FDA aprova a 1ª medicação para NASH (MASH): Resmetirom (Rezdiffra)

Sobre Nash/Mash

A esteatohepatite não-alcoólica (NASH), renomeada como esteatose hepática metabólica (MASH) – (ver nota), caracteriza-se pela presença de 5% ou mais de esteatose hepática com dano hepatocelular e inflamação. Geralmente, está associada às doenças metabólicas como obesidade, diabetes, hipertensão arterial ou dislipidemia. Cerca de 6-8 milhões de pessoas nos EUA possuem NASH/MASH com fibrose moderada à avançada, com uma expectativa de aumento dos casos ao longo dos anos.

NOTA: A esteatoepatite não-alcoólica (NASH) foi renomeada em 2023 como esteatohepatite metabólica (MASH), entretanto, estudos que vinham em andamento com as definições e critérios histológicos de NASH, seguirão sendo publicados com tais terminologias, de forma que a mudança na literatura para a nova terminologia/critérios para MASH será gradativa.

À medida que NASH/MASH progride para fibrose clinicamente significativa, os riscos de desfechos clínicos adversos aumentam consideravelmente.

No início de fevereiro deste ano, foi publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM) o trial MAESTRO-NASH Fase 3 com Resmetirom na esteatohepatite não alcoólica com fibrose hepática com dados promissores.

Sobre Maestro-NASH fase 3

O trial MAESTRO-NASH Fase 3, randomizado, duplo cego, controlado por placebo, avaliou 1.759 pacientes adultos (>18 anos) com biópsia confirmando NASH/MASH e estágios de fibrose F1B, F2 ou F3.

Os pacientes foram randomizados na proporção 1:1:1 para receber Resmetirom uma vez ao dia na dose de 80mg ou 100mg ou placebo. Todos os grupos receberam, de forma conjunta, aconselhamento sobre dieta saudável e exercícios.

Os dois endpoints primários na semana 52 foram:

  1. Resolução do NASH/MASH (incluindo a redução do NAFLD activity score em >2 pontos) com não piora da fibrose;
  2. Melhora na fibrose em pelo menos 1 estágio, sem piora do NAFLD activity score.

O endpoint secundário foi a mudança percentual do LDL colesterol, em relação ao basal, na semana 24.

Um total de 26-27% dos pacientes que receberam 80mg de Resmetirom (n=322) e 24-36% dos que receberam 100mg (n=323) evidenciaram resolução do NASH, sem piora da fibrose, comparado a 9-13% do grupo placebo (n=321). Em adição, um total de 25% (grupo 80mg) e 24-28% (grupo 100mg) apresentaram melhora na fibrose hepática, sem piora do NASH, comparado a 13-15% do grupo placebo.

A melhora da fibrose e resolução do NASH/MASH foram consistentes, independente da idade, gênero, status do diabetes mellitus tipo 2 ou estágio da fibrose.

A mudança nos níveis de LDL colesterol do basal até a semana 24 foi de -13,6% no grupo 80mg, -16,3% no grupo 10mg e 0,1% no grupo placebo.

Diarreia e náuseas foram os efeitos colaterais mais frequentes relacionados à medicação.

Assista o vídeo publicado pelo NEJM sobre o trial MAESTRO-NASH e ação do Resmetirom: https://youtu.be/wwKhWt0pFh8?si=lakDxP8X38uaPFNm

Aprovação pelo FDA

O FDA (Food and Drug Administration) delineou uma abordagem visando aprovação condicional de um tratamento para NASH/MASH, através da obtenção de qualquer um dos dois desfechos histológicos (melhora no estágio de fibrose hepática ou resolução de NASH), com provável benefício clínico e, para aprovação total, baseado na redução de desfechos clínicos (morte por qualquer causa, transplante de fígado ou eventos de descompensação hepática).

Em 14 de março de 2024, o FDA aprovou o Resmetirom (Rezdiffra; Madrigal Pharmaceuticals) como primeiro tratamento para NASH/MASH com fibrose hepática moderada a avançada, não-cirróticos, a ser usado em combinação com dieta e atividade física.

Sobre Resmetirom (Rezdiffra)

Resmetirom é uma medicação oral, agonista seletivo do receptor do hormônio tireoidiano do tipo (THR-β).

O receptor THR-β é responsável pela regulação de vias metabólicas no fígado e seu funcionamento está frequentemente prejudicado no NASH/MASH, reduzindo a função mitocondrial e β-oxidação de ácidos graxos em associação com o aumento da fibrose.

O uso do Rezdiffra deve ser acompanhado do tratamento padrão comportamental para NASH/MASH, ou seja, em conjunto com o ajuste do padrão alimentar e atividade física regular.

A dosagem recomendada do Rezdiffra é baseada no peso corporal:

  • Peso <100kg, a dose preconizada é de 80mg oral, 1 vez ao dia;
  • Peso ≥100kg, a dose recomendada é 100mg oral 1 vez ao dia.

Os efeitos colaterais mais comuns incluem: diarreia, náusea, prurido, dor abdominal, vômitos, tontura e constipação.

Ainda será lançado comercialmente nos EUA, ainda sem previsão no Brasil, porém, a comunidade científica, incluindo a Associação Europeia para o Estudo do Fígado (EASL), vibra com a primeira aprovação de um medicamento para o NASH/MASH e reforça as esperanças de um melhor tratamento para os pacientes portadores da doença.

Para ler mais sobre a mudança de nomenclatura de esteatohepatite de NASH para MASH, acesse: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/figado/masld-2023-descomplicando-as-novas-nomenclaturas-para-esteatose-hepatica/

Referências

  1. Harrison SA, Bedossa P, Guy CD, Schattenberg JM, Loomba R, Taub R, Labriola D, Moussa SE, Neff GW, Rinella ME, Anstee QM, Abdelmalek MF, Younossi Z, Baum SJ, Francque S, Charlton MR, Newsome PN, Lanthier N, Schiefke I, Mangia A, Pericàs JM, Patil R, Sanyal AJ, Noureddin M, Bansal MB, Alkhouri N, Castera L, Rudraraju M, Ratziu V; MAESTRO-NASH Investigators. A Phase 3, Randomized, Controlled Trial of Resmetirom in NASH with Liver Fibrosis. N Engl J Med. 2024 Feb 8;390(6):497-509. doi: 10.1056/NEJMoa2309000. PMID: 38324483.
  2. https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/fda-approves-first-treatment-patients-liver-scarring-due-fatty-liver-disease
  3. https://easl.eu/news/resmetirom_fda_approval/

Como citar este artigo

Oti KST, FDA aprova a 1ª medicação para Nash/Mash: Resmetirom (Rezdiffra) Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/fda-aprova-a-1a-medicacao-para-nash-mash-resmetirom-rezdiffra/




Como Diagnosticar Corretamente a Doença Celíaca?

A doença celíaca (DC) é definida como uma resposta imunomediada e permanente ao glúten, proteína presente no trigo, na cevada e no centeio. Trata-se de uma doença caracterizada por inflamação na mucosa do intestino delgado, com atrofia vilositária e hiperplasia de criptas, que ocorre pela exposição da mucosa ao glúten e melhora após a retirada desta proteína da dieta (saiba mais sobre a patogênese da doença celíaca nesse post: patogenese da doenca celiaca). Apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas e o diagnóstico é feito através de testes sorológicos e biópsias duodenais por endoscopia digestiva alta (EDA).

Quem deve ser testado?

  • O rastreamento populacional para indivíduos assintomáticos não é recomendado;
  • O rastreamento em indivíduos assintomáticos que tenham parente de primeiro grau confirmado deve ser considerado;
  • Pacientes com sintomas gastrointestinais sugestivos, quais sejam:

    • Alteração do hábito intestinal como diarreia crônica ou constipação;
    • Síndrome de má-absorção;
    • Perda de peso inexplicável;
    • Dor abdominal;
    • Distensão ou bloating;
    • Dispepsia refratária;
    • Síndrome do intestino irritável;
    • Intolerância a lactose refratária.

  • Pacientes com sintomas extra-intestinais sugestivos, quais sejam:

    • Anemia por deficiência de ferro, folato ou vitamina B12;
    • Alteração de enzimas hepáticas;
    • Dermatite herpetiforme;
    • Fadiga;
    • Cefaleia recorrente;
    • Perda fetal recorrente;
    • Filhos com baixo peso ao nascer;
    • Infertilidade;
    • Estomatite aftosa persistente;
    • Hipoplasia do esmalte dentário;
    • Doenças ósseas metabólicas e osteoporose precoce;
    • Neuropatia periférica idiopática;
    • Ataxia cerebelar não-hereditária.

Testes diagnósticos

Os testes diagnósticos devem ser realizados enquanto o paciente estiver ingerindo normalmente o glúten na dieta.

A abordagem diagnóstica é baseada no risco do paciente para doença celíaca:

  • Baixa probabilidade

    • Ausência de sinais e sintomas sugestivos de má-absorção, como diarreia crônica/ esteatorreia ou perda de peso;
    • Ausência de história familiar de DC;
    • Descendentes de chineses, japoneses ou da África subsaariana.

  • Alta probabilidade

    • Presença de sintomas altamente sugestivos de DC como diarreia crônica/esteatorreia e perda de peso;
    • Indivíduos que apresentem ambos os achados abaixo:

      • Fatores de risco que os coloquem como moderado a alto risco para DC: parente de primeiro ou segundo grau com DC, DM tipo 1, tireoidite autoimune, síndrome de Down e Turner, hemossiderose pulmonar (risco moderado);
      • Sintomas gastrointestinais ou extra-intestinais sugestivos de DC (descritos acima).

Como testar?

  • Indivíduos com baixa probabilidade: testes sorológicos. O anti-transglutaminase imunoglobulina A (anti-tTG IgA) e o anti-endomísio IgA tem sensibilidade semelhantes. Resultados negativos em qualquer destes testes em indivíduos com baixo risco para DC tem alto valor preditivo negativo e evita a necessidade de biópsias. Já pacientes com testes sorológicos positivos devem ser submetidos a EDA com biópsias duodenais.
  • Indivíduos com alta probabilidade: testes sorológicos e múltiplas biópsias duodenais devem ser realizadas. As biópsias duodenais neste grupo devem ser efetuadas independentemente do resultado dos testes sorológicos.

