Impedâncio-pHmetria esofágica: Princípios técnicos

Em 1991, Silny descreveu técnica para medida da impedância intraluminal esofágica, que permitiu posteriormente o desenvolvimento do cateter de impedâncio-pHmetria.1 Para a compreensão deste exame, é necessário relembrar que impedância é a medida de resistência ao fluxo de uma corrente entre dois eletrodos. Logo, quanto maior é a condutividade do material pelo qual a corrente passa, menor será a resistência e, consequentemente, menor será a impedância.2

O cateter de impedâncio-pHmetria (ZpH) tem o mesmo diâmetro que o cateter convencional de pHmetria (2 mm) e apresenta, além do sensor de pH, anéis metálicos (eletrodos) que são capazes de registrar a resistência ao fluxo (impedância) à corrente entre eles. Desta forma, em cateter padrão, observam-se 6 canais (Z1 a Z6, de proximal a distal), sendo que cada um representa um segmento de impedância elétrica ao redor do cateter no trecho compreendido entre um par de eletrodos, conforme representado na Figura 1.2,3

Figura 1: Representação da estrutura do cateter de impedâncio-pHmetria composto por 8 eletrodos que determinam 6 canais de impedância

A impedância intraluminal esofágica é baseada na medida das variações de resistência elétrica (em Ohms) nestes canais durante a passagem do bolo alimentar. Os líquidos apresentam alta condutividade e, portanto, baixa resistência, sendo detectados pelo decréscimo de 50% da impedância basal. O oposto ocorre com conteúdos gasosos, que são identificados pela elevação da impedância basal em 50% 4,5

A monitorização dessa impedância intraluminal esofágica possibilita a avaliação do transporte do bolo alimentar e de todos os tipos de refluxo, seja ácido ou não.4,6 Na deglutição, observa-se a variação de impedância primeiro em sensores proximais e posteriormente nos distais, ao passo que no caso do refluxo é verificado o oposto devido ao movimento retrógrado do bolo alimentar. Quando a impedância é associada à pHmetria, é possível avaliar se o material refluído é ácido (pH < 4), fracamente ácido (pH entre 4 e 7) ou não-ácido (pH > 7), conforme está representado nas Figuras 2 e 3.3-5

Figura 2: Identificação de refluxo ácido em exame de impedâncio-pHmetria
Figura 3: Identificação de refluxo não-ácido em exame de impedâncio-pHmetria

A avaliação da correlação de sintomas com refluxo é semelhante à utilizada na pHmetria convencional. Um sintoma está associado ao refluxo quando for descrito até 2 minutos após este refluxo.7 Os principais índices utilizados são:

  • Índice de sintomas (IS): calcula o percentual de episódios de sintomas relacionados a refluxos durante o estudo (= [Número de sintomas relacionados ao refluxo x 100] / Número total de sintomas). Um IS acima de 50% é considerado uma associação positiva entre sintomas e refluxo;3
  • Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS): É calculado dividindo os dados da monitorização de pH de 24 horas em segmentos consecutivos de 2 minutos. Para cada um desses 2 minutos, é determinado se ocorreu refluxo, fornecendo o número total de segmentos de 2 minutos com (R+) ou sem (R-) refluxo. Então, para cada episódio de sintoma, é determinado se ocorreu (S+R+) ou não (S+R-) refluxo no período de dois minutos precedente (Figura 4). A subtração de S+R+ do total R+ resulta em S-R+ e a subtração de S+R- do total de R- resulta em S-R-. Uma tabela 2×2 é então montada, tabulando-se nas colunas o número de segmentos com e sem sintomas e nas linhas o número de segmentos com e sem refluxo (Tabela 1). O teste exato de Fisher é usado para calcular a probabilidade (p) da distribuição ser ao acaso. A PAS é calculada por (1 – p) x 100%. Por convenção estatística, PAS maior ou igual a 95% significa que há uma associação positiva entre sintomas e refluxo. 7,8

Segundo o Roma IV, estes índices têm utilidade na determinação de pacientes com hipersensibilidade esofágica, que seriam aqueles com exposição ácida normal mas associação de sintomas positiva.9 O uso destes escores é, contudo, limitado, pela baixa quantidade de sintomas reportados durante a monitorização ambulatorial e pela variação diária.10

Fonte: Adaptado de Bredenoord et al., 2005.7
Figura 4: Representação esquemática de traçado de pHmetria para cálculo de Probabilidade de Associação de Sintomas (PAS).

Neste exemplo (Figura 4), existem dois momentos em que o paciente pressionou o botão de sintomas. O primeiro deles é precedido de refluxo ácido (S+R+), ao passo que o segundo não tem associação com refluxo (S+R-).

Sintomas (S)
+
Refluxo (R) + S+R+ S-R+
S+R- S-R-
Fonte: Adaptado de Bredenoord et al, 2005 7
Legenda: S+R+: Sintoma precedido por refluxo; S+R-: Sintoma não precedido por refluxo; S-R+: Refluxo sem presença de sintomas; S-R-: Ausência de refluxo ou de sintoma.
Tabela 1 – Tabela 2×2 para cálculo da Probabilidade de Associação de Sintomas

Outras duas métricas que vem ganhando relevância na impedâncio-phmetria são a média noturna basal da impedância (MNBI) e o índice de onda peristáltica induzida por deglutição pós-refluxo (índice PSPW, sigla já consagrada de post-reflux swallow-induced peristaltic wave). Contudo, iremos discutir estes tópicos em outra postagem futura do Gastropedia!

Por fornecer mais informações sobre o refluxo, a impedâncio-pHmetria é considerada o método mais eficiente de monitorização prolongada em DRGE.13,14 No entanto, assim como na pHmetria tradicional, a necessidade de cateter nasal por 24 horas é desagradável para o paciente, acarretando por vezes mudanças nos seus hábitos diários. Existe ainda a possibilidade de variação diária de refluxos e sintomas, reduzindo a sensibilidade do método.2,3

Saiba mais:

Referências

  1. Silny J. Intraluminal Multiple Electric Impedance Procedure for Measurement of Gastrointestinal Motility. J Gastrointest Motil. 1991;3(3):151–62.
  2. Patel DA, Vaezi MF. Utility of esophageal mucosal impedance as a diagnostic test for esophageal disease. Curr Opin Gastroenterol. 2017;33(4):277–84.
  3. Fontes LHS, Navarro-Rodriguez T, Lages RB, Freitas DGV de, Assiratti FS, Teixeira AC de S. Manual prático de impedâncio-pHmetria esofágica. 1st ed. São Paulo: Editora dos Editores; 2020. 88 p.
  4. Herbella FAM, Del Grande JC. Novas técnicas ambulatoriais para avaliação da motilidade esofágica e sua aplicação no estudo do megaesôfago. Rev Col Bras Cir. 2008;35(3):199–202.
  5. Sifrim D, Fornari F. Esophageal impedance–pH monitoring. Dig Liver Dis. 2008;40(3):161–6.
  6. Sifrim D, Castell D, Dent J, Kahrilas PJ. Gastro-oesophageal reflux monitoring: review and consensus report on detection and definitions of acid, non-acid, and gas reflux. Gut. 2004;53(7):1024–31.
  7. Bredenoord AJ, Weusten BLAM, Smout AJPM. Symptom association analysis in ambulatory gastro-oesophageal reflux monitoring. Gut. 2005;54(12):1810–7.
  8. Weusten BL, Roelofs JM, Akkermans LM, Van Berge-Henegouwen GP, Smout AJ. The symptom-association probability: an improved method for symptom analysis of 24-hour esophageal pH data. Gastroenterology. 1994;107(6):1741–5.
  9. Aziz Q, Fass R, Gyawali CP, Miwa H, Pandolfino JE, Zerbib F. Esophageal Disorders. Gastroenterology. 2016;150(6):1368–79.
  10. Vaezi MF, Sifrim D. Assessing Old and New Diagnostic Tests for Gastroesophageal Reflux Disease. Gastroenterology. 2018;154(2):289–301.
  11. Frazzoni M, Savarino E, de Bortoli N, Martinucci I, Furnari M, Frazzoni L, et al. Analyses of the Post-reflux Swallow-induced Peristaltic Wave Index and Nocturnal Baseline Impedance Parameters Increase the Diagnostic Yield of Impedance-pH Monitoring of Patients With Reflux Disease. Clin Gastroenterol Hepatol. 2016;14(1):40–6.
  12. Frazzoni L, Frazzoni M, de Bortoli N, Tolone S, Furnari M, Martinucci I, et al. Postreflux swallow-induced peristaltic wave index and nocturnal baseline impedance can link PPI-responsive heartburn to reflux better than acid exposure time. Neurogastroenterol Motil. 2017;29(11):e13116.
  13. Nasi A, Queiroz NSF, Michelsohn NH. Prolonged gastroesophageal reflux monitoring by impedance-pHmetry: a review of the subject pondered with our experience with 1,200 cases. Arq Gastroenterol. 2018;55(Suppl 1):76–84.
  14. Marabotto E, Savarino V, Ghisa M, Frazzoni M, Ribolsi M, Barberio B, et al. Advancements in the use of 24-hour impedance-pH monitoring for GERD diagnosis. Curr Opin Pharmacol. 2022 Aug;65:102264.

Como citar este artigo

Lages RB. Impedâncio-pHmetria esofágica: Princípios técnicos Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/impedancio-phmetria-esofagica-principios-tecnicos




Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer?

“Doutor, o que é essa metaplasia que apareceu na minha endoscopia? Eu li no Google que ela vira câncer de estômago! O que eu faço agora?” – essa é uma preocupação que provavelmente você já ouviu no consultório médico. Mas e, então, você sabe o que responder e o que fazer?

