Insuficiência hepática aguda: como manejar?

A insuficiência hepática aguda (IHA) é uma condição rara, aguda e potencialmente reversível, porém, ameaçadora a vida. Define-se como uma disfunção hepática aguda, que se desenvolve em um período de até 26 semanas, em um paciente sem doença hepática pré-existente (com exceção para Hepatite Autoimune, Síndrome de Budd-Chiari e Doença de Wilson), associada a coagulopatia (INR > 1,5) e qualquer grau de encefalopatia hepática.

Uma classificação baseada no intervalo de tempo entre o início da icterícia e início da encefalopatia hepática (EH) fornece pistas sobre a etiologia da disfunção hepática, bem como o prognóstico, mantendo-se apenas suporte clínico como terapia.

  • Hiperaguda: Esse intervalo é de 7 dias ou menos, são mais associadas a edema cerebral, choque e coagulopatia. Geralmente causado por intoxicação por paracetamol, hepatites virais (A e E) ou isquemia hepática. Melhor prognóstico sem transplante.
  • Aguda: Entre 1-4 semanas. Pode ser causada por infecção pelo vírus da hepatite B.
  • Subaguda: Entre 4-12 semanas. Pode ser difícil a diferenciação entre doença hepática crônica. Geralmente causadas por reações a drogas não paracetamol ou etiologia indeterminada, e mesmo tendo encefalopatia e coagulopatia menos acentuadas, com evolução mais insidiosa, apresenta pior prognóstico.

Causas

  • Viral: Nos países subdesenvolvidos, a hepatite A e E são as principais causas de IHA, ou hepatite B nos países asiáticos ou do Mediterrâneo, tendo um prognóstico pior nos casos de reativação de hepatite crônica B em pacientes submetidos à terapia imunossupressora.
  • Drogas: Nos Estados Unidos, 50% dos casos de IHA são decorrentes do uso de medicações/drogas, principalmente o paracetamol, sendo essa dose-dependente. Outras medicações são isoniazida, fenitoína, valproato, propiltiouracil, MDMA (3,4-metilenodioxi-n-metilanfetamina, também conhecido como ecstasy), cocaína, chás, entre outras. A IHA é mais rara como lesão idiossincrática a drogas.
  • Outras causas: Mais raramente a IHA pode ocorrer como lesão isquêmica em paciente após parada cardíaca, insuficiência cardíaca aguda grave, infiltração neoplásica (p.e. linfoma), hepatite autoimune, síndrome de Budd-Chiari, Doença de Wilson, esteatose hepática aguda da gestação, entre outras.
  • Em alguns casos, a etiologia pode permanecer desconhecida.

Abordagem e manejo

Avaliação inicial e diagnóstica:

Um ponto crítico na abordagem do paciente com suspeita de insuficiência hepática aguda é uma avaliação inicial criteriosa no que se refere à história clínica, início e cronologia dos sintomas, comorbidades prévias, diagnóstico prévio de doenças hepáticas, fatores de risco para hepatites virais, uso de medicações ou drogas, uso de álcool (dose e tempo de uso).

Ao exame físico, deve-se atentar para a presença de sinais que possam sugerir presença de hepatopatia crônica (telangiectasias, ascite, eritema palmar) e também para a presença de encefalopatia hepática, que em contexto clínico e laboratorial adequado, corrobora o diagnóstico de IHA.

Também é de suma importância avaliar os exames prévios realizados, de laboratório, incluindo bioquímica e função hepática, bem como exames de imagem prévios e atuais que possam sugerir a presença de doença hepática crônica.

Essa avaliação inicial é de extrema importância para diferenciação entre insuficiência hepática aguda e acute-on-chronic liver failure (ACLF), cuja evolução e abordagem são distintas. Na tabela 1 estão resumidos os principais exames a serem realizados diante da suspeita de IHA.