Sobre os testes sorológicos

  • A sorologia é um componente crucial para diagnóstico de DC;
  • Nenhum teste sorológico é 100% específico para doença celíaca;
  • Anti-tTG IgA é o anticorpo mais solicitado para o diagnóstico em adultos e deve ser realizado com IgA sérica para afastar deficiência de IgA;
  • Pacientes submetidos à EDA para investigação de quadros dispépticos e cujo duodeno foi biopsiado por achados de atrofia devem ser testados com anti-tTG IgA e IgA sérica;
  • Caso o paciente tenha alta probabilidade de DC, EDA com biópsias duodenais devem ser realizadas mesmo com sorologia negativa;
  • Em pacientes com deficiência de IgA, a sorologia com IgG deve ser realizada: comumente anti-gliadina deaminada ou anti-tTG.

Leia mais sobre os testes sorológicos para Doença Celíaca aqui: https://gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/intestino/o-papel-dos-autoanticorpos-no-diagnostico-da-doenca-celiaca/

Sobre biópsias duodenais

  • São necessários 1 a 2 fragmentos do bulbo (posição 9 ou 12 horas) e pelo menos 4 fragmentos da segunda porção duodenal para o correto diagnóstico de DC;
  • A EDA também é importante para diagnóstico diferencial de outras síndromes de má-absorção ou enteropatias;
  • Duodenite linfocítica (> 25 linfócitos/100 células epiteliais) na ausência de atrofia vilositária não é específica para DC e outros diagnósticos devem ser considerados, como: infecção pelo H. Pylori, uso de anti-inflamatórios não hormonais ou outras medicações, supercrescimento bacteriano do intestino delgado, sensibilidade não celíaca ao glúten, outras doenças autoimunes;
  • A análise histopatológica, classificada de acordo com MARSH ou mais recentemente a classificação simplificada de Corazza, é o padrão ouro para o diagnóstico da doença.

Comparação entre as classificações de Marsh e Corazza

Marsh LIE
Marsh/Corazza
Criptas Vilosidades Corazza
Tipo 0 <40 Normal Normal
Tipo 1 >40/>25 Normal Normal Grau A
Tipo 2 >40/>25 Hiperplásica Normal Grau A
Tipo 3 a/b >40/>25 Hiperplásica Atrofia parcial ou subtotal Grau B1
Tipo 3 c >40/>25 Hiperplásica Atrofia total Grau B2
Tipo 4 <40

Normal

Atrofia total
LIE: linfócitos intraepiteliais (por 100 células epiteliais)
Adaptada de:
American College of Gastroenterology Guidelines Update 2023

Diagnóstico

O diagnóstico é feito quando há sorologia positiva com histopatológico das biópsias duodenais mostrando aumento dos linfócitos intraepiteliais com hiperplasia de criptas (Marsh 2) ou, mais comumente, com atrofia vilositária (Marsh 3). Se a sorologia for positiva e as biópsias duodenais classificadas como Marsh 0 ou 1, atentar para anticorpos falso-positivos (normalmente em baixa titulação) ou resultados falso-negativos nas biópsias, devendo-se prosseguir a investigação.

Diagnóstico sem biópsias

  • Em crianças, a combinação de altos níveis de anti-tTG (> 10x LSN) e anti-endomísio positivo (em uma segunda amostra) pode ser considerado para diagnóstico. Em adultos sintomáticos que não podem ou não querem ser submetidos à EDA, esse critério pode ser utilizado para o diagnóstico de DC provável;
  • Em pacientes com dermatite herpetiforme comprovada por biópsias, o diagnóstico de DC pode ser estabelecido somente pela sorologia.

Testes HLA DQ2/DQ8

  • Presente em quase todos os pacientes com DC, não é necessário para o diagnóstico, entretanto é útil para excluí-la pelo seu alto valor preditivo negativo (maior que 99%);
  • Em pacientes com sorologia e histologia divergentes:

    • Se HLA DQ2/DQ8 negativo, DC é descartada;
    • Se HLA DQ2/DQ8 positivo, sorologia positiva e histologia não-compatível: novas biópsias devem ser realizadas após dieta com alto teor de glúten (> 10 gramas/dia, equivalente a 4 fatias de pão/dia por 6 a 12 semanas). Após nova avaliação histológica, se Marsh 0 ou 1 com sorologia positiva, o paciente é considerado com portador de DC potencial;
    • Se HLA DQ2/DQ8 positivo, sorologia negativa, porém paciente com sinais e sintomas sugestivos de DC e histologia compatível: se afastados outros diagnósticos diferenciais e houver melhora clínica e histológica após dieta sem glúten, considerar DC soronegativa (é muito rara).

Conheça nosso curso Gastroenterologia do Consultório e saiba como lidar com as queixas mais comuns que encontramos no dia a dia

Referências

  1. Rubio-Tapia, Alberto MD1; Hill, Ivor D. MD2; Semrad, Carol MD3; Kelly, Ciarán P. MD4; Greer, Katarina B. MD, MS5; Limketkai, Berkeley N. MD, PhD, FACG6; Lebwohl, Benjamin MD, MS7. American College of Gastroenterology Guidelines Update: Diagnosis and Management of Celiac Disease. The American Journal of Gastroenterology 118(1):p 59-76, January 2023. | DOI: 10.14309/ajg.0000000000002075
  2. Husby, Steffen et al. AGA Clinical Practice Update on Diagnosis and Monitoring of Celiac Disease—Changing Utility of Serology and Histologic Measures: Expert Review. Gastroenterology, Volume 156, Issue 4, 885 – 889 | DOI: 10.1053/j.gastro.2018.12.010
  3. Ciarán P. Kelly. Diagnosis of Celiac disease in adults. In: J Thomas Lamont (Ed). Up to date. 2024

Como citar este artigo

Arraes L. Como Diagnosticar Corretamente a Doença Celíaca? Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/como-diagnosticar-corretamente-a-doenca-celiaca/




Megacolon Chagasico: Diagnóstico e Tratamento

Diagnóstico e Investigação

Testes sorológicos: na fase crônica da doença deve-se utilizar pelo menos dois métodos de princípios diferentes para a confirmação do diagnóstico, com sensibilidade de 100% e especificidade de 96,5%. São eles: hemoaglutinação indireta, imunofluorescência indireta e teste imunoenzimático.

Exame contrastado: Considera-se que o diâmetro do sigmóide distal maior que 6 cm caracteriza megacólon. No entanto, através do enema opaco, grupo brasileiro, fez estudo com proposta de uma classificação do diâmetro transverso do reto alto/sigmóide distal na altura das cristas póstero-superiores ou ao nível da quarta vértebra lombar. Dessa forma, subdividiu em:

  • Grau 0: pacientes sem MC: eixo transversal entre 2,0 e 5,0cm
  • Grau I: intersecção entre pessoas com e sem MC. Eixo entre 5,1 e 9,0cm
  • Grau II: eixo transverso entre 9,1 e 13,0cm
  • Grau III: eixo maior que 13,1cm

Manometria anorretal: exame reprodutível e examinador dependente com avaliação dos esfíncteres interno e externo do ânus, relaxamento do músculo puborretal, sensibilidade e capacidade do reto e, na suspeita de MC. A ausência reflexo inibitório retoanal (RIRA), significando comprometimento da inervação da transição anorretal e acalasia do esfíncter interno do ânus, embora seu papel nessa doença ainda permaneça controverso.

Nesse aspecto, grupo brasileiro avaliou a presença do RIRA em 39 portadores de MC e verificou sua ocorrência em 43,6% dos pacientes, entretanto com necessidade de maior insuflação do balão retal com uma média de 196 ml, ao passo que em pessoas sem MC a média de infusão foi de 18,8 ml. Assim, ao injetar 30 ml de ar a probabilidade de detectar o RIRA foi de 12,8%, com 60ml de 15,4% e com 250ml de 43,6%.

Colonoscopia: exame com objetivo fundamentalmente de rastreio de câncer colorretal, devendo sua indicação obedecer as diretrizes vigentes na literatura nacional e internacional quanto à idade e fatores de risco principalmente.

Tratamento

a) Clínico:

Inicia-se o tratamento do portador de MC sintomático para constipação intestinal com medidas clínica, como:

  • Estimular ingesta hídrica: exceção aos pacientes cardiopatas com restrição de líquidos;
  • Evitar dieta rica em fibras e formadores de bolo fecal pois aumentam a chance de impactação fecal;
  • Uso de medicamentos laxativos: lactulose, polietilenoglicol, picossulfato de sódio. Em situações de não evacuação por tempo mais prolongado pode-se utilizar o bisacodil e o uso de supositórios de glicerina a cada 3 a 5 dias
  • Fisioterapia do assoalho pélvico e biofeedback: para casos em que se associa dissinergia pélvica.
  • Lavagem intestinal: naquelas situações de não evacuação por longo tempo, mais de 5 dias com as medidas acima, orienta-se a realização de enteroclisma, sempre antecedido de toque retal para a avaliação de fecalomas. Essa, inclusive, é uma das principais indicações de cirurgia eletiva em portadores de MC, ou seja, a refratariedade aos laxantes por via oral e necessidade frequente de idas ao pronto-socorro ou pronto-atendimento para a realização de lavagens intestinais.

b) Cirúrgico:

As indicações de cirurgia são: refratariedade do tratamento clínico com necessidade frequente de lavagens intestinais e as complicações agudas, como o volvo de sigmóide principalmente. A cirurgia, quando bem indicada, proporciona importante alívio e melhora do principal sintoma do MC que é a constipação intestinal de tal forma, que a frequência dessa queixa é de 76% entre os pacientes não operados e de 39% entre os pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico (p<0,01). Além disso, estudos demonstram melhora significativa do escore de gravidade de constipação após a cirurgia.

Entretanto, é preciso ter em mente e, transparecer isso aos pacientes e familiares, que a cirurgia para o MC não cura a doença. Os principais objetivos são a melhora da constipação e a redução dos riscos de complicações, como o volvo de sigmoide e a impactação fecal com consequente formação de fecalomas.

