia Terapêutica; 2020. Disponível em: http://endoscopiaterapeutica.com.br/assuntosgerais/sindromes-de-polipose-colorretal/

Como citar este artigo

Kodama, MFKP e Simoes IBP. Câncer gástrico hereditário. Gastropedia 2022. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/esofago-estomago-duodeno/cancer-gastrico-hereditario/