O que é?

A inflamação crônica no estômago gera um processo regenerativo que pode estimular a transformação da mucosa gástrica em células mais parecidas com aquelas que revestem os intestinos, o que chamamos de metaplasia intestinal (MI).

A prevalência de MI é variável conforme a população estudada (relaciona-se, por exemplo, à prevalência de H. pylori), sendo estimada em 4,8% nos Estados Unidos, mas em até 25% em algumas populações asiáticas. Além disso, estudos demonstram uma maior prevalência em faixas de idade mais avançadas. Não há sintomas específicos associados com a metaplasia em si.

Mas se essa transformação que leva à MI é consequência de uma inflamação gástrica, quais seriam os fatores que podem predispor ou acelerar essa evolução?

  1. Helicobacter pylori: Sem dúvidas, é o principal fator de risco para lesões pré-cancerígenas gástricas. O H. pylori aumenta a chance de câncer gástrico em 2 a 3 vezes.
  2. Gastrite autoimune: Aumento do risco de tumores neuroendócrinos gástricos tipo I e de adenocarcinoma.
  3. Tabagismo
  4. Refluxo biliar
  5. Dieta: vegetais e frutas são geralmente fatores protetores, ao passo que dietas ricas em sal, processados, defumados e alimentos ricos em nitrosaminas aumentam o risco.

Como identificar?

Na endoscopia com luz branca, a metaplasia intestinal apresenta-se superficialmente elevada ou com áreas planas esbranquiçadas. Também pode aparecer como placas da mesma cor da mucosa adjacente ou até áreas ligeiramente deprimidas e avermelhadas. Se disponíveis, equipamentos de alta definição e cromoscopia são superiores a endoscópios de alta definição com luz convencional, pois podem direcionar as biópsias para áreas mais representativas e com maior risco de malignidade (Figura 1).

Figura 1:
Metaplasia intestinal (MI) em antro gástrico. À esquerda, exame sob luz branca e, à direita, exame com cromoscopia óptica (LCI), onde é mais fácil reconhecer a extensão da MI.

De forma análoga ao que temos para gastrite atrófica, também temos um sistema de classificação para estadiamento da metaplasia, o Operative Link on Gastritis Assessment based on Intestinal Metaplasia (OLGIM). Para tal, são necessárias biópsias do antro (+ incisura) e do corpo gástrico (na pequena e na grande curvatura de cada região), que devem ser identificadas em frascos separados (Figura 2). A endoscopia precisa ser de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia. No caso de lesões suspeitas visíveis, deve-se realizar biópsias adicionais.

Figura 2:
Sistema OLGIM para avaliação de metaplasia intestinal gástrica.

Qual o risco?

O adenocarcinoma gástrico tipo intestinal é o final da famosa cascata de Pelayo Correa: inflamação –> atrofia –> metaplasia –> displasia –> carcinoma. Logo, tanto a gastrite atrófica como a metaplasia intestinal são consideradas condições pré-cancerígenas. Outra inferência desta cascata é que, se existe metaplasia intestinal gástrica, significa que também há gastrite atrófica.

Um dos maiores estudos de seguimento populacional identificou que a incidência anual de câncer gástrico em pacientes com MI era de 0,25%, com uma incidência cumulativa em 10 anos de 2,4%. No Japão, onde a incidência de câncer gástrico é maior, um estudo demonstrou uma incidência cumulativa muito maior: 5,3 a 9,8% em 5 anos para MI.

Ter a metaplasia intestinal gástrica não deve ser encarada, portanto, como uma evolução obrigatória para o câncer, mas como uma oportunidade de vigilância para, em caso de evolução para displasia ou adenocarcinoma, ser possível o diagnóstico e tratamento precoces.

Quem são os pacientes com metaplasia intestinal que apresentam maior risco de evolução para neoplasia?

  • Extensão da metaplasia intestinal: OLGIM III e IV. É considerada limitada se restrita a uma região do estômago e extensa se acometer duas (antro e corpo).
  • Histórico familiar de câncer gástrico: Embora a maioria dos cânceres gástricos sejam esporádicos, algum tipo de histórico familiar ocorre em até 10% dos casos. Ter um familiar de primeiro grau com câncer gástrico aumenta o risco em 2 a 10 vezes. Acredita-se que esse risco familiar não se deve apenas a uma suscetibilidade genética herdada, mas também a fatores ambientais ou de estilo de vida compartilhados, bem como ao compartilhamento da mesma cepa citotóxica de H. pylori.
  • Presença de metaplasia intestinal incompleta: o risco de progressão para câncer é até 11x maior quando comparado com metaplasia intestinal completa. Histologicamente, a metaplasia intestinal completa é definida por mucosa do tipo intestino delgado com células absortivas maduras, células caliciformes e borda em escova. Já a metaplasia intestinal incompleta é semelhante ao epitélio do cólon com células colunares “intermediárias” em vários estágios de diferenciação.
  • Gastrite atrófica autoimune.
  • Infecção persistente pelo H. pylori, pois não foi possível a erradicação apesar das tentativas terapêuticas.

Como acompanhar?

Não existe um tratamento específico para metaplasia intestinal até o momento. Uma vez diagnosticada, o foco é controlar os fatores agressores (principalmente tratamento do H. pylori, mas também cessar tabagismo e melhorar dieta) e realizar vigilância endoscópica em casos selecionados que apresentem maior risco de evolução para câncer.

Um dos principais fluxogramas para guiar esse seguimento é o Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), que foi publicado em 2019 pela ESGE (Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal) e está resumido na Figura 3.

Figura 3: Vigilância de pacientes com metaplasia intestinal gástrica. Adaptado do Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), 2019.[1] Atentar que é recomendado que tenha sido realizada endoscopia de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia.

Referências

  1. Pimentel-Nunes P, Libânio D, Marcos-Pinto R, Areia M, Leja M, Esposito G, et al. Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach (MAPS II): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE), European Helicobacter and Microbiota Study Group (EHMSG), European Society of Pathology (ESP), and Sociedade Port. Endoscopy 2019;51:365–88. doi:10.1055/a-0859-1883.
  2. Jencks DS, Adam JD, Borum ML, Koh JM, Stephen S, Doman DB. Overview of Current Concepts in Gastric Intestinal Metaplasia and Gastric Cancer. Gastroenterol Hepatol (N Y) 2018;14:92–101. doi:10.1111/j.1365-2559.1987.tb01893.x.
  3. Sugano K, Moss SF, Kuipers EJ. Gastric Intestinal Metaplasia: Real Culprit or Innocent Bystander as a Precancerous Condition for Gastric Cancer? Gastroenterology 2023;165:1352-1366.e1. doi:10.1053/j.gastro.2023.08.028.
  4. Gupta S, Li D, El Serag HB, Davitkov P, Altayar O, Sultan S, et al. AGA Clinical Practice Guidelines on Management of Gastric Intestinal Metaplasia. Gastroenterology 2020;158:693–702. doi:10.1053/j.gastro.2019.12.003.
  5. White JR, Banks M. Identifying the pre-malignant stomach: From guidelines to practice. Transl Gastroenterol Hepatol 2022;7:1–13. doi:10.21037/tgh.2020.03.03.

Como citar este artigo

Lages RB. Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer? Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/metaplasia-intestinal-gastrica-qual-o-risco-e-o-que-fazer/




O que você precisa saber sobre Espasmo Esofágico Distal

O que é?

É um raro distúrbio motor do esôfago caracterizado por contrações prematuras e rapidamente propagadas ou simultâneas (espásticas) em esôfago distal. Estudos estimam que a prevalência é em torno de 2% a 9% em pacientes com disfagia submetidos a testes de motilidade esofágica, sendo mais comum em mulheres com idade média de 60 anos.

Os sintomas do espasmo esofágico distal foram descritos clinicamente pela primeira vez pelo Dr. Osgood em 1889.[1] Ele descreveu seis pacientes com queixa de dor torácica súbita e disfagia durante a alimentação, com eventual sensação de passagem do alimento para o estômago. Em 1934, Moersch & Camp usaram o termo “espasmo difuso da parte inferior do esôfago” para descrever achados de contrações anormais em oito pacientes com dor torácica e disfagia.[2] Desde então, conforme avanços tecnológicos e melhorias nas técnicas de avaliação diagnóstica, sua definição passou por revisões ao longo do tempo.

Fisiopatologia

O espasmo esofágico distal surge por uma coordenação anormal da musculatura lisa esofágica, provavelmente decorrente de um desequilíbrio entre as vias inibitórias (óxido nítrico – NO) e excitatórias (colinérgicas). A depleção de NO em indivíduos controle, por exemplo, é capaz de induzir contrações esofágicas distais simultâneas, confirmando o papel de uma redução no tônus inibitório. Em contraste, a reposição de NO prolonga a latência distal em pacientes com espasmo.

Essa fisiopatologia parece ser compartilhada pela acalasia, onde a perda de neurônios mioentéricos inibitórios leva ao comprometimento do relaxamento do esfíncter esofágico inferior. Essa relação e alguns relatos de casos questionam se o espasmo poderia progredir para acalasia (principalmente tipo III). No entanto, nestes relatos a avaliação foi realizada primordialmente pela manometria convencional, que, por ter menos canais, pode subdiagnosticar a acalasia devido à possibilidade de pseudorelaxamento do esfíncter inferior do esôfago.