Grande parte dos cirurgiões colorretais mais antigos tiveram seus relevantes aprendizados técnicos com a realização de procedimentos para o tratamento do MC, sendo que as principais abordagens para o tratamento dessa doença foram descritas por renomados profissionais do nosso país e as cirurgias possíveis compreendem uma infinidade de técnicas que envolvem diferentes extensões de ressecção do cólon, níveis e formas de anastomose, resultando em morbidade e recorrência pós-operatória variáveis. O racional do tratamento cirúrgico é ressecar toda a área de sigmóide dilatada (sigmoidectomia completa) e evitar a região da transição retossigmoideana para a realização das anastomoses, a fim de evitar a recidiva precoce dos sintomas.

Sendo assim, dentre as principais técnicas descritas historicamente, pode-se citar:

  • Técnica de Swenson e Soave: abaixamento de cólon transretal com ressecção de mucosa retal e telescopagem, descrita no final dos anos 1940.
  • Técnica de Duhamel-Haddad: abaixamento de cólon retro-retal posterior com exteriorização do coto e anastomose retardada, descrita entre os anos 1950 e 1960.
  • Técnica de Duhamel-Haddad modificada: abaixamento de cólon retro-retal posterior com tentativa de anastomose primária e utilização de pinças esmagadoras.
  • Técnica de Habr-Gama: nos anos 1990, após surgimento e aprimoramento dos grampeadores e suturas mecânicos foi proposta a retossigmoidectomia com ressecção do reto abaixo do promontório e subsequente anastomose primária na parede posterior do reto distal, término-lateral mecânica extraperitoneal com grampeador de 33 mm (acima do anel anorretal a cerca de 5-7cm da borda anal – Figura 3). O racional da técnica é exclusão boa parte do reto doente do trânsito intestinal, evitando assim a manipulação anterior, que teoricamente teria probabilidade de denervação autonômica e risco de lesão de órgãos e estruturas pélvicas, como a vagina, bexiga, próstata, vesículas seminais e uretra.
Figura 3: Anastomose término-lateral posterior mecânica.

Essa é a técnica mais utilizada atualmente, sendo ainda mais difundida com o advento da videolaparoscopia. Apresenta taxa média de recorrência de 15-20%, certamente relacionada ao tempo de seguimento, que quanto maior apresenta maiores taxas.

Conheça nosso curso Gastroenterologia do Consultório e saiba como lidar com as queixas mais comuns que encontramos no dia a dia

Referências

  1. Santos Júnior JCM. Megacólon – Parte II: Doença de Chagas. Rev Bras Coloproct, 2002(4):266-277
  2. Alves RMA, Thomaz RP, Almeida EA, Wanderley JS, Guariento ME. Chagas’ disease and ageing: the coexistence of other chronic diseases with Chagas’ disease in elderly patients. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2009; 42(6):622-8
  3. Nahas SC, Dias AR, Dainezi MA, Araújo SEA, Nahas CSR. A Vídeo-Cirurgia no Tratamento do Megacólon Chagásico. Rev bras Coloproct, 2006;26(4): 470-4
  4. Kamiji MM, Oliveira RB. O perfil dos portadores de doença de Chagas, com ênfase na forma digestiva, em hospital terciário de Ribeirão Preto, SP. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2005; 38(4):305-9
  5. Araújo SEA, Dumarco RB, Rawet V, Seid VE, Bocchini SF, Nahas SC. Depopulation of intersticial cells of Cajal in chagasic megacolon: towards tailored surgery? Arq Bras Cir Dig. 2010;32(2):81-5
  6. Silva AL, Giacomin RT, Quirino VA, Miranda ES. Proposta de classificação do megacólon chagásico através de enema opaco. Rev Col Bras Cir. 2003;30(1):4-10
  7. Cavenaghi S, Felicio OCS, Ronchi LS, Cunrath GS, Melo MMC, Netinho JG. Prevalence of rectoanal inhibitory reflex in chagasic megacolon. Arq Gastroenterol. 2008;45(2):128-31
  8. Nahas SC. Tratamento cirúrgico do megacólon chagásico pela retossigmoidectomia abdominal com anastomose mecânica colorretal término-lateral posterior imediata. Tese Professor Livre Docente, USP, São Paulo, 2000.
  9. Nahas SC, Pinto RA, Dias AR, Nahas CSR, Araújo SEA, Marques CFS, Cecconello I. Long-term follow up of abdominal rectosigmoidectomy with posterior end-to-side stapled anastomosis for Chagas megacolon. Olorectal Dis. 2011;13(3):317-22.

Como citar este artigo

Pinto RA, Neto IJFC, Camargo MGM, Nahas SC, Marques CFS. Megacolon Chagasico: Diagnóstico e Tratamento Gastropedia 2024, Vol.1 Disponível em: gastropedia.pub/pt/cirurgia/colorretal/megacolon-chagasico-diagnostico-e-tratamento/




Megacólon Chagásico: fisiopatologia e quadro clínico

Definição

O termo megacólon caracteriza-se pela dilatação e alongamento do intestino grosso, fundamentalmente devido a alterações da inervação intrínseca dessa víscera, com os consequentes distúrbios morfológicos e funcionais.

Etiologia e fisiopatologia

No Brasil e em vários países da América do Sul, a principal etiologia do megacólon é a doença de Chagas (DC), também chamada de Tripanossomíase Americana, causada pela transmissão do Trypanossoma cruzi através insetos triatomídeos hematófagos (Barbeiro), chamados de vetores.

Frequentemente as manifestações são tardias decorrentes da destruição irreversível de células ganglionares periféricas do sistema nervoso autonômico, principalmente o parassimpático, por meio dos plexos mioentérico e submucoso (Auerbach e Meissner).

As alterações na denervação na região retossigmóide e no cólon ocorrem fundamentalmente na fase aguda da infecção pelo Trypanossoma cruzi e dependem do equilíbrio entre o hospedeiro e o parasita que envolve diversos fatores da complexa reação do sistema imunológico.

Entretanto, estudos mais recentes demonstram a participação no megacólon chagásico (MC) também das células intersticiais de Cajal, que são oriundas do mesordema e estão presentes no plexo mioentérico nas camadas longitudinais e circulares do cólon. Entretanto, ainda é incerto se alterações nessas células são primárias ou secundárias na fisiopatologia do MC. Em nosso meio, Araújo et al. demonstraram redução significativa dessas células em espécimes cirúrgicos comparando portadores de MC e pacientes sem DC (p<0,001).

Macroscopia e alterações no cólon

O local de acalasia, dissinergia e maior denervação autonômica no MC é a porção distal do sigmóide e proximal do reto (transição retossigmóide), embora possa ocorrer em todo cólon. Nas vísceras ocas a destruição de células ganglionares provoca, com o passar do tempo, o aparecimento das dilatações, hipertrofias musculares e alongamentos, com maiores repercussões no cólon esquerdo (notadamente no sigmóide) devido ao fato dessa região acomodar o bolo fecal já na forma sólida (Figura 1). Consequentemente, há alterações de secreção, absorção e motilidade cólica.

Figura 1: Dilatação e alongamento do sigmóide no megacólon chagásico.

Epidemiologia

A manifestação clínica da DC ocorre mais comumente na 4º e 5º década de vida, com prevalência pouco maior em pacientes do sexo masculino (60%). Afeta cerca de 2-3 milhões de brasileiros, 18 milhões de pessoas na América do Sul e cerca de 120 milhões de latino-americanos estão em risco de contrair a doença. No entanto, observa-se uma queda acentuada dos casos após a década de 90, principalmente pela melhoria das condições de vida e saneamento básico, mas também ao êxodo rural e uso de inseticidas.

Assim, atualmente observa-se que a DC e o MC afetam predominantemente pessoas idosas e isso demonstra a complexidade e necessidade de individualização de conduta e plano terapêutico nessa população. Em levantamento de estudo brasileiro, com análise de 90 portadores de DC, observou-se que a média de outras doenças concomitantes foi de 2,8 ± 1,8 e que quase 18% dos pacientes necessitaram internação no ano anterior, principalmente por descompensação de doença cardíaca e 75% tinham mais de 67 anos de idade.

Formas de transmissão:

  • triatomídeos contaminados
  • transfusão sanguínea
  • transplante de órgãos
  • contaminação vertical
  • contaminação por via oral através de alimentos

Locais de acometimento

A investigação dos órgãos acometidos pela DC é de fundamental importância já que a miocardiopatia constitui-se tanto em principal causa de óbito quanto em fator contribuinte para o mesmo. Além disso, no caso de doença esofágica, a existência de desnutrição é frequente, também colaborando para o aumento da morbimortalidade desses pacientes.

Conheça nosso curso Gastroenterologia do Consultório e saiba como lidar com as queixas mais comuns que encontramos no dia a dia

Quadro clínico

Cerca de 30-60% dos portadores de DC apresentarão sintomas relacionados à doença e destes e 7-10% terão queixas relacionadas ao trato digestório, sendo a colopatia a que tem manifestação mais tardia

O principal sintoma do portador de MC é a constipação intestinal crônica com piora progressiva ao longo do tempo. Cerca de 70% dos pacientes com MC ficam ser evacuar por mais de 10 dias e 37% por mais de 20 dias. Dessa forma, embora possa haver sintomas de obstrução de saída associados, ou dissinergia, a principal característica desses pacientes é o longo tempo sem o desejo de evacuar (diferente dos pacientes com obstrução de saída clássica, que habitualmente apresentam o desejo eventualmente várias vezes ao dia). Entretanto, importante ressaltar que, como as fezes são ressecadas habitualmente, e há a dissinergia da musculatura anorretal, é comum o relato de esforço evacuatório e dificuldade em eliminá-las ao longo tempo para a exoneração.

O meteorismo também é um sintoma bastante comum e pode vir acompanhado por redução da ingesta alimentar não só pela distensão abdominal, mas também pelo excesso de fezes no cólon e também, não incomumente, como relato dos pacientes que evitam ingerir alimentos para não acumular fezes. Entretanto, essa redução da quantidade de alimentação precisa ser bem diferenciada da disfagia consequente da acalasia do esôfago.