Exames laboratoriais Exames de imagem
– Hemograma completo, DHL, CKP, TGO, TGO, fosfatase alcalina, GGT, bilirrubina total e frações, coagulograma (TTPA, TAP, INR), proteínas totais e frações, creatinina, ureia, sódio, potássio, fósforo, magnésio, cálcio iônico, gasometria arterial com lactato, amônia, fator V
– Beta-HCG
– Tipagem sanguínea
– Sorologias: anti-HAV IgM, HBsAg, Anti-HBc IgM, Anti-HEV IgM, EBV IgM, CMV IgM, herpes, Chagas, HIV, HTLV, toxoplasmose
– Auto-anticorpos: FAN, AML, Anti-LKM1, AMA, Anti-SLA
– Outros: ceruloplasmina, eletroforese de proteínas, IgA, IgG e IgM
– TC de crânio se alteração do nível neurológico
– TC de tórax e abdome total (ou USG de abdome com doppler)
– Eletrocardiograma, ecocardiograma
Tabela 1 – Propedêutica inicial na suspeita de IHA

Manejo das disfunções orgânicas associadas:

  • Após uma avaliação clínica e laboratorial detalhada e firmado o diagnóstico de IHA, deve-se realizar contato com equipe de transplante hepático de referência para discussão do caso e manejo, investigação diagnóstica e critérios de transplantabilidade. Ao mesmo tempo, o paciente deve ser transferido para terapia intensiva para monitorização contínua visto risco de rápida deterioração clínica.
  • Sistema nervoso central: A encefalopatia hepática é necessária para fechar o diagnóstico de IHA, podendo evoluir progressivamente de confusão mental leve até coma e morte por edema cerebral e hipertensão intracraniana. A necessidade de tomografia de crânio deve ser avaliada para se excluir outras causas de alteração do nível de consciência como sangramento e avaliar grau de edema cerebral. O manejo da hipertensão intracraniana (HIC):

    • Intubação orotraqueal se rebaixamento do nível de consciência;
    • Sedação contínua;
    • Cabeceira elevada a 30-45º;
    • Controle de hipertermia, hipoglicemia e hiponatremia (alvo de sódio entre 145-150), se necessário salina hipertônica ou manitol;
    • Monitorização dos níveis de amônia – O tratamento com melhor evidência atualmente visando retardar a piora do edema cerebral é a terapia de substituição renal por métodos contínuos com objetivo de filtragem de amônia;
    • Não está indicada de rotina a monitorização invasiva da pressão intracraniana;
    • Realização de exames de imagem como doppler transcraniano e bainha do nervo óptico podem ajudam na identificação de sinais de HIC de forma não invasiva.

  • Respiratório: há o risco de broncoaspiração caso haja evolução com encefalopatia grau III ou IV, bem como quadro de SARA como evolução de quadro de inflamação sistêmica intensa. Priorizar modos de ventilação protetora.
  • Cardiovascular: Hipotensão associada a vasodilatação, associada ou não à infecção é uma evolução comum em pacientes com IHA, necessitando de suporte com drogas vasoativas, sendo a noradrenalina a droga de primeira escolha.
  • Hepático: É a disfunção orgânica inicial, caracterizada por elevação dos níveis de bilirrubina e coagulopatia (alargamento do INR > 1,5 e redução dos níveis de fator V). A hipoglicemia é frequentemente vista em razão da redução da gliconeogênese hepática e pode ser manejada com infusão de glicose intravenosa, devendo-se atentar para não administrar em excesso fluidos hipotônicos que possam contribuir com hiponatremia e perpetuar edema cerebral. A hiperlactatemia e hiperamonemia podem estar presentes por perda da capacidade hepática de depuração dessas substâncias.
  • Renal-metabólico: Disfunção renal pode ocorrer em até metade dos pacientes com IHA. O início precoce de terapia de substituição renal para esses pacientes, leva em consideração não só lesão renal como também a necessidade de redução dos níveis de amônia, para retardar a progressão para HIC. Caso a hemodinâmica permita, deve-se manter aporte calórico adequado, através de nutrição enteral, contribuindo também para redução do risco de translocação bacteriana.
  • Coagulopatia: não é recomendada a correção rotineira de distúrbios de coagulação, incluindo plaquetas de fibrinogênio, devendo ser reservada apenas antes de procedimentos invasivos.
  • Sistema imunológico: É bem conhecida a presença de disfunção imunológica do paciente com IHA e a infecção nosocomial tardia pode ocorrer por imunossupressão funcional. Mesmo na ausência de evidências para orientar a prática, o uso de profilaxia com antibióticos frequentemente está indicada quando o paciente fecha critérios para IHA, principalmente para os que são candidatos à transplante hepático.