O espasmo esofágico pode estar associado à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Em pacientes com espasmo, a DRGE foi detectada pela pHmetria ou endoscopia em 38% dos casos. Contudo, ainda não é bem definido a causalidade e o papel da terapia antissecretora nesta situação. O uso de opioides também claramente podem afetar a motilidade esofágica e, portanto, estas medicações devem ser descartadas neste contexto. Além disso, séries de caso demonstram que o espasmo pode estar associado a doenças psiquiátricas.

Como diagnosticar?

Quando suspeitar?

A apresentação clínica é heterogênea e não específica. As queixas mais comuns são disfagia (55%) e dor torácica não cardíaca (29%), mas também pode se apresentar com regurgitação, pirose, perda de peso, náuseas e vômitos. Tipicamente, os sintomas são intermitentes, durando de segundo a minutos, e podem ou não estar relacionados ou não a refeições.

Quais exames pedir?

  • Endoscopia digestiva alta: Exame inicial fundamental para excluir diagnósticos diferenciais, tais como neoplasia, anéis e membranas, hérnia de hiato, esofagite eosinofílica. Embora a endoscopia não seja realizada para confirmar o espasmo em si, ela pode apresentar comportamentos sugestivos de distúrbio de motilidade, como contrações esofágicas distais espásticas, vigorosas e/ou descoordenadas, com retenção de saliva ou líquido no lúmen esofágico. Estas características, no entanto, podem ser facilmente ignoradas dada a natureza intermitente do espasmo esofágico.
  • Esofagograma baritado (Raio-X contrastado esôfago-estômago-duodeno, seriografia): É outro método diagnóstico adjuvante na disfagia. A aparência de “saca-rolhas” ou “rosário” é um achado clássico (Figura 1). Além disso, é capaz de determinar anormalidades anatômicas que podem estar associadas ao espasmo, tais como divertículo esofágico.
if(!document.querySelector('script[src="https://player.pandavideo.com.br/api.v2.js"]')){let s=document.createElement('script');s.src='https://player.pandavideo.com.br/api.v2.js'; s.async=true; document.head.appendChild(s);} window.pandascripttag = window.pandascripttag || [];window.pandascripttag.push(function (){const panda_id_player = 'panda-a1e2e854-4b37-43a9-8dfd-158739eb9f5c';const p=new PandaPlayer(panda_id_player,{onReady(){p.loadWindowScreen({panda_id_player});}});})

Figura 1. Vídeo com esofagograma evidenciando “esôfago em saca-rolha”, sugestivo de espasmo esofágico distal

  • Manometria esofágica: É considerada o padrão-ouro para o diagnóstico. Na manometria de alta resolução, o ponto-chave para diagnóstico de espasmo passou a ser o tempo de latência distal (DL), que é definido como o tempo entre o relaxamento do esfíncter esofágico superior induzido pela deglutição e o ponto de desaceleração contrátil no esôfago distal, onde a velocidade de propagação diminui (Figura 2).
ESE: Esfíncter superior do esôfago; BK: Quebra (Break); DCI: Integral de contratilidade distal (Distal Contractile Integral); DL: Latência distal (Distal latency); IRP: Pressão integral de relaxamento (Integrative Relaxation Pressure); JEG: Junção esofagogástrica.
Figura 2. Registro de uma deglutição normal captada por aparelho de manometria de alta resolução com sistema de perfusão, mostrando as marcações dos parâmetros tradicionais da Classificação de Chicago.

Uma contração com DL inferior a 4,5 segundos recebeu o termo “contração prematura” (Figura 3). Este valor de normalidade foi estabelecido para o sistema de estado sólido e é utilizado como referência para a Classificação de Chicago 4.0. Contudo, o sistema de manometria de alta resolução por perfusão ainda é o mais frequentemente usado no Brasil devido à sua maior durabilidade e ao menor custo do cateter e do sistema de transdução de pressão associado.

Buscando valores normativos para este sistema de perfusão em nossa população, trabalhos recentes realizaram manometria em voluntários assintomáticos e identificaram pontos de corte de 5,8 segundos[3] e 6,2 segundos[4], sugerindo que talvez estejamos subdiagnosticando o espasmo ao utilizar o valor de DL de 4,5 segundos em exames com o aparelho de perfusão. No entanto, é necessária a validação destes valores em pacientes para definir se eles realmente conseguem se correlacionar com os sintomas e com os diagnósticos propostos pela Classificação de Chicago 4.0.

Conforme a classificação de Chicago 4.0 (clique aqui), o espasmo esofágico distal é caracterizado pela presença de pelo menos 20% de contrações prematuras em esôfago distal, juntamente com uma pressão normal de relaxamento do esfíncter inferior. Para que o diagnóstico manométrico seja clinicamente relevante, é necessário que existam sintomas compatíveis.

Esta definição de Chicago mudou o foco da velocidade peristáltica para o DL como critério definidor do espasmo. Alguns autores destacam, contudo, que a presença de ondas simultâneas, mesmo com o DL normal, ainda poderia também ser considerada no diagnóstico de espasmo.

Figura 3. Registro de uma contração prematura (DL < 4,5 segundos) captada por aparelho de manometria de alta resolução com sistema de perfusão.

  • FLIP: Exame ainda pouco disponível no Brasil, que discutimos melhor AQUI. Sua principal utilidade no contexto é avaliar o esfíncter inferior do esôfago e garantir que não há uma obstrução ao fluxo, especialmente porque o espasmo compartilha uma via fisiopatológica comum com a acalasia espástica.

Como tratar?

Devido à falta de ensaios clínicos suficientes e às manifestações heterogêneas, não há uma recomendação muito bem definida para o espasmo esofágico. As opções são:

  • Tratamento medicamentoso

    • Inibidores de bomba de prótons: Considerar naqueles pacientes com suspeita de DRGE;
    • Relaxantes da musculatura lisa: nitratos (ex: dinitrato de isossorbida 5-10 mg sublingual 5 a 10 minutos antes de refeições no caso de disfagia ou sob demanda se dor torácica), inibidores de 5-fosfodiesterase (sildenafil), bloqueadores de canal de cálcio (diltiazem 180 a 240 mg/dia ou nifedipino 10-30 mg aproximadamente 10-15 minutos antes das refeições)
    • Antidepressivos tricíclicos: Principalmente se a dor torácica for o sintoma principal. Ex: imipramina, trazodona, amitriptilina

  • Tratamento endoscópico

    • Miotomia endoscópica peroral (POEM)
    • Toxina botulínica: 100 UI em cada quadrante do EIE / esôfago distal. A eficácia geralmente é limitada a 6-12 meses.
    • Dilatação pneumática esofágica: considerar apenas se disfagia associada. Sucesso questionável.

  • Tratamento cirúrgico: Miotomia cirúrgica laparoscópica (Heller).

A Figura 4 traz um fluxograma com a abordagem sugerida para o espasmo esofágico distal.

Figura 4: Algoritmo proposto para a abordagem do espasmo esofágico difuso.

Referências

  1. Osgood H. A Peculiar Form of Œsorhagismus. Bost Med Surg J 1889;120:401–5. doi:10.1056/NEJM188904251201701.
  2. Moersch HJ, Camp JD. Diffuse Spasm of the Lower Part of the Esophagus. Ann Otol Rhinol Laryngol 1934;43:1165–73. doi:10.1177/000348943404300425.
  3. Domingues GR, Michelsohn NH, Viebig RG, Chinzon D, Nasi A, Andrade CG, et al. Normal values of esophageal high-resolution manometry: A Brazilian multicenter study. Arq Gastroenterol 2020;57:209–15. doi:10.1590/s0004-2803.202000000-40.
  4. da Silva RMB, Herbella FAM, Gualberto D. Normative values for a new water-perfused high resolution manometry system. Arq Gastroenterol 2018;55:30–4. doi:10.1590/s0004-2803.201800000-40.
  5. Zaher EA, Patel P, Atia G, Sigdel S. Distal Esophageal Spasm: An Updated Review. Cureus 2023;15:1–7. doi:10.7759/cureus.41504.
  6. Valdovinos-Díaz MA, Ortega AJ, Bashashati M, McCallum RW. Esophageal spasm and hypercontractile motility disorders. Handb. Gastrointest. Motil. Disord. Gut-Brain Interact., Elsevier; 2023, p. 47–58. doi:10.1016/B978-0-443-13911-6.00021-9.
  7. Akhtar TS, Nawaz A, Nisar G, Khan AR, Abbas S. Distal esophageal spasm (DES) can be achalasia in evolution: A case report. J Clin Images Med Case Reports 2023;4:2252. doi:www.doi.org/10.52768/2766-7820/2252.
  8. Gorti H, Samo S, Shahnavaz N, Qayed E. Distal esophageal spasm: Update on diagnosis and management inthe era of high-resolution manometry. World J Clin Cases 2020;8:1026–32.
  9. Khalaf M, Chowdhary S, Elias PS, Castell D. Distal Esophageal Spasm: A Review. Am J Med 2018;131:1034–40. doi:10.1016/j.amjmed.2018.02.031.
  10. Yadlapati R, Kahrilas PJ, Fox MR, Bredenoord AJ, Prakash Gyawali C, Roman S, et al. Esophageal motility disorders on high‐resolution manometry: Chicago classification version 4.0 ©. Neurogastroenterol Motil 2021;33. doi:10.1111/nmo.14058.

Como citar este artigo

Lages RB. O que você precisa saber sobre Espasmo Esofágico Distal Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/esofago/o-que-voce-precisa-saber-sobre-espasmo-esofagico-distal/ 




Atualizações no diagnóstico de DRGE: Consenso de Lyon 2.0 (2023)

Desde 2018, o consenso de Lyon tornou-se a principal referência para definição de critérios para diagnóstico de certeza da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Contudo, a ciência está em constante evolução e, portanto, acaba de ser publicada a versão 2.0 deste consenso, atualizando as recomendações conforme os resultados de estudos dos últimos cinco anos. Caso queira acesso a esta nova versão na íntegra, basta clicar aqui. O Gastropedia, contudo, traz aqui os highlights para facilitar sua vida.