Ao exame físico, pode-se constatar:

  • sinais de desnutrição
  • distensão abdominal
  • aumento do timpanismo no espaço de Traube
  • deslocamento do cólon sigmóide para o abdome direito
  • sinal de Gersuny: palpação moldável do hipogástrio e fossa ilíaca esquerda (FIE) com sensação de descolamento ao relaxar, devido acúmulo de fezes no cólon esquerdo (fecaloma).

Além disso, é primordial em todas as consultas, a realização do toque retal, já que a incidência de fecaloma em portadores de MC ao longo da vida é em torno de 50%.

Complicações:

  • impactação fecal e formação de fecaloma
  • úlcera estercorácea: decorre da ação mecânica da impactação fecal na parede intestinal com formação de área de isquemia. Ocorre em cerca de 3% dos casos de MC.
  • volvo de sigmóde: quadro agudo de importante distensão abdominal, parada de eliminação de fezes e flatos e vômitos, provocada por alongamento crônico do mesocólon devido à dilatação do lúmen e distensão por fezes, com rotação organoaxial aguda. O sinal radiológico clássico é o do grão de café (Figura 2).
Figura 2: Radiografia simples de abdome ortostática com volvo de sigmóide.

Referências

  1. Santos Júnior JCM. Megacólon – Parte II: Doença de Chagas. Rev Bras Coloproct, 2002(4):266-277
  2. Alves RMA, Thomaz RP, Almeida EA, Wanderley JS, Guariento ME. Chagas’ disease and ageing: the coexistence of other chronic diseases with Chagas’ disease in elderly patients. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2009; 42(6):622-8
  3. Nahas SC, Dias AR, Dainezi MA, Araújo SEA, Nahas CSR. A Vídeo-Cirurgia no Tratamento do Megacólon Chagásico. Rev bras Coloproct, 2006;26(4): 470-4
  4. Kamiji MM, Oliveira RB. O perfil dos portadores de doença de Chagas, com ênfase na forma digestiva, em hospital terciário de Ribeirão Preto, SP. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2005; 38(4):305-9
  5. Araújo SEA, Dumarco RB, Rawet V, Seid VE, Bocchini SF, Nahas SC. Depopulation of intersticial cells of Cajal in chagasic megacolon: towards tailored surgery? Arq Bras Cir Dig. 2010;32(2):81-5
  6. Silva AL, Giacomin RT, Quirino VA, Miranda ES. Proposta de classificação do megacólon chagásico através de enema opaco. Rev Col Bras Cir. 2003;30(1):4-10
  7. Cavenaghi S, Felicio OCS, Ronchi LS, Cunrath GS, Melo MMC, Netinho JG. Prevalence of rectoanal inhibitory reflex in chagasic megacolon. Arq Gastroenterol. 2008;45(2):128-31
  8. Nahas SC. Tratamento cirúrgico do megacólon chagásico pela retossigmoidectomia abdominal com anastomose mecânica colorretal término-lateral posterior imediata. Tese Professor Livre Docente, USP, São Paulo, 2000.
  9. Nahas SC, Pinto RA, Dias AR, Nahas CSR, Araújo SEA, Marques CFS, Cecconello I. Long-term follow up of abdominal rectosigmoidectomy with posterior end-to-side stapled anastomosis for Chagas megacolon. Olorectal Dis. 2011;13(3):317-22.

Como citar este artigo

Pinto RA, Neto IJFC, Camargo MGM, Nahas SC, Marques CFS. Megacólon Chagásico: fisiopatologia e quadro clínico Gastropedia 2024, Vol. 1 Disponível em: gastropedia.pub/pt/cirurgia/megacolon-chagasico-fisiopatologia-e-quadro-clinico/




Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I

Os cistos pancreáticos são frequentemente achados de imagem em pacientes assintomáticos ou com sintomas inespecíficos. Está cada dia maior a procura aos consultórios de cirurgiões e gastroenterologistas para definir conduta.

Para nos guiar nesse assunto recorremos aos guidelines de grupos internacionais, que auxiliam no manejo dos cistos pancreáticos. O primeiro guideline de 2006 (estabelecido pelo grupo internacional em Sendai, no Japão) direcionava as atenções aos cistos mucinosos – cistoadenoma mucinoso e IPMNs – que classicamente exibem algum risco de malignização.

Da mesma forma, em 2012, na cidade de Fukuoka no Japão, estabeleceram-se novas atualizações para seguimento e abordagem dos cistos mucinosos. Os critérios de Fukuoka, que foram atualizados em 2017, são até hoje considerados como tendo um alto valor preditivo negativo (ou seja, os cistos que não preenchem os critérios de Fukuoka de estigmas de alto risco ou ¨sinais preocupantes¨ têm praticamente 100% de chance de não serem malignos).

Existem ainda os guidelines europeu e da ACG (publicados em 2018) que também se referem a outros tipos de cistos (como os cistoadenomas serosos), que exibem pequenas diferenças no seguimento em relação ao consenso de Fukuoka.

Em dezembro de 2023 foi publicado na Pancreatology um novo guideline sobre o manejo dos IPMNs, realizado em Kyoto. Algumas mudanças em relação a guidelines anteriores foram bem evidentes. Vamos aqui ressaltar os principais pontos desse novo consenso:

  1. Aspectos patológicos: em relação aos graus de displasia, as lesões podem ser classificadas como displasia de baixo grau, displasia de alto grau (carcinoma in situ) e carcinoma invasivo (as duas últimas se apresentam com indicação cirúrgica). Os subtipos morfológicos atualmente são apenas 3: gástrico, intestinal e pancreatobiliar (o subtipo oncocítico previamente descrito foi separado dos IPMNs, e atualmente é descrito como neoplasia papilar intraductal oncocítica).

  1. Aspectos moleculares: os marcadores moleculares conhecidos ainda não tem impacto prognóstico nos IPMNs, apenas para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas. Os IPMNs tem mutações no KRAS (60-70%) e mutações no GNAS (50-70%). As mutações no GNAS não são encontradas nos cistoadenomas mucinosos.

  1. Avaliação de riscos: os termos Estigmas de Alto Risco (High Risk Stigmata) e Sinais Preocupantes (Worrisome features) continuam a ser utilizados. O primeiro termo se refere a sinais preditores de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. São considerados:

    1. High Risk Stigmata: (i) icterícia obstrutiva em pacientes com lesão na porção cefálica do pâncreas; (ii) nódulo mural com realce > 5 mm ou componente sólido; (iii) ducto pancreático principal > 10 mm; (iv) citologia + ou suspeita para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo.
    2. Worrisome features: (i) pancreatite aguda; (ii) elevação do marcador ca19/9; (iii) diabetes de início recente ou piora abrupta de DM anterior; (iv) nódulo mural com realce < 5 mm; (v) cisto > 30 mm; (vi) parede do cisto espessada ou realçada; (vii) ducto pancreático principal entre 5-9 mm; (viii) mudança abrupta no calibre do ducto principal e atrofia do parênquima à montante; (ix) linfoadenopatia; (x) crescimento do cisto pancreático ≥ 2,5 mm/ano.

  1. Marcadores séricos: o Ca 19-9 (leia mais nesse artigo) ainda foi considerado como o único marcador sérico que pode ter relação com o aparecimento de displasia de alto grau ou carcinoma invasivo. Os marcadores moleculares (como KRAS e GNAS) em biópsia líquida ainda estão sendo estudados, sem orientação para serem utilizados de rotina, por enquanto.

  1. Marcadores intra-císticos: a análise bioquímica do fluido do cisto ainda é interessante na diferenciação de cistos mucinosos de não mucinosos. Os valores de CEA (>192 ng/ml) e de glicose (<50 ng/dL) tem alta especificidade para diagnóstico de cisto mucinoso. A dosagem da glicose foi incorporada somente nesse guideline como sendo marcador de alta acurácia para lesões mucinosas. Na análise molecular, a presença de mutações no KRAS e GNAS também têm alta especificidade para diagnóstico de IPMNs. Para avaliar lesões com displasia de alto grau ou já com carcinoma os marcadores genéticos ainda possuem baixa sensibilidade (mutações no SMAD4, TP53, CDKN2A e PIK3CA possuem sensibilidade de 9-39% apenas), embora tenham alta especificidade.

Nessa primeira parte do guideline de Kyoto, analisamos as mudanças na classificação histopatológica, uma definição mais clara dos estigmas de alto risco e dos sinais preocupantes, além de marcadores para diagnóstico dos IPMNs. Marcadores séricos e intracísticos que avaliam degeneração dos IPMNs ainda têm baixa sensibilidade, com pouca recomendação de uso.

Na segunda parte vamos comentar sobre conduta e vigilância dessas lesões: Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte II

Referências:

  1. Ohtsuka, T et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology, 2023. https://doi.org/10.1016/j.pan.2023.12.009
  2. Tanaka, M et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pâncreas. Pancreatology, 2017. http://dx.doi.org/10.1016/j.pan.2017.07.007
  3. Elta, GH et al. ACG Clinical Guideline: Diagnosis and Management of Pancreatic Cysts. Am J Gastroenterol 2018. doi: 10.1038/ajg.2018.14

Como citar este artigo

Marzinotto M. Guideline de Kyoto – atualizações na abordagem dos IPMNs – Parte I Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/pancreas/guideline-de-kyoto-atualizacoes-na-abordagem-dos-ipmns-parte-i/




Situações especiais da linfadectomia para o tratamento do câncer gástrico

O princípio da gastrectomia é a ressecção do tumor com margens adequadas e remoção dos linfonodos regionais com potencial de acometimento metastático. (Um fluxograma completo de tratamento do câncer gástrico pode ser acessado neste outro artigo: Fluxograma de tratamento do câncer gástrico).