A despeito das medidas de suporte acima descritas, a maioria dos pacientes com IHA, evoluirão com deterioração clínica e falência orgânica múltipla sem o transplante hepático. Portanto, os candidatos ao transplante hepático devem ser identificados o mais precocemente possível e para este fim, são usados escores prognósticos, sendo os mais utilizados no nosso meio, os critérios de King’s College (tabela 2) e Clichy (tabela 3). A sobrevida pós transplante vem aumentando o longo dos últimos anos, sendo de 79% em 1 ano e 72% em 5 anos. A principal causa de mortalidade após o transplante é infecção nos primeiros 3 meses após o transplante.

Paracetamol Não paracetamol
– pH < 7,3

Ou todos os critérios abaixo:

– Encefalopatia grau III ou IV
– Creatinina > 3,4mg/dl
– INR > 6,5

– INR > 6,5

Ou 3 dos 5 critérios:

– Idade < 10 anos ou > 40 anos
– Hepatite não A, não B, lesão induzida por drogas ou medicações, causa desconhecida
– Intervalo de icterícia e início de EH > 7 dias
– Bilirrubina total > 17,5 mg/dl
– INR > 3,5

Tabela 2 – Critérios de King’s College
Encefalopatia grau III ou IV e
Fator V < 20 em pacientes < 30 anos ou
Fator V < 30 em pacientes > 30 anos.
Tabela 3 – Critérios de Clichy

Em conclusão, a insuficiência hepática aguda é uma condição rara, porém potencialmente grave se não identificada e manejada adequadamente, com alta mortalidade. Deve ser avaliada com critério para diferenciação entre ACLF ou cirrose descompensada, uma vez que as condutas são distintas. A partir do diagnóstico firmado de IHA, deve ser prontamente as suas disfunções e o paciente referenciado para centro transplantador o mais breve possível.

Referências

  1. William Bernal, M.D., and Julia Wendon, M.B., Ch.B. Acute Liver Failure. N Engl J Med 2013; 369:2525-34. DOI: 10.1056/NEJMra1208937.
  2. European Association for the Study of the Liver; Clinical practice guidelines panel; Wendon, J; Panel members; Cordoba J, Dhawan A, Larsen FS, Manns M, Samuel D, Simpson KJ, Yaron I, EASL Governing Board representative; Bernardi M. EASL Clinical Practical Guidelines on the management of acute (fulminant) liver failure. Journal of Hepatology 2017 vol. 66 j 1047–1081. DOI https://doi.org/10.1016/j.jhep.2016.12.003.
  3. Alexandra Shingina, MD, MSc1, Nizar Mukhtar, MD2, Jamile Wakim-Fleming, MD, FACG 3, Saleh Alqahtani, MBChB, MS4,5, Robert J. Wong, MD, MS, FACG6 , Berkeley N. Limketkai, MD, PhD, FACG7 , Anne M. Larson, MD8 and Lafaine Grant, MD9. Acute Liver Failure Guidelines. Am J Gastroenterol 2023; 118:1128–1153. https://doi.org/10.14309/ajg.0000000000002340.
  4. Shannan Tujios, MD1, R. Todd Stravitz, MD2, William M. Lee, MD1. Management of Acute Liver Failure: Update 2022. Semin Liver Dis. 2022 August ; 42(3): 362–378. doi:10.1055/s-0042-1755274.

Como citar este artigo

Margon JF. Insuficiência hepática aguda: como manejar? Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/insuficiencia-hepatica-aguda-como-manejar