Qual a relevância?

A presença de sintomas típicos de DRGE, por vezes, é suficiente para a prescrição de terapia medicamentosa com antissecretores (ex: inibidores de bomba de prótons, bloqueadores ácidos competitivos de potássio). Contudo, um diagnóstico inquestionável de DRGE é recomendado para investigar sintomas não típicos, avaliar adequadamente pacientes com sintomas refratários, justificar o uso prolongado de medicamentos ou indicar terapia invasiva.

Quais as principais mudanças?

  • Esofagite erosiva Los Angeles grau B passa a ser evidência conclusiva para diagnóstico de DRGE, seguindo tendência das publicações dos guidelines de 2022 da AGA (American Gastroenterological Association) e da ACG (American College of Gastroenterology clique aqui e veja resumo que publicamos previamente no Gastropedia!);
  • Definição de métricas para usar na pHmetria prolongada sem fio;
  • Definição de parâmetros para diagnóstico de DRGE refratária em exames realizados em uso de tratamento antissecretor;
  • Reforça que pacientes com sintomas atípicos isolados têm uma menor probabilidade de associação com DRGE e que, portanto, devem preferencialmente ser investigados com endoscopia e monitorização prolongada de refluxo em detrimento de terapia empírica (você pode ler mais sobre o tema clicando aqui);

Quando eu tenho um diagnóstico de certeza de DRGE?

  • Critérios em endoscopia digestiva alta (para maximizar o rendimento diagnóstico, realizar 2 a 4 semanas após suspender terapia antissecretora):

    • Esofagite erosiva graus B, C ou D;
    • Esôfago de Barrett confirmado em biópsia;
    • Estenose esofágica péptica.

  • Critérios em exames de monitorização prolongada de refluxo

    • Tempo de exposição ácida total (AET) > 6%
    • > 80 episódios de refluxo
    • Média noturna basal da impedância (MNBI) < 1500 Ω

  • Quando há evidências limítrofes ou inconclusivas nos exames de endoscopia e de monitorização prolongada de refluxo apoiadas por evidências adjuvantes.

Devo suspender ou não o IBP para realizar a pHmetria?

Na maioria das vezes, o exame de monitorização prolongada do refluxo deve ser realizado após a suspensão da terapia antissecretora por pelo menos 7 dias. Contudo, suspender ou não o IBP irá depender dos exames prévios e do objetivo do exame, conforme descrito a seguir:

  • Exame SEM terapia antissecretora por pelo menos 7 dias: Utilizar quando eu ainda quero confirmar DRGE (no caso, por exemplo, de investigação em paciente com endoscopia sem esofagite erosiva ou com Los Angeles A);
  • Exame EM terapia antissecretora: Utilizar quando eu já tenho certeza de que tem DRGE, mas quero investigar porque os sintomas persistem. Neste caso, o uso de impedâncio-pHmetria pode ser superior, uma vez que possibilita a identificação de refluxos não-ácidos ou fracamente ácidos.

A seguir, segue um resumo dos achados que estabelecem evidência conclusivas para DRGE conforme Consenso de Lyon 2.0.

Figura 1: Definições para diagnóstico de certeza da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) conforme Consenso de Lyon 2.0. Adaptado de Gyawali CP et al, 2023.

Referências

  1. Gyawali CP, Yadlapati R, Fass R, et al. Updates to the modern diagnosis of GERD: Lyon consensus 2.0. Gut. Epub ahead of print 21 Sep 2023. doi: 10.1136/gutjnl-2023-330616

Como citar este artigo

Lages RB. Atualizações no diagnóstico de DRGE: Consenso de Lyon 2.0 (2023) Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/esofago/atualizacoes-no-diagnostico-de-drge-consenso-de-lyon-2-0-2023/




Gastroparesia: quando pensar, por que ocorre e como diagnosticar

Quando pensar?

Gastroparesia significa literalmente “paralisia do estômago”. É um distúrbio caracterizado por contrações gástricas mais fracas e lentas do que o necessário para digerir a comida e passá-la para o intestino, fazendo com que a comida fique muito tempo no estômago.

Náuseas e vômitos são, sem dúvidas, os sintomas cardinais na gastroparesia. Contudo, outros sintomas dispépticos, tais como plenitude pós-prandial, saciedade precoce, dor epigástrica, inchaço (“bloating”) na parte superior do abdome e eructação estão frequentemente presentes. Esses sintomas, no entanto, podem se sobrepor amplamente com os de dispepsia funcional, tornando o diagnóstico mais desafiador.

  • Nos Estados Unidos, com base em banco de dados de sinistros de seguro, a prevalência padronizada de gastroparesia foi de 267,7 por 100.000 adultos
  • a prevalência de gastroparesia “definitiva” (indivíduos com sintomas persistentes por mais de 3 meses + cintilografia confirmatória) foi de 21,5 por 100.000 pessoas.
  • A análise demonstrou uma prevalência duas vezes maior em mulheres e maior entre 58 a 64 anos. (Ye Y et al. 2022).

As etiologias mais frequentes de gastroparesia são diabetes mellitus (37.5%–57.4%), idiopática (11.3%–39.4%), medicamentos (11.8%–19.6%) e pós-cirúrgico (1.1%– 15.0%). Outras etiologias possíveis associadas são colagenoses, doenças neurológicas e hipotireoidismo.

Quando consideramos especificamente os diabéticos, a incidência cumulativa estimada em 10 anos é de 5,2% em diabetes mellitus tipo 1 e de 1,0% em tipo 2 (apesar da gastroparesia por DM2 ser muito mais prevalente, visto esse tipo de diabetes ser muito mais comum). Na Tabela 1, estão listadas as principais etiologias.

Etiologia Prevalência estimada
Diabetes mellitus 37,5 – 57,4%
Idiopática (muitos desses pacientes provavelmente tiveram um insulto infeccioso ou inflamatório prévio) 11,3 – 39,4%
Medicamentos (opioides, anticolinérgicos, agonistas dopaminérgicos, análogos de GLP-1, agonistas canabinoides, bloqueadores de canais de cálcio) 11,8 – 19,6%
Pós-cirúrgico (vagotomia, fundoplicatura, bariátrica, gastrectomia parcial, colecistectomia, transplante cardíaco ou pulmonar, ablação por radiofrequência) 1,1 – 15,0%
Doenças do tecido conjuntivo (esclerose sistêmica, lúpus) 5,0%
Doenças neurológicas (Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla, distrofia muscular, paralisia cerebral)
Doenças endocrinológicas (Hipotireoidismo descompensado, insuficiência adrenal, hipopituituarismo)
Radiação
Paraneoplásico
Doença infiltrativa (linfoma, amiloidose)
Doenças vasculares
Tabela 1: Principais etiologias de gastroparesia.

Portanto, a gastroparesia deve ser considerada em pacientes com sintomas crônicos de náusea, vômito, saciedade precoce e/ou dor abdominal, principalmente naqueles com diabetes, histórico de cirurgias abdominais ou torácicas, colagenoses, doenças neurológicas ou em uso de medicamentos de risco. Além disso, a gastroparesia pode estar presente em até 10% dos pacientes com doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) refratária.

Outra dica importante é considerar este diagnóstico naqueles que, apesar de relatarem jejum adequado para o exame, apresentam endoscopia digestiva alta com grande quantidade de resíduos gástricos sem sinais de obstrução.

Por que ocorre?

A gastroparesia decorre de qualquer alteração que induza disfunção neuromuscular do trato gastrointestinal, uma vez que o esvaziamento gástrico reflete a coordenação de diferentes regiões do estômago e duodeno, bem como a modulação extrínseca do sistema nervoso central. Isso inclui relaxamento fúndico para acomodação do alimento, contrações antrais, relaxamento pilórico e coordenação do antro, piloro e duodeno, conforme descrito na Figura 1. Além disso, há evidências de que tanto a hipersensibilidade visceral quanto a central são relevantes de um ponto de vista fisiopatológico para alguns pacientes com gastroparesia.

Muitos dos pacientes com gastroparesia idiopática provavelmente tiveram um insulto infeccioso ou inflamatório prévio. Essa hipótese é sustentada pela observação de que alguns pacientes relataram início súbito de sintomas após um pródromo viral, inclusive com relatos pós-COVID-19. A gastroparesia pós-viral geralmente melhora ao longo de um ano. No entanto, uma pequena proporção de pacientes com infecções por vírus como citomegalovírus, herpes vírus, norovírus, varicela zoster e Epstein-Barr pode estar associada a disautonomia aguda, que resulta em distúrbio generalizado da motilidade, levando a levando a sintomas persistentes.

Figura 1:
Fisiopatologia dos mecanismos envolvidos na geração dos sintomas de gastroparesia. Adaptado de Lacy BE et al, 2022 [2]

Como diagnosticar?

Uma anamnese detalhada, incluindo uma revisão de medicamentos e fatores de risco, é o ponto de partida para um adequado diagnóstico de gastroparesia. Posteriormente, o exame físico pode excluir uma causa orgânica (por exemplo, uma massa, evidência de obstrução intestinal parcial), identificar etiologias subjacentes (por exemplo, esclerodermia) e avaliar sinais de desnutrição. Exames laboratoriais básicos devem ser realizados (hemograma completo, perfil metabólico básico, TSH, hemoglobina glicada).