As cadeias, ou estações, linfonodais que drenam o estômago são numeradas e definidas de acordo com o vaso que estão acompanhando. Os níveis de linfadenectomias D1 ou D2 foram definidos baseado nos dados do registro japonês, que realizou uma divisão dos linfonodos abdominais em cadeias, apresentando um mapeamento de probabilidade de metástases em cada uma das cadeias, de acordo com a localização do tumor primário.(1)

Você pode conferir as estações linfonodais perigástricas na figura 6 e 7 desse artigo: Japanese classification of gastric carcinoma: 3rd English edition

Assim, na linfadenectomia D1, tanto os linfonodos perigástricos quanto ao longo da artéria gástrica esquerda são removidos. Na linfadenectomia D2, por sua vez, além da remoção dos linfonodos D1, também são removidos os linfonodos ao longo das artérias hepática comum, hepática própria e esplênica, bem como aqueles ao longo do tronco celíaco. (Tabela 1)

Tabela 1. Cadeias linfonodais ressecadas de acordo com extensão da ressecção e linfadenectomia.
Gastrectomia Subtotal
D1 1, 3, 4sb, 4d, 5, 6, 7
D2

cadeias da D1 + 9, 11p, 12a

Gastrectomia Total
D1

1 a 7

D2 cadeias da D1 + 8a, 9, 11p, 11d, 12a

Entretanto, existem algumas situações em que a linfadenectomia pode englobar outras cadeias linfonodais além das previamente citadas.

Tumores da transição esofagogástrica

Nos casos de tumores com invasão do esôfago distal inferior a 2 cm a gastrectomia total pode ser indicada e as cadeias 19, 20 e 110 devem ser removidas (Figura 1). Tumores com invasão entre 2 e 4 cm podem ser tratados tanto com esofagectomia quanto com gastrectomia. Nos casos com mais de 4 cm de invasão do esôfago, a esofagectomia com linfadenectomia das cadeias mediastinais é obrigatória.(2, 3)

Figura 1 .Cadeias linfonodais da região da transição esofagogástrica. Fonte: Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da USP.

Linfadenectomia da cadeia 10

A cadeia 10 do hilo esplênico deve ser removida durante a linfadenectomia D2 nos casos de tumores proximais com invasão da grande curvatura submetidos a gastrectomia total. A linfadenectomia pode ser associada ou não a realização de esplenectomia. Durante muitos anos debateu-se a necessidade de esplenectomia de rotina nos pacientes submetidos a gastrectomia total. Em 2007 foram publicados os resultados do estudo clínico randomizado (RCT) JCOG0110 que incluiu 505 pacientes em 36 instituições japonesas sem demonstrar benefício na realização da esplenectomia de rotina.(4)

Linfadenectomia cadeia 14v

Nos casos em que há metástases na cadeia 6 infrapilórica está indicada a remoção da cadeia 14v localizada na veia mesentérica superior próxima a borda inferior do pâncreas (Figura 2).

Figura 2. Foto do campo cirúrgico após linfadenectomia D2. Local onde estavam a cadeias 6 (área azul) e 14v (área verde) é demonstrado. Fonte: próprio autor.

Linfadenecomia cadeia 13

Os linfonodos da cadeia 13 localizados na região posterior da cabeça pancreática podem ser removidos nos casos de tumores gástricos invadindo o duodeno como parte da linfadenectomia D2 sem serem considerados metastáticos. Nos casos de acometimento da cadeia 13 em tumores sem invasão duodenal, essa disseminação já é considerada como metastática (M1).

Linfadenectomia para-aórtica

A linfadenectomia para-aórtica (PAND) anteriormente era considerada como a linfadenectomia D3. Gastrectomia com linfadenectomia D2 associada a PAND profilática sem evidências de acometimento das cadeias para-aórticas não está mais indicada.(5) Entretanto, nos casos em que havia acometimento das cadeias para-aórticas e o paciente apresentou resposta clínica com emprego de quimioterapia de conversão a gastrectomia com linfadenectomia D2 + PAND pode ser realizada.(6)

Omentectomia

Para tumores T1 e T2 a remoção de apenas 3 cm de omento além da arcada gastroepiplóica já é suficiente. Para tumores T3 e T4 a omentectomia ainda faz parte da gastrectomia padrão, mas sua realização foi pouco recomendada no último consenso japonês com nível de evidência C. (7)

Bursectomia

A bursectomia peritoneal é o procedimento de dissecção do revestimento peritoneal que cobre o pâncreas e o folheto anterior do mesocólon transverso. Desde a década de 1960, no Japão, a bursectomia tem sido recomendada como parte da gastrectomia radical para o CG avançado, especialmente para tumores que invadem a serosa da parede gástrica posterior. Teoricamente, a bursectomia pode promover a dissecção completa dos linfonodos infrapilóricos da cadeia 6 e a inclusão de potenciais micrometástases da retrocavidade (bolsa omental menor) na ressecção. No entanto, o benefício da realização da bursectomia na sobrevida não foi confirmado RCT em grande escala (JCOG1001), inclusive para o subgrupo de pacientes com tumores T4a e localizados na parede posterior do estômago.(8)

Referências

  1. Japanese Gastric Cancer Treatment Guidelines 2021 (6th edition). Gastric Cancer. 2023;26(1):1-25.
  2. Takeda FR, Ramos M, Pereira MA, Sallum RAA, Ribeiro Junior U, Nahas SC, et al. Tumor size predicts worse prognosis in esophagogastric junction adenocarcinoma. Updates Surg. 2022;74(6):1871-9.
  3. Kurokawa Y, Takeuchi H, Doki Y, Mine S, Terashima M, Yasuda T, et al. Mapping of Lymph Node Metastasis From Esophagogastric Junction Tumors: A Prospective Nationwide Multicenter Study. Ann Surg. 2021;274(1):120-7.
  4. Sano T, Sasako M, Mizusawa J, Yamamoto S, Katai H, Yoshikawa T, et al. Randomized Controlled Trial to Evaluate Splenectomy in Total Gastrectomy for Proximal Gastric Carcinoma. Ann Surg. 2017;265(2):277-83
  5. Sano T, Sasako M, Yamamoto S, Nashimoto A, Kurita A, Hiratsuka M, et al. Gastric cancer surgery: morbidity and mortality results from a prospective randomized controlled trial comparing D2 and extended para-aortic lymphadenectomy–Japan Clinical Oncology Group study 9501. J Clin Oncol. 2004;22(14):2767-73.
  6. Ramos MFKP, Pereira MA, Charruf AZ, Dias AR, Castria TB, Barchi LC, et al. CONVERSION THERAPY FOR GASTRIC CANCER: EXPANDING THE TREATMENT POSSIBILITIES. Arq Bras Cir Dig. 2019;32(2):e1435.
  7. Barchi LC, Ramos MFKP, Dias AR, Yagi OK, Ribeiro-Júnior U, Zilberstein B, et al. TOTAL OMENTECTOMY IN GASTRIC CANCER SURGERY: IS IT ALWAYS NECESSARY? Arq Bras Cir Dig. 2019;32(1):e1425
  8. Kurokawa Y, Doki Y, Mizusawa J, Yoshikawa T, Yamada T, Kimura Y, et al. Five-year follow-up of a randomized clinical trial comparing bursectomy and omentectomy alone for resectable gastric cancer (JCOG1001). Br J Surg. 2022;110(1):50-6.

Como citar este artigo

Ramos MFKP, Situações especiais da linfadectomia para o tratamento do câncer gástrico Gastropedia 2024 Vol 1. Disponível em: gastropedia.pub/pt/cirurgia/situacoes-especiais-da-linfadectomia-para-o-tratamento-do-cancer-gastrico/




Neoplasia Pseudopapilar Sólida do Pâncreas (Tumor de Frantz)

A Neoplasia Pseudopapilar Sólida do Pâncreas (NPSP), conhecida previamente como Tumor de Frantz, é um tumor geralmente benigno, porém com potencial de malignidade. Estas lesões são raras, representando menos de 2% das neoplasias pancreáticas. Predominam em mulheres jovens (20-30 anos), sendo geralmente assintomáticas. Quando há sintomas, o principal deles é a dor abdominal. Geralmente são encontrados de forma incidental em exames de imagem como tomografia computadorizada e ressonância magnética. Nesse artigo, vamos resumir as principais características desta neoplasia.

Apresentação Clínica:

No passado, a maioria dos casos desta neoplasia eram sintomáticos (80%). No entanto, com a utilização disseminada dos métodos de imagem, houve grande aumento dos achados incidentais em pacientes assintomáticos, que atualmente representam cerca de 50% dos casos. O sintoma mais comum é dor abdominal, seguido de náuseas, vômitos e perda de peso. Outros sintomas menos frequentes incluem icterícia e pancreatite. Alguns pacientes podem apresentar massa palpável, visto que a lesão não costuma causar sintomas nos estágios iniciais.

  • Representam menos de 2% das neoplasias pancreáticas.
  • Predominantes em mulheres jovens (20-30 anos).
  • Geralmente são assintomáticos.
  • Principal sintoma: dor abdominal.
  • Diagnósticos incidentais em TC, RM e US.

Características nos exames de imagem:

  • As NPSP podem aparecer como uma lesão pancreática mista, sólida e cística, em imagens de TC e RNM.
  • Também podem aparecer como tumores sólidos bem demarcados.
  • Num estudo das características de RM de pequenos tumores sólidos do pâncreas, os NPSP apresentavam uma intensidade de sinal significativamente mais baixa nas imagens ponderadas em T1, uma intensidade de sinal mais elevada nas imagens ponderadas em T2 e um realce heterogêneo e progressivo precoce na RM, em comparação com os adenocarcinomas e os tumores neuroendócrinos.

Características Endoscópicas (EUS):

  • Lesões geralmente são bem demarcadas (aspecto encapsulado), hipoecogênicas e de aparência sólida.
  • Podem ter áreas císticas de permeio, proporcionando uma imagem heterogênea, ou ser predominantemente císticas.
  • Podem ser encontradas em qualquer lugar do pâncreas: cabeça, corpo, cauda e processo uncinado.
  • Calcificações podem estar presentes em até 20% dos casos.
  • Outra característica que pode ser encontrada é a presença de vasos no interior do tumor, que podem ser visíveis como pequenas estruturas hiperecogênicas que atravessam a lesão.

Diagnóstico por EUS-FNA:

  • O fluido aspirado do cisto é tipicamente sanguinolento.
  • Sensibilidade: 80-90%, Especificidade: 85-96%.
  • Fornece informações morfológicas para planejamento cirúrgico.

Características Histológicas e Marcadores Moleculares:

  • A citologia é diagnóstica em 75% dos casos.
  • Apresentam estrutura complexa de células poligonais.
  • A disposição das células tumorais ao redor dos vasos capilares confere à lesão uma aparência “pseudopapilar” irregular.
  • A análise citológica revela papilas ramificadas características com estroma mixoide.
  • A análise imuno-histoquímica, incluindo vimentina, CD10 e beta-catenina, auxilia a diferenciação entre uma NPSP e um tumor neuroendócrino pancreático.

Características Sugestivas de Malignidade:

  • Tamanho > 5 cm.
  • Mitoses frequentes.
  • Índice Ki-67 elevado (> 5%).
  • Invasão vascular ou linfática.
  • Presença de necrose.
  • Presença de metástases à distância.

Tratamento e Prognóstico:

  • Ressecção cirúrgica completa é a abordagem definitiva, devido ao potencial de malignização.
  • Escolha cirúrgica é baseada na localização (duodenopancreatectomia ou pancreatectomia distal).
  • Sobrevida pós-operatória próxima de 95%, com necessidade de monitoramento.
  • Acompanhamento a longo prazo é essencial para identificar recorrências.

Referências:

  1. Arief Suriawinata.Pathology of exocrine pancreatic neoplasms. Uptodate 2023. Disponivel em: https://www.uptodate.com/contents/pathology-of-exocrine-pancreatic-neoplasms.
  2. Asif Khalid, Kevin McGrath. Pancreatic cystic neoplasms: Clinical manifestations, diagnosis, and management. Uptodate 2022. Disponivel em: https://www.uptodate.com/contents/pancreatic-cystic-neoplasms-clinical-manifestations-diagnosis-and-management.
  3. Okasha, H., Abbas, W., Altonbary, A. et al. Role of endoscopic ultrasonography in the diagnosis of solid pseudo-papillary neoplasm: Egyptian multi-centric case series and systematic review. Egypt J Intern Med 34, 9 (2022). https://doi.org/10.1186/s43162-022-00105-z

Como citar este artigo

Passos HL, Souza CS, Martins BC. Neoplasia Pseudopapilar Sólida do Pâncreas (Tumor de Frantz). Gastropedia 2024 Vol. 1 Disponível em: https://gastropedia.pub/pt/cirurgia/hepatopancreatobiliar/neoplasia-pseudopapilar-solida-do-pancreas-tumor-de-frantz




Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer?

“Doutor, o que é essa metaplasia que apareceu na minha endoscopia? Eu li no Google que ela vira câncer de estômago! O que eu faço agora?” – essa é uma preocupação que provavelmente você já ouviu no consultório médico. Mas e, então, você sabe o que responder e o que fazer?

O que é?

A inflamação crônica no estômago gera um processo regenerativo que pode estimular a transformação da mucosa gástrica em células mais parecidas com aquelas que revestem os intestinos, o que chamamos de metaplasia intestinal (MI).

A prevalência de MI é variável conforme a população estudada (relaciona-se, por exemplo, à prevalência de H. pylori), sendo estimada em 4,8% nos Estados Unidos, mas em até 25% em algumas populações asiáticas. Além disso, estudos demonstram uma maior prevalência em faixas de idade mais avançadas. Não há sintomas específicos associados com a metaplasia em si.

Mas se essa transformação que leva à MI é consequência de uma inflamação gástrica, quais seriam os fatores que podem predispor ou acelerar essa evolução?

  1. Helicobacter pylori: Sem dúvidas, é o principal fator de risco para lesões pré-cancerígenas gástricas. O H. pylori aumenta a chance de câncer gástrico em 2 a 3 vezes.
  2. Gastrite autoimune: Aumento do risco de tumores neuroendócrinos gástricos tipo I e de adenocarcinoma.
  3. Tabagismo
  4. Refluxo biliar
  5. Dieta: vegetais e frutas são geralmente fatores protetores, ao passo que dietas ricas em sal, processados, defumados e alimentos ricos em nitrosaminas aumentam o risco.

Como identificar?

Na endoscopia com luz branca, a metaplasia intestinal apresenta-se superficialmente elevada ou com áreas planas esbranquiçadas. Também pode aparecer como placas da mesma cor da mucosa adjacente ou até áreas ligeiramente deprimidas e avermelhadas. Se disponíveis, equipamentos de alta definição e cromoscopia são superiores a endoscópios de alta definição com luz convencional, pois podem direcionar as biópsias para áreas mais representativas e com maior risco de malignidade (Figura 1).

Figura 1:
Metaplasia intestinal (MI) em antro gástrico. À esquerda, exame sob luz branca e, à direita, exame com cromoscopia óptica (LCI), onde é mais fácil reconhecer a extensão da MI.

De forma análoga ao que temos para gastrite atrófica, também temos um sistema de classificação para estadiamento da metaplasia, o Operative Link on Gastritis Assessment based on Intestinal Metaplasia (OLGIM). Para tal, são necessárias biópsias do antro (+ incisura) e do corpo gástrico (na pequena e na grande curvatura de cada região), que devem ser identificadas em frascos separados (Figura 2). A endoscopia precisa ser de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia. No caso de lesões suspeitas visíveis, deve-se realizar biópsias adicionais.

Figura 2:
Sistema OLGIM para avaliação de metaplasia intestinal gástrica.

Qual o risco?

O adenocarcinoma gástrico tipo intestinal é o final da famosa cascata de Pelayo Correa: inflamação –> atrofia –> metaplasia –> displasia –> carcinoma. Logo, tanto a gastrite atrófica como a metaplasia intestinal são consideradas condições pré-cancerígenas. Outra inferência desta cascata é que, se existe metaplasia intestinal gástrica, significa que também há gastrite atrófica.

Um dos maiores estudos de seguimento populacional identificou que a incidência anual de câncer gástrico em pacientes com MI era de 0,25%, com uma incidência cumulativa em 10 anos de 2,4%. No Japão, onde a incidência de câncer gástrico é maior, um estudo demonstrou uma incidência cumulativa muito maior: 5,3 a 9,8% em 5 anos para MI.

Ter a metaplasia intestinal gástrica não deve ser encarada, portanto, como uma evolução obrigatória para o câncer, mas como uma oportunidade de vigilância para, em caso de evolução para displasia ou adenocarcinoma, ser possível o diagnóstico e tratamento precoces.

Quem são os pacientes com metaplasia intestinal que apresentam maior risco de evolução para neoplasia?

  • Extensão da metaplasia intestinal: OLGIM III e IV. É considerada limitada se restrita a uma região do estômago e extensa se acometer duas (antro e corpo).
  • Histórico familiar de câncer gástrico: Embora a maioria dos cânceres gástricos sejam esporádicos, algum tipo de histórico familiar ocorre em até 10% dos casos. Ter um familiar de primeiro grau com câncer gástrico aumenta o risco em 2 a 10 vezes. Acredita-se que esse risco familiar não se deve apenas a uma suscetibilidade genética herdada, mas também a fatores ambientais ou de estilo de vida compartilhados, bem como ao compartilhamento da mesma cepa citotóxica de H. pylori.
  • Presença de metaplasia intestinal incompleta: o risco de progressão para câncer é até 11x maior quando comparado com metaplasia intestinal completa. Histologicamente, a metaplasia intestinal completa é definida por mucosa do tipo intestino delgado com células absortivas maduras, células caliciformes e borda em escova. Já a metaplasia intestinal incompleta é semelhante ao epitélio do cólon com células colunares “intermediárias” em vários estágios de diferenciação.
  • Gastrite atrófica autoimune.
  • Infecção persistente pelo H. pylori, pois não foi possível a erradicação apesar das tentativas terapêuticas.

Como acompanhar?

Não existe um tratamento específico para metaplasia intestinal até o momento. Uma vez diagnosticada, o foco é controlar os fatores agressores (principalmente tratamento do H. pylori, mas também cessar tabagismo e melhorar dieta) e realizar vigilância endoscópica em casos selecionados que apresentem maior risco de evolução para câncer.

Um dos principais fluxogramas para guiar esse seguimento é o Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), que foi publicado em 2019 pela ESGE (Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal) e está resumido na Figura 3.

Figura 3: Vigilância de pacientes com metaplasia intestinal gástrica. Adaptado do Consenso MAPS II (Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach), 2019.[1] Atentar que é recomendado que tenha sido realizada endoscopia de alta qualidade para excluir estágios avançados de atrofia e metaplasia.

Conheça nosso curso Gastroenterologia do Consultório e saiba como lidar com as queixas mais comuns que encontramos no dia a dia

Referências

  1. Pimentel-Nunes P, Libânio D, Marcos-Pinto R, Areia M, Leja M, Esposito G, et al. Management of epithelial precancerous conditions and lesions in the stomach (MAPS II): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE), European Helicobacter and Microbiota Study Group (EHMSG), European Society of Pathology (ESP), and Sociedade Port. Endoscopy 2019;51:365–88. doi:10.1055/a-0859-1883.
  2. Jencks DS, Adam JD, Borum ML, Koh JM, Stephen S, Doman DB. Overview of Current Concepts in Gastric Intestinal Metaplasia and Gastric Cancer. Gastroenterol Hepatol (N Y) 2018;14:92–101. doi:10.1111/j.1365-2559.1987.tb01893.x.
  3. Sugano K, Moss SF, Kuipers EJ. Gastric Intestinal Metaplasia: Real Culprit or Innocent Bystander as a Precancerous Condition for Gastric Cancer? Gastroenterology 2023;165:1352-1366.e1. doi:10.1053/j.gastro.2023.08.028.
  4. Gupta S, Li D, El Serag HB, Davitkov P, Altayar O, Sultan S, et al. AGA Clinical Practice Guidelines on Management of Gastric Intestinal Metaplasia. Gastroenterology 2020;158:693–702. doi:10.1053/j.gastro.2019.12.003.
  5. White JR, Banks M. Identifying the pre-malignant stomach: From guidelines to practice. Transl Gastroenterol Hepatol 2022;7:1–13. doi:10.21037/tgh.2020.03.03.