A endoscopia digestiva alta é obrigatória para descartar uma causa mecânica dos sintomas. Biópsias podem ser realizadas, caso necessário. Em caso de suspeita clínica, também podem ser necessários exames de imagem para excluir obstrução mecânica, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética de abdome (considerar realização de protocolos com enterografia).

O exame padrão-ouro para o diagnóstico de gastroparesia é a cintilografia para determinação do tempo de esvaziamento gástrico (Figura 2), com uma refeição sólida radiomarcada. Trata-se do método mais custo-efetivo, simples e disponível para avaliar a motilidade gástrica.

Medicações que afetam a motilidade gástrica devem ser interrompidas pelo menos 48 horas antes do exame. Em pacientes diabéticos, a hiperglicemia deve ser tratada antes do exame – o teste deve ser realizado apenas com glicemia capilar inferior a 180 mg/dL.

Estabeleceu-se que os valores de referência compatíveis com retardo de esvaziamento gástrico são:

  • Retenção gástrica > 60% em 2 horas;
  • E/OU Retenção gástrica > 10% em 4 horas.

Apesar de classicamente não haver correlação entre intensidade de sintomas com as taxas de esvaziamento gástrico, a retenção gástrica em 4 horas pode ser classificada em:

  • Leve: retenção de 10 a 15%;
  • Moderada: retenção de 15 a 35%;
  • Grave: retenção > 35%.

É essencial que a avaliação do esvaziamento seja continuada por 4 horas após a ingestão da refeição, pois essa medida tem uma sensibilidade maior quando comparada com a avaliação em 2 horas.

Figura 2:
Cintilografia de esvaziamento gástrico mostrando retenção importante de radiofármaco 2 e 4 horas após a ingestão de 99mTc-enxofre coloidal misturado em alimento sólido (2 claras de ovos com sal + 2 fatias de pão, 30g de geleia e 120ml de água)

Outros métodos disponíveis para medir o esvaziamento gástrico são cápsulas de motilidade sem fio e testes respiratórios com isótopos estáveis (13C espirulina). No entanto, a reprodutibilidade é baixa a moderada e os testes são demorados e caros. Outra opção interessante para avaliar a motilidade gástrica é a eletrogastrografia, mas que também é um método pouco disponível.

Referências

  1. Ye Y, Yin Y, Huh SY, Almansa C, Bennett D, Camilleri M. Epidemiology, Etiology, and Treatment of Gastroparesis: Real-World Evidence From a Large US National Claims Database. Gastroenterology 2022;162:109-121.e5. doi:10.1053/j.gastro.2021.09.064.
  2. Lacy BE, Tack J, Gyawali CP. AGA Clinical Practice Update on Management of Medically Refractory Gastroparesis: Expert Review. Clin Gastroenterol Hepatol 2022;20:491–500. doi:10.1016/j.cgh.2021.10.038.
  3. Lacy BE, Cangemi DJ. Controversies in Gastroparesis: Discussing the Sticky Points. Am J Gastroenterol 2021;116:1572–6. doi:10.14309/ajg.0000000000001243.
  4. Sato H, Grover M. Gastroparesis and Functional Dyspepsia: Spectrum of Gastroduodenal Neuromuscular Disorders or Unique Entities? Gastro Hep Adv 2023;2:438–48. doi:10.1016/j.gastha.2022.10.005.
  5. Camilleri M, Kuo B, Nguyen L, Vaughn VM, Petrey J, Greer K, et al. ACG Clinical Guideline: Gastroparesis. Am J Gastroenterol 2022;117:1197–220. doi:10.14309/ajg.0000000000001874.
  6. Camilleri M, Chedid V, Ford AC, Haruma K, Horowitz M, Jones KL, et al. Gastroparesis. Nat Rev Dis Prim 2018;4. doi:10.1038/s41572-018-0038-z.
  7. Schol J, Wauters L, Dickman R, Drug V, Mulak A, Serra J, et al. United European Gastroenterology (UEG) and European Society for Neurogastroenterology and Motility (ESNM) consensus on gastroparesis. United Eur Gastroenterol J 2021;9:287–306. doi:10.1002/ueg2.12060.
  8. Cangemi DJ, Lacy BE. Gastroparesis : Myths , Misconceptions , and Management 2023:65–78.

Como citar este artigo

Lages RB. Gastroparesia: quando pensar, por que ocorre e como diagnosticar Gastropedia 2023, vol. 2. Disponível em: 
gastropedia.pub/pt/sem-categoria/gastroparesia-quando-pensar-por-que-ocorre-e-como-diagnosticar/




Live Esofagite Eosinofílica

Caros,

Segue abaixo os slides com as principais mensagens passadas durante nossa live de esofagite eosinofílica. Se você perdeu a live ou se quiser rever alguns trechos clique nesse link: LIVE ESOFAGITE EOSINOFÍLICA

Bons estudos!




Minha tosse é por causa do refluxo?

Não é incomum o gastroenterologista receber no consultório pacientes encaminhados por queixa de tosse crônica e achado de laringite posterior. Mas você sabe como proceder nestes casos?

Alguns estudos sugerem que a tosse crônica pode de fato ser devido à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) em 21 a 41% dos casos. Teoricamente, o refluxo pode causar irritação e inflamação da mucosa do trato aerodigestivo superior, seja por contato direto ou por reflexo neuromediado. O diagnóstico, no entanto, pode ser mais desafiador do que parece, pois são sintomas pouco específicos e que se confundem com outras patologias.

Abaixo, seguem algumas dicas chaves para entender melhor a relação tosse x DRGE.

1. A tosse crônica pode ter diversas etiologias

Uma avaliação multidisciplinar deve ser realizada e outras etiologias não devem ser negligenciadas, tais como:

  • Irritantes ambientais ou ocupacionais
  • Tabagismo
  • Uso de IECAs (inibidor da enzima de conversão de angiotensina)
  • Asma
  • Síndrome da tosse das vias aéreas superiores (antigamente denominada Síndrome de gotejamento pós-nasal) devido a uma variedade de condições rinossinusais
  • Bronquite eosinofílica não asmática
  • Doenças pulmonares supurativas (bronquiectasias e abscessos).

2. Laringite posterior não é sinônimo de refluxo

A inflamação laríngea posterior é classicamente considerada como sinal de refluxo laringofaríngeo. No entanto, outros fatores também poderiam estar implicados com esta inflamação, tais como tabagismo, abuso de álcool, infecções virais ou bacterianas, alergias, sinusite crônica e abuso da voz. Além disso, diferentes estudos enfatizaram que esses sinais são pouco precisos por causa de uma baixa concordância interobservador, variável confiabilidade intra-observador e alta prevalência em indivíduos saudáveis.

Milstein e colaboradores, por exemplo, avaliaram exames de laringoscopia flexível de 52 indivíduos não fumantes e sem sintomas de DRGE e identificaram que 93% deles apresentavam ao menos um sinal de irritação tecidual, com 76,3% revelando edema ou eritema do complexo aritenóideo. Essa alta prevalência de achados em pessoas assintomáticas, levanta, portanto, o questionamento sobre o quão específicos e relevantes estes achados seriam.

3. A monitorização de pH proximal tem resultados controversos

Os primeiros estudos de teste de pH orofaríngeo foram promissores e pareciam prever o sucesso da cirurgia antirrefluxo. No entanto, estudos subsequentes falharam em identificar uma correlação significativa entre eventos de refluxo orofaríngeo e eventos de refluxo na impedâncio-pHmetria, sugerindo que a diminuição do pH orofaríngeo pode ser devido a outros fatores além do refluxo gastroesofágico. Alguns estudos também não identificaram diferenças significativas na exposição ao ácido orofaríngeo entre os pacientes que responderam ao IBP, os que responderam parcialmente e os que não responderam.

4. A resposta ao IBP não é tão satisfatória

Outro ponto importante sobre as manifestações extraesofágicas é que a resposta ao tratamento com inibidores de bomba de prótons (IBPs) não é tão boa. Enquanto é esperado que os sintomas típicos irão resolver em 4 a 8 semanas, a literatura sugere que a melhora da tosse pode demorar até 3 meses. Algumas metanálises inclusive não foram capazes de demonstrar benefícios do tratamento empírico de IBP em pacientes com laringite ou tosse crônica.

Utilizar doses maiores de IBP (isto é, duas vezes ao dia) parece ser mais eficaz para controle de sintomas extraesofágicos. Em um estudo de coorte prospectivo (Park et al, 2005), 54% dos pacientes com sintomas extraesofágicos que não responderam ao IBP uma vez ao dia tiveram melhora dos sintomas após 8 semanas adicionais de IBP duas vezes ao dia.

5.Recomendações gerais

Os algoritmos de diagnóstico para manifestações extraesofágicas são complexos porque elas são heterogêneas e muitas vezes se sobrepõem a outras condições. Conforme os Guidelines do American College of Gastroenterology (2022), as principais recomendações são:

  • Pacientes com queixas extraesofágicas + sem sintomas típicos DRGE – Realizar algum teste objetivo para DRGE antes da terapia empírica com IBP. Se a endoscopia for normal, considere monitorização prolongada do refluxo.
  • Pacientes com queixas extraesofágicas + sintomas típicos DRGE – Terapia empírica com IBP em dose dobrada (duas vezes ao dia) por 8 a 12 semanas antes de teste adicional.
  • Confirmar que existe DRGE não confirma que a DRGE é a causa dos sintomas extraesofágicos.
  • Os achados da laringoscopia NÃO são suficientes para diagnóstico de refluxo laringofaríngeo. O uso da laringoscopia tem muitas limitações, como visualização de inflamação em voluntários assintomáticos, baixa reprodutibilidade e falta de correlação entre achados e sintomas. Testes adicionais devem, portanto, ser realizados para o correto diagnóstico.
  • A monitorização de pH em orofaringe ou faringe com sondas de dois canais tem resultados variáveis e não deve ser recomendada de rotina. A dosagem de pepsina salivar também não tem evidências suficientes para ser utilizada.