Como citar este artigo

Lages RB. Metaplasia intestinal gástrica: qual o risco e o que fazer? Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em:
gastropedia.pub/pt/gastroenterologia/metaplasia-intestinal-gastrica-qual-o-risco-e-o-que-fazer/




Ultrassonografia Multiparamétrica Hepática em Cirrose

Introdução

A avaliação multiparamétrica hepática por ultrassom (AMH-US) em pacientes cirróticos consiste na pesquisa minuciosa e periódica de achados ultrassonográficos que cuja detecção impactem diretamente na sobrevida do paciente. Tais achados podem e devem ser investigados ao longo do exame de maneira customizada, a depender da etiologia da cirrose e de suas principais complicações, o CHC e a Hipertensão Portal Clinicamente Significativa (HPCS). Via de regra, faz-se uma avaliação detalhada no modo B e avaliação vascular Doppler, ainda que também possa contemplar, a depender da etiologia da cirrose, a elastografía ARFI (Pointer ou 2D SWE), quantificação gordurosa e inflamatória hepática, bem como no uso do contraste de microbolhas.

O CHC é a complicação de maior impacto na sobrevida de pacientes com doença hepática crônica avançada (HCAc/Cirrose)1. Assim, a sua detecção precoce (Estadio BCLC 0 ou A) é muito importante já que são justamente esses pacientes os candidatos à tratamentos de intenção curativa 2,3.

Como resultado, todas as diretrizes internacionais apoiam a vigilância do CHC nestes pacientes com base no exame semestral de ultrassonografia hepática, associado ou não a dosagem sérica de alfafetoproteína (AFP) 3-5, com uma sensibilidade global variando de 58% a 89% e uma especificidade de 90% 6.

No entanto, estudos prospectivos e meta analises de populações controladas e incluídas em programa de rastreios periódicos de CHC descrevem uma sensibilidade inferior a 30% para a detecção de CHC inicial em certa populações de pacientes cirróticos. Em primeiro lugar, 20-30% dos cirróticos apresentam uma nodularidade e heterogeneidade parenquimatosa que pode dificultar a detecção de CHC precoce por ultrassonografia7. A sensibilidade do US também pode ser reduzida em obesos e/ou pacientes com doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica ou “Metabolic Dysfunction Associated Steatotic Liver Disease (MASLD)” devido à atenuação sonora posterior causada por esta condição8. Finalmente, as competências e conhecimentos técnicos do médico ultrassonografista também impactam diretamente na capacidade diagnóstica do método9,10.

Na tentativa de endereçar estas limitações e melhorar portanto a jornada do paciente no rastreio do CHC, o American College of Radiology (ACR) propôs uma nova diretriz para o rastreio de nódulos em pacientes cirróticos chamado Liver Imaging Reporting And Data System per US (US-LI-RADS®) 11.

US-LIRADS

US-LI-RADS® consiste na estruturação do exame de ultrassonografia de rastreio em pacientes cirróticos, propondo um desde um detalhamento técnico da realização do exame até um formato estruturado na comunicação dos resultados e eventuais limitações no relatório do exame. Se trata de:

  • Um documento dinâmico, a ser expandido e refinado à medida que o conhecimento se acumule e em resposta ao feedback dos usuários.
  • Desenvolvido para melhorar a comunicação, atendimento ao paciente, educação e pesquisa.
  • Apoiado e endossado pelo American College of Radiology (ACR)
  • Desenvolvido por um comitê multidisciplinar de radiologistas e hepatologistas com experiência em ultrassonografia hepatobiliar, com contribuição e aprovação do Comitê de Direção do LI-RADS.

Consiste na estruturação técnica do exame da comunicação entre o médico ultrassonografista e o médico solicitante através de um léxico de terminologia padronizada, atlas ilustrativo e diretrizes para a confecção do laudo.

O US-LI-RADS requer dois tipos de avaliação:

  • a primeira delas é de comunicar claramente ao médico através de um score de visualização se naquele momento do exame foi possível avaliar com segurança todo o fígado do paciente e/ou se o fígado tem uma condição factível de rastreio de lesões focais por ultrassografia (figura 1). São elas:

    • A. Limitações mínimas ou nenhuma (figura 2);
    • B. Limitações moderadas (figura 3)
    • C. Limitações acentuadas (Figura 4).

  • É recomendado nas categorias B e especialmente C a complementação do rastreio de CHC com método seccional contrastado (TC/RM) e é onde tem se discutido mais a indicação dos protocolos abreviados de Ressonância Magnética12..
  • A segunda avaliação trata justamente de categorizar os achados de lesões focais e propõe ainda uma conduta. Três categorias são possíveis:

    • US-1 Negativo (Sem lesão focal ou achado(s) definitivamente benigno(s), recomendando indicação de novo rastreio por US em 6 meses;
    • US-2 Sublimiar (Achado(s) < 10 mm de diâmetro e não definitivamente benignos), ), recomendando indicação de novo rastreio por US em 3 meses e
    • US-3 Positivo (Achado(s) ≥ 10 mm de diâmetro, não definitivamente benigno e /ou trombose venosa nova), por fim, recomendando indicação de estudo seccional com contraste multifásico (Figura 6).

Figura 1: Score de visualização US-Lirads.

 

Figura 5: Classificação das lesões identificadas, nos acessos acústicos disponíveis.

 

Rastreio vascular e diagnóstico de HPCS

Devemos considerar na avaliação mutiparamétrica hepática por US em pacientes cirróticos o estadiamento vascular. Em primeiro lugar, checar o calibre, permeabilidade e padrão de fluxo das veias hepáticas, sistema portal e artéria hepática é fundamental para que se compreenda o status quo da cirrose e da hipertensão portal, bem como de seu nível de gravidade, além de buscar outras complicações da cirrose como, por exemplo, as tromboses.

Achados indiretos para o diagnóstico de Hipertensão Portal Clinicamente Significativa (HPCS) são de suma importância já que se trata de um importante ponte de corte para o reconhecimento de pacientes que apresentam maior risco de complicações que afetam a sobrevida global, além de ser condição que influencia na tomada de decisão terapêutica em pacientes BCLC 0, A e B 13,14. Os achados ultrassonográficos principais do diagnóstico indireto de HPCS na avaliação multiparamétrica de pacientes cirróticos são: A presença de recanalização da veia paraumbilical e/ ou a presença de circulação colateral abdominal, sendo as varizes no território das veias gástrica esquerda, gástricas curtas e região periesplênica as mais comuns, e, por fim, a detecção de ascite e/ou anastomoses porto sistêmicas14(Figura 7).

 

Elastografia 2D SWE

Não só para o diagnóstico não invasivo de hepatopatia crônica avançada a elastografía ARFI tem sido discutida e já amplamente aplicada. Tem sido crescente a discussão do papel da elastografía Point Share Wave e 2DSWE também no acesso à rigidez hepática e esplênica para predição de varizes esofágicas de alto risco15, ainda que estejamos pendentes de validação de pontos de corte e maior consolidação de seu nível de evidência. Por fim, também tem sido discutida a acurácia diagnóstica da elastografía hepática por ultrassom na predição de complicações como CHC e HPCS no paciente cirrótico com hepatite C após tratamento dom DAAs16.

Quantificação gordurosa hepática e acesso a quantificação de inflamação

Nos últimos anos a indústria de tecnologia em ultrassom tem se dedicado ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de softwares também dirigidos a quantificação gordurosa para diagnóstico e seguimento da doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica e doença hepática gordurosa alcóolica, além da quantificação também da inflamação hepática nas mais diversas etiologias das doenças hepáticas difusas. Estas novas ferramentas já estão disponíveis e autorizadas para aplicação na prática clínica e parecem bastante promissoras. No entanto, estão pendentes de maior consolidação de seu nível de evidência 17,18.

Referências

  1. Moon AM, Singal AG, Tapper EB. Contemporary epidemiology of chronic liver disease and cirrhosis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2020;18:2650–66
  2. Llovet JM, Kelley RK, Villanueva A, Singal AG, Pikarsky E, Roayaie S, et al. Hepatocellular carcinoma. Nat Rev Dis Primers. 2021;7:6.
  3. European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines: Management of hepatocellular carcinoma. J Hepatol. 2018;69:182–236.
  4. Heimbach JK, Kulik LM, Finn RS, Sirlin CB, Abecassis MM, Roberts LR, et al. AASLD guidelines for the treatment of hepatocellular carcinoma. Hepatology. 2018;67:358–80.
  5. Omata M, Cheng AL, Kokudo N, Kudo M, Lee JM, Jia J, et al. Asia-Pacific clinical practice guidelines on the management of hepatocellular carcinoma: a 2017 update. Hepatol Int. 2017;11: 317–70.
  6. Kim CK, Lim JH, Lee WJ. Detection of hepatocellular carcinomas and dysplastic nodules in cirrhotic liver: accuracy of ultrasonography in transplant patients. J Ultrasound Med. 2001;20:99–104
  7. Simmons O, Fetzer DT, Yokoo T, Marrero JA, Yopp A, Kono Y, et al. Predictors of adequate ultrasound quality for hepatocellular carcinoma surveillance in patients with cirrhosis. Aliment Pharmacol Ther. 2017;45:169–77
  8. Wong LL, Reyes RJ, Kwee SA, Hernandez BY, Kalathil SC, Tsai NC. Pitfalls in surveillance for hepatocellular carcinoma: How successful is it in the real world? Clin Mol Hepatol. 2017;23: 239–48
  9. Sato T, Tateishi R, Yoshida H, Ohki T, Masuzaki R, Imamura J, et al. Ultrasound surveillance for early detection of hepatocellular carcinoma among patients with chronic hepatitis C. Hepatol Int. 2009;3:544–50.
  10. Schoenberger H, Chong N, Fetzer DT, Rich NE, Yokoo T, Khatri G, et al. Dynamic changes in ultrasound quality for hepatocellular carcinoma screening in patients with cirrhosis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2022;20:1561–69.e4.
  11. Shuchi K. Rodgers , David T. Fetzer , Helena Gabriel , James H. Seow , Hailey H. Choi , et al. RadioGraphics 2019 39:3,690-708.
  12. An JY, Peña MA, Cunha GM, Booker MT, Taouli B, Yokoo T, Sirlin CB, Fowler KJ. Abbreviated MRI for Hepatocellular Carcinoma Screening and Surveillance. Radiographics. 2020 Nov-Dec;40(7):1916-1931.
  13. Reig M, Forner A, Rimola J, Ferrer-Fàbrega J, Burrel M, Garcia-Criado Á, Kelley RK, Galle PR, Mazzaferro V, Salem R, Sangro B, Singal AG, Vogel A, Fuster J, Ayuso C, Bruix J. BCLC strategy for prognosis prediction and treatment recommendation: The 2022 update. J Hepatol. 2022 Mar;76(3):681-693.
  14. de Franchis R, Bosch J, Garcia-Tsao G, Reiberger T, Ripoll C; Baveno VII Faculty. Baveno VII – Renewing consensus in portal hypertension. J Hepatol. 2022 Apr;76(4):959-974
  15. Liu Y, Tan HY, Zhang XG, Zhen YH, Gao F, Lu XF. Prediction of high-risk esophageal varices in patients with chronic liver disease with point and 2D shear wave elastography: a systematic review and meta-analysis. Eur Radiol. 2022 Jul;32(7):4616-4627.
  16. Nicoletti A, Ainora ME, Cintoni M, Garcovich M, Funaro B, Pecere S, De Siena M, Santopaolo F, Ponziani FR, Riccardi L, Grieco A, Pompili M, Gasbarrini A, Zocco MA. Dynamics of liver stiffness predicts complications in patients with HCV related cirrhosis treated with direct-acting antivirals. Dig Liver Dis. 2023 Nov;55(11):1472-1479.
  17. Park J, Lee JM, Lee G, Jeon SK, Joo I. Quantitative Evaluation of Hepatic Steatosis Using Advanced Imaging Techniques: Focusing on New Quantitative Ultrasound Techniques. Korean J Radiol. 2022
  18. Schulz M, Wilde AB, Demir M, Müller T, Tacke F, Wree A. Shear wave elastography and shear wave dispersion imaging in primary biliary cholangitis-a pilot study. Quant Imaging Med Surg. 2022 Feb;12(2):1235-1242.