O fluxograma 2 tenta sistematizar essas diretrizes.

Fluxograma 2: Algoritmo diagnóstico para sintomas extraesofágicos em Doença do Refluxo Gastroesofágico (American College of Gastroenterology, 2022)

Referências

  1. Ghisa M, Barberio B, Savarino V, Marabotto E, Ribolsi M, Bodini G, et al. The Lyon Consensus: Does It Differ From the Previous Ones? J Neurogastroenterol Motil 2020;26:311–21. doi:10.5056/jnm20046.
  2. Chen JW, Vela MF, Peterson KA, Carlson DA. AGA Clinical Practice Update on the Diagnosis and Management of Extraesophageal Gastroesophageal Reflux Disease: Expert Review. Clin Gastroenterol Hepatol 2023. doi:10.1016/j.cgh.2023.01.040.
  3. Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, Greer KB, Yadlapati R, Spechler SJ. ACG Clinical Guideline for the Diagnosis and Management of Gastroesophageal Reflux Disease. Am J Gastroenterol 2022;117:27–56. doi:10.14309/ajg.0000000000001538.
  4. Kahrilas PJ, Altman KW, Chang AB, Field SK, Harding SM, Lane AP, et al. Chronic Cough Due to Gastroesophageal Reflux in Adults: CHEST Guideline and Expert Panel Report. Chest 2016;150:1341–60. doi:10.1016/j.chest.2016.08.1458.
  5. Milstein CF, Charbel S, Hicks DM, Abelson TI, Richter JE, Vaezi MF. Prevalence of laryngeal irritation signs associated with reflux in asymptomatic volunteers: Impact of endoscopic technique (rigid vs. flexible laryngoscope). Laryngoscope 2005;115:2256–61. doi:10.1097/01.mlg.0000184325.44968.b1.
  6. Park W, Hicks DM, Khandwala F, Richter JE, Abelson TI, Milstein C, et al. Laryngopharyngeal reflux: Prospective cohort study evaluating optimal dose of proton-pump inhibitor therapy and pretherapy predictors of response. Laryngoscope 2005;115:1230–8. doi:10.1097/01.MLG.0000163746.81766.45

Como citar este artigo

Lages RB. Minha tosse é por causa do refluxo? Gastropedia 2023, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/minha-tosse-e-por-causa-do-refluxo




Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder?

A infecção pelo H. pylori e o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) são amplamente aceitos como as principais causas de úlcera péptica. Contudo, com a erradicação mais efetiva, as melhores condições sanitárias e o uso generalizado de antibióticos, a prevalência do H. pylori está caindo e, consequentemente, há um aumento no diagnóstico de úlceras não-H. pylori.

A proporção de úlceras não-H. pylori e não-AINEs/aspirina varia bastante (de 2 a 35%) de acordo a época, o país e a metodologia dos diferentes estudos:

  • Um estudo prospectivo multicêntrico francês publicado há 1 década incluiu 713 pacientes e concluiu que 1 em 5 úlceras não era relacionada nem ao H. pylori nem ao uso de AINEs/aspirina.
  • Um estudo brasileiro retrospectivo publicado em 2015 (De Carli, DM et al), por sua vez, identificou que, de 1997 a 2000, 73,3% das úlceras pépticas eram por H. pylori positivo, 3,5% por AINEs, 12,8% por H. pylori + AINEs e 10,4% idiopáticas, ao passo que, de 2007 a 2010, essa proporção passou, respectivamente, a ser de 46,4%, 13,3%, 19,9% e 20,5%.

Mas quais seriam as outras possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais?

Tabela 1: Possíveis etiologias para úlceras gástricas e duodenais não associadas ao Helicobacter pylori e ao uso de AINE

Etiologia Comentário
Neoplasia (Adenocarcinoma, Linfoma, GIST, Leiomiossarcoma) Deve-se sempre considerar a possibilidade de malignidade no caso de úlceras gástricas (inclusive por este motivo devemos sempre biopsiar úlceras gástricas e sempre realizar exame para confirmar a sua cicatrização). O adenocarcinoma é o mais prevalente (95% dos casos). Características mais suspeitas são: fundo necrótico e bordas elevadas e irregulares.
Síndrome de Zollinger-Ellison Secundária a gastrinoma (único ou multifocal, localizado em pâncreas ou delgado). Paciente cursa com dor abdominal + diarreia, com múltiplas úlceras geralmente refratárias ou recorrentes. 25 a 30% dos pacientes que desenvolvem gastrinoma apresentam neoplasia endócrina múltipla tipo 1 (NEM1 – hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise).
Medicações não AINEs (Bifosfonatos, Corticoides, Clopidogrel, inibidores seletivos das recaptação de serotonina, cloreto de potássio) A associação isolada destas medicações com doença ulcerosa é controversa, mas certamente apresentam ação sinérgica com o uso de AINEs
Infecções – Colonização duodenal pelo H. pylori- Helicobacter não-pylori: o mais frequente é o Helicobacter heilmannii- Vírus (herpes simples tipo I, Citomegalovírus, EBV): a biópsia será definidora para o diagnóstico. – Sífilis- Tuberculose

Mastocitose sistêmica Caracterizada por infiltração de mastócitos em muitos tecidos e sintomas de rubor, prurido, taquicardia, dor abdominal e diarreia. Dispepsia, úlceras e duodenite ocorrem em 30 a 50% dos casos. Considera-se que a produção de histamina pelos mastócitos resulte em estimulação excessiva da produção de ácido. A triptase sérica pode estar aumentada. Na biópsia da úlcera, pode-se identificar infiltração da mucosa por mastócitos.
Isquêmicas (Doença arterial ou venosa / Vasculites) As úlceras isquêmicas podem resultar de insuficiência vascular secundária a hipotensão, vasculite ou tromboembolismo. No entanto, elas são raras, pois há uma rica circulação colateral na região. As biópsias podem sugerir isquemia e, em caso de suspeita, uma angiotomografia abdominal pode auxiliar.
Uso de drogas Cocaína, crack e anfetaminas provocam isquemia tecidual por vasoconstricção
Pós-cirúrgico Após gastrectomia subtotal (úlcera de borda anastomótica). A etiologia pode ser multifatorial:- Isquemia local- Tensão anastomótica- Síndrome do antro gástrico retido: quando uma pequena porção da mucosa antral contendo células G permanece na porção proximal do duodeno. Essa mucosa do antro gástrico no final da alça duodenal é estimulada, então, pelo ambiente duodenal alcalino a secretar continuamente gastrina.
Doenças granulomatosas (Crohn, Sarcoidose) – Apenas de 0,3% a 5% dos casos de doença de Crohn envolvem o trato gastrointestinal superior.
– O envolvimento gastrointestinal é muito raro na sarcoidose, mas quando ocorre acomete principalmente o estômago. A sarcoidose gástrica pode se apresentar como úlcera ou como envolvimento difuso (semelhante à linite plástica).
Hiperparatireoidismo O cálcio estimula a liberação da gastrina, mas não se tem certeza sobre a relevância clínica deste efeito.
Gastroenterite eosinofílica É uma condição clínica rara e heterogênea, que pode envolver qualquer segmento do trato gastrointestinal. A patogênese ainda não é bem estabelecida, mas há associação com quadros atópicos, como asma, rinite e eczema. Os exames laboratoriais apresentam eosinofilia no sangue periférico em 70 a 80% dos casos e aumento de IgE sérico em até dois terços dos pacientes. A identificação de densa infiltração de eosinófilos na biópsia é grande marcador diagnóstico.
Úlcera de estresse Úlcera que ocorre devido à hospitalização, principalmente em pacientes na unidade de terapia intensiva.
Doenças crônicas (Cirrose, doença renal crônica, diabetes) Esses pacientes geralmente têm taxas de sucesso de erradicação de H. pylori mais baixas e menor eficácia de IBP do que aqueles sem doenças crônicas
Radioterapia O estômago e o duodeno às vezes estão envolvidos no campo de radiação durante o tratamento de alguns tumores. As úlceras induzidas por radiação são difíceis de tratar e geralmente não cicatrizam com agentes secretores antiácidos convencionais, podendo ser necessários procedimento cirúrgicos.
Idiopática

Como investigar, então, a etiologia da úlcera?

1. Confirmar que realmente não há H. pylori:

é preciso se certificar de que o H. pylori foi pesquisado de forma adequada. Considera-se que a principal causa de úlcera H. pylori negativa é na verdade o erro na detecção do microrganismo. Devemos checar:

  • O exame foi realizado em contexto de sangramento? Se sim, o ideal é repetir. A úlcera péptica hemorrágica pode produzir até 25% de resultados falso negativos no teste da urease;
  • O paciente suspendeu IBP e antibióticos antes da endoscopia? Para fins práticos, deve-se retardar os testes diagnósticos de H. pylori por 4 semanas após o uso de antibióticos, preparações com bismuto, IBP e bloqueadores H2.
  • Qual método utilizado para pesquisa? Se possível, é interessante realizar pelo menos dois testes simultâneos para aumentar a sensibilidade. A pesquisa histológica deve incluir pelo menos duas biópsias de antro e corpo.

2. Confirmar que o paciente realmente não utilizou AINEs:

Muitas vezes, o paciente esquece que pode ter feito uso ou não associa a classe ao medicamento. É importante perguntar ativamente pelos remédios (citar nominalmente) e se não utilizou tratamentos, por exemplo, para cefaleia, artralgia, tratamento dentário ou cólica menstrual. Ervas medicinais chinesas, medicamentos manipulados e produtos de terapias alternativas podem conter compostos anti-inflamatórios, que não são reconhecidos pelos pacientes. Deve-se checar também o uso de AAS, mesmo que em baixas doses.

Se realmente não confirmarmos que o H. pylori foi negativo e que não há relato de AINEs, devemos reforçar alguns pontos importantes na história clínica:

  • Uso de outras medicações;
  • Uso de drogas;
  • Histórico de imunossupressão;
  • Histórico de cirurgias gástricas ou radiação;
  • Histórico de comorbidades, tais como Doença de Crohn, sarcoidose, mastocitose sistêmica, NEM 1 (hiperparatireoidismo primário multifocal, tumores de ilhotas pancreáticas e adenomas de hipófise)
  • Sintomas associados, principalmente diarreia (que pode ser associada a Doença de Crohn, Síndrome de Zollinger-Ellison ou mastocitose sistêmica);
  • Histórico familiar de úlcera ou de NEM 1.

3. Biópsia da úlcera

Apesar de muitas vezes inespecífica, a biópsia da úlcera (principalmente gástrica) é fundamental para a investigação de etiologias menos usuais. A análise imuno-histoquímica pode trazer informações adicionais importantes.

Exames complementares adicionais devem ser realizados conforme suspeita clínica, como por exemplo:
– Gastrina sérica: Se suspeita de Zollinger-Ellison;
– PTH e cálcio: Investigação de hiperparatireoidismo;
– VDRL: Se suspeita de úlcera infecciosa;
– Triptase sérica: Pode auxiliar na suspeita de mastocitose sistêmica.

Em pacientes com úlcera sem etiologia bem estabelecida, recomenda-se repetir a endoscopia em 8 a 12 semanas após tratamento, com novas biópsias se a úlcera ainda estiver presente. Pode ser interessante também biopsiar o duodeno para detectar colonização duodenal isolada de HP.

Conclusão

Teste falso negativo para H. pylori e falha em detectar o uso de AINEs são provavelmente as causas mais comuns de úlceras que aparentemente não apresentam etiologia definida. Uma vez que se excluam essas possibilidades, devemos focar em uma anamnese detalhada e em uma avaliação cuidadosa do anatomopatológico.

Referências

  1. Chung CS, Chiang TH, Lee YC. A systematic approach for the diagnosis and treatment of idiopathic peptic ulcers. Korean J Intern Med 2015;30:559–70. doi:10.3904/kjim.2015.30.5.559.
  2. Kim HU. Diagnostic and treatment approaches for refractory peptic ulcers. Clin Endosc 2015;48:285–90. doi:10.5946/ce.2015.48.4.285.
  3. Charpignon C, Lesgourgues B, Pariente A, Nahon S, Pelaquier A, Gatineau-Sailliant G, et al. Peptic ulcer disease: One in five is related to neither Helicobacter pylori nor aspirin/NSAID intake. Aliment Pharmacol Ther 2013;38:946–54. doi:10.1111/apt.12465.
  4. de Carli DM, Pires RC, Rohde SL, Kavalco CM, Fagundes RB. Diferentes frequências da úlcera péptica relacionadas com H. pylori ou AINES. Arq Gastroenterol 2015;52:46–9. doi:10.1590/S0004-28032015000100010.
  5. Lanas A, Chan FKL. Peptic ulcer disease. Lancet 2017;390:613–24. doi:10.1016/S0140-6736(16)32404-7.

Como citar este artigo

Lages RB. Úlceras não relacionadas a Helicobacter pylori e anti-inflamatórios (AINEs): como proceder? Gastropedia 2023, Vol 1. Disponivel em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/ulceras-nao-relacionadas-a-helicobacter-pylori-e-anti-inflamatorios-aines-como-proceder/




Terapia biológica em esofagite eosinofílica: onde estamos?

A esofagite eosinofílica (EEo) é uma doença inflamatória imunomediada crônica do esôfago, cuja prevalência tem aumentado rapidamente, atingindo atualmente 1 em 3.000 pessoas nos países ocidentais. Caso não seja tratada adequadamente, a remodelação progressiva do tecido leva a uma progressão para doença fibroestenótica

Os tratamentos atuais de primeira linha (Figura 1) incluem o uso off-label de inibidores da bomba de prótons (IBPs), corticosteroides tópicos reaproveitados de formulações para asma, dietas de eliminação e dilatação esofágica.

Embora sejam modalidades eficazes para o tratamento da EEo, cada um tem eficácia variável e limitações conhecidas, tais como:

  • IBP: Resposta histológica estimada em 50.5% (intervalo de confiança de 95%: 42.2 a 58.7%). Dados são limitados, mas mostram que adultos persistem em remissão após 1 anos de seguimento;
  • Corticóides tópicos: Até o momento, exigem o uso off-label de preparações para asma, tais com engolir propionato de fluticasona de um inalador dosimetrado ou criar uma pasta viscosa com budesonida aquosa e um espessante, como sucralose ou mel.

    • A remissão clínico-histológica é observada em até 68% dos pacientes. Deve-se orientar os pacientes para evitar refeições por 30 a 60 minutos após uso da medicação e sobre o risco de candidíase esofágica em até 10 a 20%.
    • Várias novas formulações de corticosteróides que melhoram a ação tópica no esôfago e minimizam o importuno de criar sua própria pasta estão atualmente sob investigação. O comprimido orodispersível de budesonida, por exemplo, mostrou resultados interessantes (remissão clínico-histológica de 57.6% em 6 semanas e 84.7% em 12 semanas) e foi aprovado para uso na Europa.

  • Dieta:

    • A dieta elementar consiste na ingesta exclusiva de fórmulas com aminoácidos livres e tem resposta histológica de até 91%, mas é algo pouco aplicável na rotina.
    • Por sua vez, a dieta de eliminação de 6 alimentos (6-food elimination diet) é a mais clássica e consiste em retirar os gatilhos mais comuns (laticínios, trigo, ovos, soja, amendoim e nozes, peixes e mariscos) por 6 semanas. A partir de então, realiza-se nova endoscopia com reintrodução sistemática de cada um dos grupos por 6 semanas e nova endoscopia, na tentativa de identificar o alimento associado.

      • Apesar de complexa, estudos demonstram remissão histológica em até 70% dos pacientes, com remissão a longo prazo caso mantenha a restrição de forma adequada.

    • Na tentativa de evitar tantas endoscopias e restrições, há variações desta dieta: 4-food elimination diet (laticínios, trigo, ovos e soja) e 2-food elimination diet (lacticínios e trigo), com taxa de remissão clínico-histológica de 54 e 43%, respectivamente.

Figura 1: Fluxograma de opções para tratamento de esofagite eosinofílica. No contexto apropriado, dilatação endoscópica também pode ser necessária. Adaptado de Beveridge & Falk (2020)[1]

No dia a dia, nos deparamos com alguns casos em que há maior dificuldade de tratamento com estas terapias clássicas e, portanto, biológicos têm sido usados no contexto de ensaios clínicos. Em 2022, o dupilumabe tornou-se a primeira (e atualmente única) terapia biológica aprovada para EEo pelo FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos. Vários outros agentes biológicos estão sendo investigados ativamente para este fim. 

Clicando aqui, você consegue checar a lista atualizada de ensaios clínicos em andamento para EEo.

Para entender os potenciais alvos para tratamento da terapia biológica, devemos lembrar que a EEo se caracteriza por resposta imunológica do tipo 2 (Th2), envolvendo células T, eosinófilos, mastócitos e as citocinas interleucina-4, interleucina-5, interleucina-13 e linfopoietina estromal tímica (TSLP)

Os principais biológicos atualmente em estudo na EEo são:

  • Dupilumabe: anticorpo monoclonal que tem como alvo a cadeia de interleucina (IL)-4Rα, interferindo assim na ligação de IL-4 e IL-13 com o receptor. Foi aprovado pelo FDA como tratamento para EEo em maio de 2022. É aprovado pela ANVISA para tratamento de dermatite atópica moderada a grave, asma eosinofílica grave e rinossinusite crônica com pólipos nasais (ATUALIZAÇÃO MAIO/2023: ANVISA aprovou em Abril/2023 o uso de dupilumabe para o tratamento de esofagite eosinofílica em pacientes a partir de 12 anos de idade e com peso corporal igual ou superior a 40 kg – https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/novos-medicamentos-e-indicacoes/dupixent-dupilumabe-nova-indicacao-4 ). Estudo de fase 3 publicado recentemente no New England Journal of Medicine incluiu pacientes refratários a altas doses de IBP e identificou que uma dose semanal subcutânea de dupilumabe 300 mg resultou em melhora clínica e 60% de resposta histológica nas semanas 24 e 52. Embora muitos estudos tenham mostrado melhora endoscópica e histológica, o dupilumabe é o único cujo estudo randomizado duplo-cego mostrou melhora significativa de sintomas até o momento. Os efeitos adversos mais comuns foram reações no local da injeção (até 20%), nasofaringite (até 12%) e cefaleia (até 8%).
  • Benralizumabe: Bloqueio do receptor para IL-5. Estudo de fase 3 em andamento.
  • Reslizumabe e Mepolizumabe: Ligam-se à IL-5, evitando a ativação do receptor de IL-5. Ensaios clínicos até demonstraram melhora de eosinofilia esofágica, mas não houve benefícios clínicos significativos.
  • Omalizumabe: Anti-IgE, utilizado em asma alérgica e urticária espontânea crônica. Ensaios clínicos demonstraram pouca resposta clínica e histológica, que a inflamação na EEo não é mediada por IgE. Não é promissora.
  • Cendakimabe (RPC4046 ou CC-93538): Bloqueio do receptor para IL-13. Estudo de fase 3 em andamento.
  • Lirentelimabe (Antolimabe ou AK002): Anticorpo contra a lectina 8 semelhante a imunoglobulina ligadora de ácido siálico (Siglec-8). Siglec-8 é um receptor de superfície encontrado em eosinófilos e mastócitos humanos. A ligação de um anticorpo neste receptor induz apoptose de eosinófilos ativados e inibe ativação mastocitária. Estudo de fase 2/3 em andamento.
  • Tezepelumabe: Bloqueia a TSLP. Foi aprovado em 2022 pela ANVISA para tratamento de asma grave. Estudo de fase 3 em andamento

Os resultados decepcionantes em termos de resposta clínica até o momento podem ser consequência da complexa fisiopatologia da EEo, que envolve múltiplas vias de sinalização. ​​A perpetuação da resposta inflamatória e da patogênese dos sintomas é determinada por múltiplas células imunes e citocinas, de modo que mesmo quando uma citocina e uma via são interrompidas, vias alternativas e mecanismos compensatórios podem existir para continuar a propagar a inflamação.