Como citar este artigo

Branco CP. “Ultrassonografia Multiparamétrica hepática em cirrose” Gastropedia 2024, vol. 1. Disponível em: Ultrassonografia Multiparamétrica hepática em cirrose




Pancreatite Aguda por Hipertrigliceridemia

A relação dos triglicérides com o dano pancreático tem sido estudada ao longo dos anos. Sabe-se hoje que a Hipertrigliceridemia (HTG) é a 3a maior causa de pancreatite aguda (menos prevalente apenas que as causas biliares e alcoólica). Entretanto, a presença de HTG é frequente em todas as etiologias das pancreatites agudas.

Como saber se os triglicérides (TG) são a causa ou apenas um epifenômeno presente em uma pancreatite aguda de outra etiologia?

Conceito

A hipertrigliceridemia é definida como aumento de níveis séricos de triglicérides acima de 150 mg/dL. Esse aumento pode ser categorizado em:

  • HTG leve: 150-199 mg/dL
  • HTG moderada: 200-999 mg/dL
  • HTG severa: 1000-1999 mg/dL
  • HTG muito severa: > 2000 mg/dL

As HTG são classificadas em:

  • Primárias – pacientes portadores de alterações genéticas que não permitem o correto metabolismo dos triglicérides. Essas causas foram catalogadas por Friderickson em tipos I a V. Os tipos mais associados com pancreatite aguda são: tipos I, IV e V.
  • Secundárias: alguns pacientes elevam os TG devido a: obesidade, diabetes mal controlado, dieta hipercalórica e hiperlipídica, gestação e uso de álcool. Além disso, algumas medicações são sabidamente causa de HTG e devem ser pesquisadas nesse contexto (ex: retinóides, inibidores de proteases, anti-psicóticos, inibidores de calcineurina, diuréticos e estrógenos)

O risco de pancreatite aguda (PA) ocorrer em indivíduos com HTG é considerado quando os TG se elevam > 1000 mg/dL (em torno de 5%) e aumenta muito quando TG > 2000 mg/dL (risco passa a ser 10-20%). Ao analisar a população com hipertrigliceridemia severa, cerca de 20% relataram histórico prévio de pancreatite aguda, valor muito acima da prevalência encontrada na população.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da pancreatite por HTG é complexa, e até hoje não completamente compreendida. Sabe-se que os TG na microcirculação induzem a liberação da lipase pancreática, que clivam as moléculas em ácidos graxos livres (que são lipotóxicos para as células pancreáticas). Esses, por sua vez, levam a lesão do endotélio cursando com extravasamento capilar. Os TG também ativam substâncias como o tramboxano, fosfolipase A e prostaglandinas que levam a vasoconstrição e isquemia pancreática.

Os triglicérides e os ácidos graxos livres também tendem a se agrupar sob a forma de micelas, o que aumenta a viscosidade plasmática e leva a isquemia da glândula.

Somado a isso temos também o desbalanço no cálcio intracelular, o estresse oxidativo em organelas, que também precipitam a ativação precoce da tripsina, ainda dentro do pâncreas.

Diagnóstico

O diagnóstico de PA por HTG é dado da mesma forma que outras etiologias, com os critérios de Atlanta, quando presentes 2 dos 3 critérios (dor em abdome superior, elevação de enzimas pancreáticas > 3 o limite do método e exame de imagem compatível) associados a elevação de TG > 1.000 mg/dL.

Aqui é importante lembrar que as PAs originadas de outras causas (biliares, alcoólicas e medicamentosas) podem elevar os TG na fase aguda, porém raramente em níveis > 1000 mg/dL. Essa elevação é vista como um epifenômeno.

Quanto à gravidade, em estudos realizados, observou-se que a PA por HTG tende a ser mais grave comparada a outras etiologias. Em metanálises e revisões sistemáticas observou-se que esses pacientes evoluíram com maiores escores de gravidade, maiores taxas de recorrências, mais admissão em UTIs, e maior mortalidade.

Tratamento

O tratamento inicial é baseado em suporte, como em qualquer pancreatite: hidratação, analgesia e suporte nutricional (especialmente para as PAs graves).

Dentre as abordagens específicas, destacam-se:

  • Bomba de heparina: a heparina pode ser usada em monoterapia ou associada a outras modalidades (como à bomba de insulina). O anticoagulante aumenta inicialmente a degradação dos TG em ácidos graxos livres. Esse efeito, porém, é temporário e o consumo hepático da lipoproteína lipase plasmática causa um aumento rebote dos TG após a suspensão da infusão. Além disso, a infusão de heparina aumenta os eventos hemorrágicos, principalmente nas PAs graves com complicações locais.
  • Bomba de insulina: a infusão contínua de insulina também aumenta a ativação da lipoproteína lipase e diminui a liberação de ácidos graxos livres pelos adipócitos e promove o metabolismo desses ácidos graxos por células sensíveis ao hormônio. Ela pode ser usada em conjunto com a terapia da heparina, porém os estudos que avaliaram os resultados são pequenos. Essa modalidade tem o potencial de reduzir os níveis de TG em 50-75% em 3 dias.
  • Plasmaférese: essa terapia remove mecanicamente o excesso de quilomícrons da corrente sanguínea. Da mesma forma, parece reduzir os níveis de citocinas pró-inflamatórias, que são determinantes para a gravidade na fase inicial da PA. No entanto, os resultados quanto a desfechos relevantes (disfunção de múltiplos órgãos, mortalidade) não favoreceram a plasmaférese em relação a terapia de suporte. Além disso, esses pacientes tiveram maiores taxas de admissão em UTI (visto que é um procedimento realizado em unidade de terapia intensiva), necessitam sempre passagem de cateter central e podem apresentar reação infusional ao plasma. É uma terapia segura para ser realizada em gestantes.
  • Hemofiltração: essa é outra terapia controversa, que tende a remover os lipídios e as citocinas do plasma. Embora remova TG de forma rápida e efetiva, não houve diferença nos desfechos clínicos relevantes, além de ter um custo elevado.

Seguimento

Os pacientes que já tiveram PA por HTG necessitam seguimento após a alta para reduzir os riscos de recorrência. O uso de agentes hipolipemiantes (como os fibratos) é recomendado assim que o paciente já estiver apto a retomar a dieta via oral, ainda no hospital. O objetivo no tratamento ambulatorial é manter os níveis de TG < 500 mg/dL.

Os pacientes com HTG primárias devem ser seguidos por especialistas na área de lípides.

Em resumo, a HTG é causa relevante de PA, especialmente nos pacientes com as hipertrigliceridemias primárias. A dosagem de triglicérides deve ser feita nas primeiras horas, pois os níveis tendem a cair significativamente com o jejum. A abordagem terapêutica é semelhante a de outras pancreatites, e pode-se associar terapias específicas para a redução de TG a curto prazo. Os pacientes devem ser sempre encaminhados para seguimento pós alta, para reduzir o risco de novo evento.

Referências

  1. Yang, AL & McNabb-Blatar, J. Hypertriglyceridemia and acute pancreatitis. Pancreatology 20 (2020) 795-800
  2. Qiu, M et al. Comprehensive review on the pathogenesis of hypertriglyceridaemia associated acute pancreatitis. Annals of Medicine 2023, VOL. 55, No. 2, 2265939
  3. de Pretis, N et al. Hypertriglyceridemic pancreatitis: Epidemiology, pathophysiology and clinical management. United European Gastroenterology Journal 2018, Vol. 6(5) 649–655
  4. Bálint, ER et al. Assessment of the course of acute pancreatitis in the light of aetiology: a systematic review and meta‑analysis. Sci Rep 2020 Oct 21;10(1):17936.

Como citar este artigo

Marzinotto M. Pancreatite Aguda por Hipertrigliceridemia Gastropedia 2024, vol 1. Disponível em: gastropedia.com.br/gastroenterologia/pancreas/pancreatite-aguda-por-hipertrigliceridemia/