Além disso, embora vários estudos demonstrem redução do número de eosinófilos no tecido esofágico, a falta de efeito sobre os sintomas clínicos sugere que os eosinófilos não são os únicos responsáveis ​​pelos sintomas de EEo. Acredita-se que as alterações na remodelação tecidual (como estenose e dismotilidade) sejam as principais responsáveis ​​pelos sintomas graves. A duração do tratamento na maioria dos ensaios de EoE é curta e pode não ser suficiente para reverter estas alterações crônicas.

Conclusão

Ainda há muito o que avançar na terapia biológica em EEo. Devemos sempre questionar também se a EEo, uma doença localizada no esôfago, realmente se beneficiaria de drogas de ação sistêmica. Além disso, é necessário que posicionemos adequadamente estas novas terapias que estão surgindo e surgirão em algoritmos de tratamento para definirmos não apenas o que podemos usar, mas também quando é o melhor momento para utilizá-las.

Saiba mais sobre esofagite eosinofílica na nossa live sobre o assunto. Link para post com os slides

Live Completa sobre Eosfagite Eosinofílica
https://gastropedia.pub/pt/live/esoofagite-eosinofilica-tudo-o-que-voce-queria-saber/

Referência

[1] Beveridge C, Falk GW. Novel Therapeutic Approaches to Eosinophilic Esophagitis. Gastroenterol Hepatol 2020;16:294–301.

[2] Nhu QM, Aceves SS. Current state of biologics in treating eosinophilic esophagitis. Ann Allergy, Asthma Immunol 2023;130:15–20. doi:10.1016/j.anai.2022.10.004.

[3] Zhang S, Assa’ad AH. Biologics in eosinophilic esophagitis. Curr Opin Allergy Clin Immunol 2021;21:292–6. doi:10.1097/ACI.0000000000000741.

[4] Straumann A. Biologics in Eosinophilic Esophagitis — Ready for Prime Time? N Engl J Med 2022;387:2379–80. doi:10.1056/NEJMe2213030.

[5] Dellon ES, Rothenberg ME, Collins MH, Hirano I, Chehade M, Bredenoord AJ, et al. Dupilumab in Adults and Adolescents with Eosinophilic Esophagitis. N Engl J Med 2022;387:2317–30. doi:10.1056/NEJMoa2205982.

Como citar este arquivo

Lages RB. Terapia biológica em esofagite eosinofílica: onde estamos? Gastropedia; vol. 1, 2023. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/sem-categoria/terapia-biologica-em-esofagite-eosinofilica-onde-estamos/




Como tratar o Helicobacter pylori? Entendendo como escolher o esquema de primeira linha

O Helicobacter pylori (H. pylori) é a infecção bacteriana crônica mais prevalente do mundo, acometendo mais de metade da população. Associa-se com gastrite crônica, que pode progredir para complicações graves, como úlcera péptica, adenocarcinoma e linfoma MALT. 

Pelas evidências atuais, a sua erradicação tem sido recomendada de forma mais ampla, mesmo na ausência de sintomas em muitas situações. As principais referências que norteiam a conduta do H. pylori em nosso país são:

  • IV Consenso Brasileiro (2018)
  • Consenso Maastricht VI / Florence (2022)

Uma das mais importantes causas de falha à erradicação do H. pylori é o aumento da resistência à claritromicina e levofloxacino. A resistência aos nitroimidazóicos também é comum. Por outro lado, a resistência à amoxicilina e à tetraciclina é baixa e estável. Esses conceitos são importantes tanto quando pensamos em esquemas de primeira linha como em esquema de retratamento.

A escolha do esquema inicial de tratamento para o H pylori considera dois principais aspectos:

  • Taxa local de resistência à claritromicina
  • Histórico de alergia medicamentosa

Seria interessante a realização de teste de susceptibilidade (molecular ou cultura) antes da prescrição de antibióticos, mas sabemos que estes métodos ainda são extremamente escassos (ou mesmo quase inexistentes) na nossa prática diária brasileira.

Em áreas em que há baixa resistência à claritromicina (< 15%), o tratamento empírico de primeira linha deve ser a terapia tripla com claritromicina ou a quádrupla com bismuto. Alguns poucos estudos avaliaram o perfil de resistência do H. pylori no Brasil, identificando resistência de 2.5 a 16.9% à claritromicina, 5 a 23% às fluoroquinolonas, aproximadamente 50% ao metronidazol e duplas resistência à claritromicina e metronidazol de 7.5 a 10%. Diante disso, a tendência do Consenso Brasileiro ainda é considerar o Brasil como uma área de baixa resistência à claritromicina.

Desde o Maastricht V (2017) e o IV Consenso Brasileiro (2018), uma importante mudança nas recomendações de tratamento para o H. pylori foi o aumento da duração de 7 para 14 dias na tentativa de aumentar a taxa de erradicação diante da crescente elevação de resistência bacteriana.

Os esquemas de primeira linha propostos em nosso país, portanto, são os seguintes:

  • Esquema recomendado: OAC – Terapia tripla padrão com claritromicina

  • Esquema alternativo: BOTM – Terapia quádrupla com bismuto

  • Outro esquema alternativo: OACM – Terapia quádrupla concomitante sem bismuto. É uma opção em áreas de maior resistência comprovada à claritromicina quando o bismuto não for disponível.

Por falar em disponibilidade de subcitrato de bismuto coloidal, essa medicação tem sido bem pouco disponível em nosso país. Atualmente, é possível conseguir apenas por meio de manipulação (e mesmo assim com certa dificuldade). Isso nos faz lembrar da furazolidona, que já foi muito utilizada em esquemas para tratamento de H. pylori, mas que não é comercializada há anos em nosso país.

Alergia à penicilina

A erradicação do H. pylori em pacientes com alergia à penicilina (relatada em até 3 a 10% das pessoas) é um desafio. O ideal seria realmente comprovar que essa alergia é verdadeira para ter à disposição os esquemas com amoxicilina.

Pelo Consenso Brasileiro, são dois os esquemas principais:

  • Terapia tripla com levofloxacino em substituição à amoxicilina (OCL)

  • Terapia quádrupla com bismuto (BOTM), conforme já citada previamente

Efeitos adversos

Infelizmente, até 50% dos pacientes apresentam efeitos colaterais com o tratamento do H. pylori. Em menos de 10%, esses efeitos são limitantes e levam à interrupção da terapia. É importante, portanto, sempre orientar bem os pacientes dos efeitos adversos mais comuns para aumentar a adesão:

  • Amoxicilina: Diarreia, rash cutâneo
  • Claritromicina: náuseas, vômitos, dor abdominal, gosto metálico, raramente prolongamento QT

Usar probióticos ajuda?

Os probióticos (como Lactobacilli e Saccharomyces boulardii) reduzem os efeitos adversos associados à terapia de erradicação e, com isso, podem aumentar a adesão. Há estudos sobre efeitos diretos sobre o H. pylori, mas ainda são necessários mais dados.

Preciso fazer controle de cura? Quando?

Sim. Deve ser realizado pelo menos 4 semanas após o tratamento. O ideal é preferir método não invasivos, reservando-se a endoscopia apenas se indicada por outra razão (ex: controle de cura de úlcera gástrica).

Conclusão

O H. pylori é extremamente comum e sua erradicação pode ser muitas vezes um desafio. A terapia tripla padrão (OAC) no Brasil fornece taxas de cura acima de 80% e ainda é a mais utilizada. Devemos, contudo, estar atentos aos crescentes níveis de resistência bacteriana para atualizarmos constantemente nossas recomendações.

Como citar este artigo

Lages RB. Como tratar o Helicobacter pylori? Entendendo como escolher o esquema de primeira linha. Gastropedia 2022. Disponível em https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/estomago/como-tratar-helicobacter-pylori

Referências

[1] Malfertheiner P, Megraud F, Rokkas T, Gisbert JP, Liou JM, Schulz C, et al. Management of Helicobacter pylori infection: the Maastricht VI/Florence consensus report. Gut 2022;71:1724–62. doi:10.1136/gutjnl-2022-327745.
[2] Coelho LGV, Marinho JR, Genta R, Ribeiro LT, Passos M CF, Zaterka S, et al. IVth Brazilian Consensus Conference on Helicobacter pylori infection. Arq Gastroenterol 2018;55:97–121. doi:10.1590/s0004-2803.201800000-20.